Nesse artigo busco explorar a complexa relação entre nossos limites internos, o confronto com o saber e o impacto da comparação com os outros, refletindo sobre como essas experiências podem desencadear sentimentos de angústia e insuficiência. Olhar para esses aspectos pode nos alertar para o perigo da inflação do ego e a importância de reconhecer nossas limitações como parte essencial do processo de individuação. Ao aceitar tanto nossas fraquezas quanto nossas potencialidades, podemos nos libertar do peso das expectativas coletivas e encontrar uma realização mais autêntica e alinhada com nosso Si-mesmo.
Por vezes somos atravessados por afetos que levamos um tempo para que possamos compreendê-los e é sobre isso que se trata esse artigo.
A dificuldade para a compreensão das nossas limitações pode se tornar um grande obstáculo para vivermos nossas vidas com mais leveza. A angústia que se apresenta ao nos confrontarmos com o conhecimento, com o saber, com o infinito universo de conteúdo dos quais podemos nos apropriar pode facilmente nos levar a uma sensação de incapacidade. E esse sentimento pode contribuir para a erupção de um sabotador interno capaz de nos aprisionar.
Comparar-se aos outros é algo natural e por vezes nessa comparação podemos almejar que aquilo que o outro é ou conquistou também possa ser por nós alcançado, bastando apenas empenho e dedicação para obter resultados semelhantes. No entanto, quando esses objetivos não são atingidos, é comum interpretarmos isso como uma falha pessoal, o que pode nos fazer sentir diminuídos e ver a nós mesmos como nossos próprios sabotadores.
Acredito que essa seja uma característica da psique, visto que temos uma tendência a nos identificarmos e nos dissolvermos na psique coletiva, conforme Jung afirma na obra o Eu e o Inconsciente (2014, §235):
Do mesmo modo que o indivíduo não é apenas um ser singular e separado, mas também um ser social, a psique humana também não é algo de isolado e totalmente individual, mas também um fenômeno coletivo. E assim como certas funções sociais ou instintos se opõem aos interesses dos indivíduos particulares, do mesmo modo a psique humana é dotada de certas funções ou tendências que, devido à sua natureza coletiva, se opõem às necessidades individuais.
Porém, aqui temos o grande risco da inflação do ego que pode levar a uma patológica vontade de poder.
Isso, porque a psique coletiva compreende as partes inferiores das funções psíquicas que abrigam todas as virtudes e os vícios da humanidade e todas as outras coisas; ela é herdada e funciona automaticamente. Já o consciente e o inconsciente pessoais constituem as partes superiores, adquiridas e desenvolvidas. E o indivíduo que incorpora inconscientemente e a priori a psique coletiva, como se essa fosse parte da psique pessoal, tenderá a estender de modo ilegítimo os limites de sua personalidade (JUNG, 2014, §235).
Jung destaca que se cometemos o erro de incluir a psique coletiva no inventário das funções psíquicas pessoais, ocorrerá inevitavelmente uma dissolução da personalidade em seus pares antagônicos.
A intenção é podermos assimilar o inconsciente, reconhecendo que somos parte da psique coletiva, mas há uma tarefa atrelada ao desenvolvimento da personalidade que é também nos diferenciarmos dela, caso contrário isso equivaleria a uma “perda da alma”. Isso se explicaria pelo fato de uma realização pessoal importante ser negligenciada, entretanto, para isso precisamos reconhecer a natureza irreconciliável dos opostos, aceitar o que há de bom e de mal em nós, assim como o que podemos alcançar e o que de fato não podemos alcançar (JUNG, 2014, §237-240).
Pensar em ter outra pessoa como referência para aquilo que almejamos pode ser algo motivador, como uma inspiração mas, por outro lado também corremos o risco de perdermos nossa autenticidade, cabendo aqui uma fala de Jung ele onde fala sobre nossa tendência à “macaquice” ao citar que “o homem possui uma faculdade muito valiosa para os propósitos coletivos, mas extremamente nociva para a individuação: sua tendência à imitação”, mas nos ajuda a refletir ao concluir dizendo que “para descobrirmos o que é autenticamente individual em nós mesmos, torna se necessária uma profunda reflexão; a primeira coisa a descobrirmos é quão difícil se mostra a descoberta da própria individualidade.
Além do reconhecimento desse aspecto irreconciliável dos opostos, talvez seja importante também pensar que a não aceitação de nossas limitações pode nos cegar para enxergarmos os aspectos divinos em nós, aqueles que buscam realizar-se através de nós e dos quais podemos e devemos usufruir.
E a cegueira para esses aspectos pode nos fazer mergulhar em um grande abismo, havendo inclusive o risco da hybris, que se caracteriza por uma identificação com o padrão arquetípico que leva inflação do ego, que assume uma posição de superioridade e sem conexão com o Self.
Apenas aceitando nossas limitações é que poderemos cumprir nosso destino, não por nos tornarmos resignados frente a nossas limitações, mas potencializados pelos poderes divinos que nos foram atribuídos e aos quais devemos reconhecer e nos colocar a serviço, para que possamos ajudá-los a se realizar em todas as suas potencialidades.
A inflação do ego é que pode nos levar a acreditar que tudo podemos, tudo alcançaremos, que podemos dar conta de tudo, sem olhar para nossas limitações até que aparece algo em nossas vidas que nos surpreende, mostrando nossas limitações sejam doenças, demissões, traições, situações diversas que nos mostram que não somos só poder e glória, somos também fraqueza e miséria. Eis os opostos ai!
Só poderemos deixar nosso nome escrito na pedra como assim buscava Gilgamesh quando vivermos nossa própria vida, alinhada ao Si-mesmo, reconhecendo que as potências que vejo no outro, podem existir em nós, porém, com nossas próprias roupagens e que fazendo uso delas é que poderemos ampliar pouco a pouco nossos limites.
O conceito de individuação pode contribuir para uma melhor compreensão desse aspecto, visto que na busca de tornar-se um ser único, buscamos nossa singularidade mais íntima. Jung coloca a tradução de “individuação” como “tornar-se si-mesmo” (Verselbstung) ou “o realizar-se do si-mesmo” (Selbstverwirklichung) (2014, §266).
A busca de um ideal coletivo desvinculado do nosso Si-mesmo pode nos levar a grandes sofrimentos.
Já a individuação, que significa a realização melhor e mais completa das qualidades coletivas do ser humano e que implica no não esquecimento das peculiaridades individuais é que de fato será fator determinante de um melhor rendimento social. A individuação é um processo de desenvolvimento psicológico que deve facultar a realização das qualidades individuais dadas, é um processo no qual o homem se torna o Ser único que de fato é. (JUNG, 2014, §267)
Nos permitimos nos iludir pelo mundo, pela sociedade, pelo entorno, por uma inflação do ego, pelo fato de sucumbirmos e acreditarmos que precisamos de mais e mais e que a vida nos exige mais e mais. Assim, a sensação de falta, insuficiência, incompletude permeia nossa existência trazendo angústia. E como lidar com tais sensações?
A comparação vem de nós mesmos e é reforçada pela imagem que temos do outro, se nos permitirmos mergulhar nesse abismo, como profissionais corremos o risco de nos afogarmos envolvidos em textos, artigos, livros, vídeos, filmes, relatos de experiências nunca é o bastante, sempre falta.
Lidar com o algoz que habita em cada um de nós é angustiante, especialmente quando o enxergamos refletido em nossos pares. O devaneio da completude poderia ser compreendido como uma hybris? Os deuses não se ofenderiam com nossa prepotência de poder e de saber?
A meta da individuação implica em despojar o Si-mesmo dos invólucros falsos da persona, assim como do poder sugestivo das imagens primordiais (JUNG, §269, 2014), sendo importante que o indivíduo aprenda a distinguir entre o que parece ser para si mesmo e o que é para os outros (JUNG, 2014, §310).
Podemos pensar que a busca por aquilo que percebemos como “nossa incompletude” pode nos impedir de enxergar a divindade que já nos habita, e que poderia nos levar ao encontro de nossa completude, o processo de individuação.
Patricia Cordeiro – Membro Analista em formação IJEP
Ajax Salvador – Membro Analista Didata IJEP
Referência:
JUNG, C.G. O Eu e o Inconsciente. 27.ed. Petrópolis: Vozes, 2015.
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