O termo arquétipo não foi cunhado por Carl Jung (OC,9/1,§1), mas sua imensa contribuição se deu quando usou a ideia de arquétipo no sentido psicológico.
Jung explica que os conteúdos do inconsciente coletivo são os arquétipos. Segundo Jung em OC,9/1, §5:
¨…estamos tratando de tipos arcaicos – ou melhor – primordiais, isto é, de imagens universais que existiram desde os tempos mais remotos. ¨
De uma forma mais clara, podemos dizer que o arquétipo é um molde psíquico, onde as experiências pessoais e coletivas são arquivadas, tomam forma e posteriormente se manifestam na vida das pessoas. Neste contexto, encontramos como um dos arquétipos mais importantes o da mãe, ou complexo materno, denominação usada para a manifestação do arquétipo na psique individual. Sobre este tema, foram feitas inúmeras pesquisas, tanto pelo próprio Jung, como por seus seguidores, muito se foi falado sobre a imagem arquetípica da mãe, que está por trás do complexo de mãe do indivíduo.
Em toda a obra sobre este assunto, podemos perceber que a importância da mãe na vida de todos os seres humanos é indiscutível, sendo esta responsável, inclusive, pela capacidade de um indivíduo em se relacionar e ter intimidade.
Quando essa mãe está tomada por um dos aspectos negativos deste complexo, temos o que comumente chamamos de mãe devoradora, ou seja, aquela que acredita que o filho lhe pertence de alguma forma, que se ofende quando tal não se desenvolve ou não acata aos seus comandos.
Na clínica, temos exemplos abundantes desse tipo de situação. Quem não conhece esse tipo de mãe?
Ela, de alguma forma, nos lembra Deméter, uma grande mãe, que vivia para sua filha e através dela, e na falta desta caiu em total desespero, tornando-se incapaz de exercer suas próprias obrigações. Passando aqui o enfoque aos filhos dessa mãe – não nos cabe especular como deveriam ser os sentimentos de Perséfone, mas sim dos filhos contemporâneos dessa mãe que, diferente de Deméter, que é um feminino ferido e amoroso, muitas vezes são pura e simplesmente castradoras, narcisistas e/ou com feridas transgeracionais carregadas via inconsciente coletivo da família, e que, se não analisadas, ampliadas e ressignificadas, certamente serão passadas para sua prole e assim por diante.
Ainda sobre o complexo materno:
̈O arquétipo materno é a base do chamado complexo materno. (…) segundo minha experiência, parece-me que a mãe sempre está ativamente presente na origem da perturbação, particularmente em neuroses infantis ou naquela em cuja etiologia recua até a primeira infância.¨ (OC 9/1,§161)
Sobre tal efeito, Jung esclarece que, devido ao contato inicial se dar com esta figura, e pela sua importância na vida de todo indivíduo, a mãe acaba adquirindo uma parte da numinosidade do próprio arquétipo, por isso é comum que a mãe pareça sagrada de alguma forma e, por isso mesmo, livre de repreensões, como se esta pessoa fosse livre de erros comuns ao ser humano.
Conclui ainda que os efeitos de um complexo materno negativo difere no filho e na filha (OC 9/1,§162). Claro que respeitando a individualidade e as possibilidades infinitas dos possíveis impactos na vida de cada um, Jung descreve aquilo que empiricamente pode comprovar e posteriormente documentar, para fins didáticos.
No filho, os efeitos típicos podem ser o dom-juanismo e, eventualmente, a impotência. Claro que devemos levar em consideração que o complexo materno no filho nunca é puro, na medida que existe dessemelhança devido ao sexo, essa é a razão pela qual a anima do parceiro sexual exerce um papel importante (OC 9/1,§162).
Descreveremos aqui um contexto mostrado no dorama Meninos Antes de Flores, nome comumente difundido na atualidade para novelas asiáticas, trata-se da palavra drama no japonês テレビドラマ, aqui no Brasil chamamos este tipo de entretenimento de novela ou minissérie. Trata-se do dorama Boys Over Flowers ou Boys Before Flowers, um drama sul-coreano baseado no mangá shōjo japonês Hana Yori Dango (em japonês: 花 より 男子), escrito por Yoko Kamio.
Para situar o leitor no contexto da história, vamos expor sua sinopse:
Jan Di é uma garota comum de origem humilde que mora com seus pais e seu irmão mais novo, e trabalha na lavanderia da família fazendo as entregas das roupas dos clientes. Ela não é uma garota rebelde e nem gosta de criar confusões, mas quando é para ajudar seus amigos ou não deixar que a humilhem, faz o que é preciso para se defender. Certo dia, enquanto levava a roupa de um estudante da Escola Shinhwa, considerada a melhor do país, Jan Di o salva do suicídio, sem saber o porquê de tal ato. Com isso ela ganha uma bolsa de estudos nessa mesma escola, algo que ninguém nunca havia imaginado antes, já que a escola é de elite e apenas para a nata da sociedade. De início ela não aceita a proposta para frequentar tal escola, mas pela pressão da família acaba cedendo, sem saber o que lhe espera. Na escola, quatro jovens chamados F4 (Flower Four), possuem o respeito de todos e usam do poder para humilhar os estudantes. Para ajudar uma amiga, Jan Di acaba enfrentando o líder do grupo, Gu Jun Pyo, sem pensar duas vezes, e esse, revoltado por tal insolência, faz sua vida impossível dentro da escola. Mas ela não desiste e sempre acaba ridicularizando. Com o passar do tempo ele percebe que é apaixonado por ela, porém a garota começa a sentir algo mais por outro membro do F4, Yoon Ji Hoo, um rapaz frio e fechado, mas que aos poucos, e por causa dela, começa a se abrir ao exterior e ao amor, tornando-se rival do seu amigo Gu Jun Pyo.
Nesta história, encontramos o personagem Gu Jun Pyo, que possui esta mãe que descrevemos acima: autoritária, abusiva, controladora, e absolutamente inflexível, que domina quase todos os aspectos da vida deste filho, ela vive através dele. Seu sucesso e todas suas atitudes de agora e do futuro devem assentar na projeção de contribuir ou refletir o próprio sucesso, como mãe e como empresária bem-sucedida que é, no contexto em que aparece no dorama ela quer inclusive escolher a profissão e a esposa do filho para tal intento. Ela vive através deste filho. Falta-lhe amor? Não sabemos, esta pergunta só pode ser respondida pelo próprio indivíduo em cada situação particular. O que nos importa aqui observar é que esta situação comumente vemos na vida cotidiana, nos consultórios e ao nosso redor.
No mesmo dorama, encontramos outro exemplo desta mãe agora na dita classe C, na mãe (e pai) da personagem Jan Di, onde estes pais, ambos tomados pelo aspecto negativo do complexo materno além de viverem e projetarem suas vidas não vividas nesta filha, querendo escolher por ela a fim de também alcançarem suas ambições e objetivos, mas percebamos que a questão aqui vai muito além desta ambição , se trata do seguinte: Não é você quem vive e sim eu quem vivo através de ti.
Podemos concluir desta parte que este tipo de mãe (e pai), tomados por um complexo materno negativo, pode ocorrer em qualquer lugar e em qualquer classe social, a depender da vivência e carga transgeracional de cada um, nunca nos esquecendo que o arquétipo é uma forma vazia, a ser preenchida, e o que a preenche? As imagens arquetípicas, que são justamente as vivências pessoais, a história da família, principalmente no que concerne a três gerações atrás, sem esquecer do espírito do nosso tempo.
Na mulher, Jung viu outras possibilidades como resultado dessa mãe: a hipertrofia do aspecto maternal, a exacerbação do Eros, a identificação com a mãe e a defesa contra a mãe.
Gostaríamos de destacar um dos aspectos descritos por Jung, por meio das observações de diferentes casos clínicos, onde as mulheres eram totalmente dependentes dessa mãe, apresentando muitos aspectos de PUELLA, se sentiam incapazes. Isso acontece com frequência, uma vez que essa mãe, como o nome pressupõe, domina todos os aspectos, como se só ela fosse capaz e sem ela os filhos não pudessem dar continuidade à vida.
Geralmente ocorrem com jovens entre 25 a 40 anos, filhas únicas ou única filha mulher entre homens mais velhos, bom nível de formação, mas com círculo de amizades restrito. Algumas trabalhando em empresa da família, onde seu salário não era apenas fruto de seu trabalho e sim uma ajuda financeira que lhe concediam para pagar suas pequenas despesas. Uma visão um tanto deturpada, mas real, visão de algumas mulheres que chegam em clínicas e consultórios com sintomas de ansiedade e depressão. Pessoas que não se valorizam profissionalmente, muito menos em seus relacionamentos.
São jovens com muitos medos: medo de não conseguirem se relacionar e constituir uma família; medo de não conseguir evoluir profissionalmente e se manter na posição de “menininha da mamãe”; medo de continuarem submissas aos familiares e não atingirem a autonomia financeira e, finalmente, de sair de casa, constituir uma família e se libertar deste sentimento de inferioridade moral e/ou intelectual, onde consideram-se feias aos olhos dos pais, companheiros e de outras pessoas ao redor. A maneira que usam em acusar os pais remete ao alívio da própria culpa, algo que é conveniente e momentâneo.
A filha, acometida pelo medo mortal dessa mãe devoradora que devora sua juventude e projeta seus anseios, frustrações e expectativas, acaba fugindo da realidade, isolando-se e permanecendo nesta persona de “menininha da mamãe”.
Durante o processo terapêutico, algumas jovens, ao mesmo tempo que queriam se libertar dessa mãe autoritária e perseguidora, se sentiam culpadas das vezes que saíam de suas casas ou se negavam a fazer as coisas que a mãe ordenava. Liberdade? Libertação? Como pensar no sentido dessas palavras que exprimem sentimentos avassaladores e geram ações inoportunas e inadequadas nesta fase da vida?
Com o passar do tempo e a evolução do processo terapêutico, as mudanças começam a dar sinais. Sinais de angústia, rejeição, sentimento de culpa por pensar “mal” da mãe, que, como Jung menciona, é vista como numinoso, um ser sagrado, aquela que sustenta e nutre. Será que era pensar mal ou tomar consciência de todo mal que sua mãe lhe causara?
Quanto mais nos aprofundarmos e analisarmos a trajetória dessas mulheres, nos deparamos com femininos massacrados, não-vividos, adulterados. Para o desenvolvimento pessoal e psíquico, num processo analítico, temos que levar à consciência as próprias sombras. Um aspecto em comum e muito relevante entre essas mulheres é a compulsão alimentar.
Observa-se que, em diferentes momentos, sentimos fome, em momentos de raiva principalmente. Sentir fome, comer, comer em demasia. Daria sensação de alívio, como se fosse um sistema de recompensa e punição. Uma colocação totalmente paradoxal e, ao mesmo tempo, ambígua. Alívio ou punição? Alívio por saciar sua fome de amor e de raiva, a fúria presente dentro dela e punição por ainda não saber enfrentar os seus problemas e não reagir diante da vida.
Segundo Jung (1985), o fenômeno da fome, o ato de comer é visto como um instinto psiquificado, ou seja, que os instintos, enquanto forças psíquicas motivadoras do processo de desenvolvimento da psique, ao ser ligado à consciência humana, podem ser modificados, transformados em outros fins, por meio das necessidades internas nos diferenciando dos animais.
“A fome como expressão característica do instinto de autoconservação é, sem dúvida, um dos fatores mais primitivos e mais poderosos que influenciam o comportamento humano. A vida do homem primitivo, por exemplo, é mais fortemente influenciado por ele do que pela sexualidade. A este nível, a fome é o A e o O da própria existência.” (OC 8/2, §237).
Assim podemos entender melhor o que ocorre com algumas mulheres ao comer: agindo instintivamente, são impulsionadas por um estímulo que gera o ato de comer. O alimento age como um sistema de compensação, saciando momentaneamente sua fome. O sentimento de raiva vive enjaulado, sua energia está agora bloqueada em seu próprio corpo e ela sente-se incapaz de libertá-la.
Quando conseguimos compreender os efeitos que a criação teve sobre nós, começamos a compreender a nós mesmas, a nos curarmos, e a sermos capazes de assimilar o que pensamos de nosso corpo ou a explorar o que consideramos possível conseguir na vida.
No decorrer do processo terapêutico, tomamos consciência das nossas sombras, sentindo e tentando transformar as expectativas frustrantes em ações conflitantes, elaborando e fortalecendo o ego. Ego fraco leva à incapacidade de lidar com a própria realidade fugindo para uma fantasia delirante e inflada.
Trazendo às sessões temas relacionados ao feminino, castração e sexualidade, desde sua infância até a fase adulta, podemos trazer à tona a oportunidade de nos relacionarmos com o próprio corpo e, consequentemente com outras pessoas. Apesar de causar sofrimento, trabalhando com os aspectos sombrios, desenvolvemos a aceitação do corpo e, gradativamente, libertamos o lado criativo.
Cada psique individual tem sua própria realidade peculiar, apesar de seres distintos. Tanto no homem como na mulher, podemos observar que o complexo materno negativo possui algumas características semelhantes: as mães não querem que seus filhos cresçam, sabotam a autonomia de seus filhos, não por serem boazinhas, mas sim para terem o controle. Controlando-os através de seus relacionamentos restritos, tornando-os dependentes financeiros, reprimindo seus sentimentos e ocasionando uma mistura de depressão, ansiedade, raiva, sexualidade reprimida.
O caminho para a ressignificação deste complexo e pelo encontro do indivíduo com a sua mãe interior é diverso, e pode na verdade nem acontecer, dependendo dos ganhos secundários, da disponibilidade interior e prontidão de cada um, mas acreditamos que ele necessariamente passa pelo fortalecimento do ego, tomada de consciência da sua realidade, que muitas vezes ocorre após a reconexão com o corpo, muito embora Jung descreva o corpo e a psique como um só, nestes indivíduos é visível a desconexão deste corpo, até mesmo das sensações.
Elaine Bedin e Natalhe Costa
Analistas em formação pelo IJEP, em São Paulo
Jung, C. G. (1985). Natureza da psique. In Obras completas de C. G. Jung (Vol. 8/2). Rio de Janeiro: Vozes.
JUNG, C.G. Os Arquétipos e o inconsciente Coletivo – 11. Ed. OC 9\1 Petrópolis, RJ: Vozes,2014.