Maquiar-se é um costume humano que pode ser datado desde o Egito e a Mesopotâmia. Pinturas rupestres e os murais egípcios apontam que desde essa época o ser humano usava as pinturas faciais como ferramenta de proteção, diferenciação, religiosidade ou simples adorno corporal. Os povos indígenas também são adeptos da prática da pintura corporal e facial pelos mesmos motivos. Atualmente a maquiagem faz parte do rol de produtos de estética e beleza, assim como dos materiais das artes dramáticas principalmente.
A pintura facial é uma prática antiga da humanidade e não é realizada apenas com fins estéticos. Maquiagem é derivado do francês maquillage que significa “pintar o rosto”. A maquiagem ajuda a realçar os traços naturais do rosto, criando efeitos que o iluminam e revelam sua beleza, ao mesmo tempo que pode encobrir pequenas imperfeições (SOUZA e MACHADO, 2019). Podemos estender também seu significado para expressões criativas com as maquiagens artísticas e as do cinema e das artes dramáticas, cuja função é transformar a aparência.
O uso da pintura facial data desde antes de Cristo com egípcios, mesopotâmicos, gregos e romanos. Há indícios de que até os homens das cavernas já pintavam os seus rostos para eventos, guerras e ritos religiosos (SOUZA e MACHADO, 2019). Os materiais utilizados nos primórdios da pintura facial eram de origem natural, principalmente extratos de vegetais e minerais, com destaque para o kohl, uma mistura de fumo, minérios de chumbo e estanho utilizada principalmente ao redor dos olhos (ibid.). Nos povos indígenas no Brasil encontramos uma coloração vermelha, oriunda principalmente do extrato do urucum e o jenipapo com uma coloração preta ou azul bem escuro, utilizadas até hoje (FUNAI, 2022). Antes do surgimento da indústria, como muitas outras coisas, os cosméticos eram feitos em casa, com receitas de família (LANÖE, 2019; SOUZA e MACHADO, 2019).
O hábito de pintar o rosto não era exclusivo das mulheres, como é mais comum hoje em dia.
Os homens costumavam se maquiar também, principalmente nos momentos de guerra, caça e rituais religiosos. Na guerra e na caça com os objetivos de camuflagem e de assustar os inimigos e nos rituais religiosos como maneira de destaque principalmente aos sacerdotes. No Egito, o uso não se restringiu ao estético, mas com fins de cuidado com a pele, protegendo do brilho do sol e contra doenças, isso em 3.200 a. C. (SOUZA e MACHADO, 2019).
Os gregos e os católicos se incomodaram com a excessiva preocupação das pessoas com a aparência, representada pelo uso da maquiagem e proibiram ou restringiram seu uso em momentos da história. Os gregos diziam que a beleza deveria estar no corpo e no espírito, e não no rosto. Os católicos, durante a Idade Média, pregavam que o culto à higiene e à beleza eram profanos, e que as doenças oriundas da falta de higiene só poderiam ser curadas por intervenção divina e a maquiagem alterava a beleza original das mulheres (SOUZA e MACHADO, 2019).
A maquiagem também encontrou inimigos no parlamento inglês no século XVIII, que dizia que uma mulher que seduzisse um homem para matrimônio com artifícios como pinturas, dentes artificiais, perfumes e outros cosméticos poderia incorrer nas penalidades da lei contra bruxaria, e casamentos poderiam até ser anulados caso a mulher usasse a maquiagem no processo de sedução (SOUZA e MACHADO, 2019).
No mesmo século XVIII se inicia a demarcação dos limites do uso da maquiagem e se aprofunda a restrição do uso da mesma pelos homens, tornando-se então um adereço praticamente reservado e identificado com o sexo feminino. Não raramente, havia manifestações contra o uso de qualquer tipo de maquiagem pelos homens, restava a eles apenas o uso de pó nas perucas, sabão de barbear e tônicos capilares assim como se criticava o excesso nas mulheres (LANÖE, 2019). Essa delimitação vem no rastro de uma crítica aos nobres e a aristocracia, que se entupiam de adereços e pinturas para demonstrar destaque social, e passam de uma crítica religiosa, no sentido de que a maquiagem e os adereços corrompem e ocultam a obra de Deus, para uma crítica secular sobre refinamento, principalmente voltada às mulheres (id.).
O uso da maquiagem como produto de consumo se consolida em meados do século XX com a ascendência das estrelas de Hollywood e a introdução da mulher no mercado de trabalho, que fez com que a produção caseira se tornasse difícil e as maquiagens prontas fossem mais atraentes (SOUZA e MACHADO, 2019).
A maquiagem entra no rol das expressões criativas como complementar às artes plásticas e dramáticas e ocupa um lugar ao lado da máscara.
Ao falar das máscaras, Philippini (2018, p. 99) traz a perspectiva de que “o que foi feito para encobrir, revela” e complementa: “não há nada mais revelador que as máscaras que escondem um rosto, sejam elas feitas com materiais de modelagem ou, simplesmente, através da maquiagem”.
Entendo máscara e maquiagem como similares, mas não idênticas. Ao contrário da máscara, a maquiagem não pode ser tirada rapidamente e a qualquer momento, ela adere à pele e necessita de um tempo para ser totalmente removida. Ao trazer essa informação é importante a reflexão sobre a identificação com a persona, que adere à pele e muitas vezes se confunde com ela, mas pele não é.
Para Jung:
Quando usamos uma maquiagem, no sentido comum do dia a dia, a intenção é encobrir defeitos e destacar qualidades do rosto, tal qual fazemos com nossas características quando aderimos fortemente à tentação de identificação com a persona. A persona é, pois, um complexo funcional que surgiu por razões de adaptação ou de necessária comodidade, mas que não é idêntico à individualidade. O complexo funcional da persona diz respeito exclusivamente à relação com os objetos externos. (JUNG, 2015)
Além disso, a experiência sensorial do material sobre o rosto pode ser incômoda, ou ainda, a impossibilidade de suar, chorar, comer, beber sem que deixe algum vestígio no rosto ou nos objetos, diferencia a maquiagem, que deixa marcas temporárias na pele ou no desenho. Uma máscara é capaz de esconder um choro, um revirar de olhos, um toque no rosto, mas a maquiagem, não tem essa mesma capacidade. Triolo-Rodriguez (2023) classifica a experiência de maquiagem como multissensorial, de toque e autoexpressão, pelas cores e uma forma de arte.
A diferença entre uma máscara e uma maquiagem parte desde o processo da sua elaboração até o momento do encerramento do seu uso.
A maquiagem traz um componente sensorial à experiencia de confecção da pintura. O processo de pintura facial coloca a pele em contato com substâncias líquidas, sólidas, viscosidade, pó etc que possibilitam a iluminação, destaque, sombreamento, ocultação, alteração de forma, tamanho, volume de estruturas. Tudo isso acompanhado de uma sensação tátil em uma pele sensível como a do rosto.
A máscara por si, pode até ser moldada no rosto, mas não tem a capacidade de alterar, mesmo que temporariamente, a percepção sobre sua forma. Ela o esconde. A maquiagem faz com que a pessoa tenha que lidar com o que vê, e com o que sente, e no processo pode se conscientizar de seu próprio corpo e imagem.
A maquiagem também adere à pele do rosto e se move quando este se move, podendo dar novos olhares a expressões faciais e revelar ou esconder aspectos do rosto.
A remoção da maquiagem é outro processo único, que pode ser até desconfortável e desvela novamente o rosto por trás da pintura e muitas vezes pode deixar vestígios de sua presença durante mais tempo. Todo esse processo constrói, revela, esconde e destaca aspectos faciais muitas vezes desconhecidos da própria pessoa. Remover a maquiagem foi um alívio ou um medo? Colocar a maquiagem evocou quais sentimentos? O que a pintura revela ou esconde sobre você?
O processo de remoção da maquiagem também pode ser uma vivência interessante para pessoas que não conseguem se colocar no mundo sem antes de cobrir (ou revelar?) com uma bela camada de maquiagem, ou seja, usam a pintura facial como máscara e não como acessório. Nesses casos é interessante o convite a remover a máscara e encontrar o que se esconde, quais vulnerabilidades podem estar abafadas, não faladas e não observadas, aumentando gradativamente no esconderijo inconsciente (Adaptado de Triolo-Rodriguez, 2023).
O uso da maquiagem como técnica de expressão criativa pode criar um espaço seguro para o cliente tentar novos papéis na vida, dando voz aos personagens internos, ou ainda se livrar de alguns personagens criados, podendo experimentar a vivência do ator de entrar e sair do personagem, sem se identificar com ele, experimentar e redefinir normas sociais e culturais da sociedade.
Ao explorarmos as facetas (perdão pelo trocadilho) do material de pintura facial, brincamos com os diversos aspectos envolvidos na díade persona-sombra.
A brincadeira de esconder e revelar é típica da interação desses dois aspectos da psique, quando uma persona não é construída como resposta a aspectos sombrios, dessa forma, quando olhamos para a persona a fundo, podemos ver um aspecto complementar residente na sombra ou no inconsciente. Quando pinto um novo rosto, quem é esse personagem interno que se revela, ou qual personagem ele pode estar tentando esconder? Com o rosto pintado, convida-se o indivíduo a criar em cima daquela imagem aderida à sua pele: que voz tem esse rosto que agora se apresenta? O que ele diz? Quais são suas motivações?
Nesse sentido invoco Philippini (2018) que diz:
Cada símbolo produzido poderá ser compreendido simultaneamente em relação ao seu criador, nas suas ressonâncias subjetivas e biográficas e, paralelamente, também em seus aspectos universais e arquetípicos. O processo de amplificação simbólica passa por um olhar atento ao “rastreamento cultural” na procura de pistas e registros de sentidos arquetípicos e universais do símbolo pesquisado em referências diversas (PHILIPPINI, 2018).
A maquiagem como expressão criativa pode ser usada de maneiras diversas. E se, ao invés de esconder imperfeições na face, as destacássemos? O que as imperfeições escondidas podem revelar sobre a pessoa que as esconde? Pode-se também pedir que desenhe formas, use cores, crie um personagem com base no que a expressão revela. Por não ser feita necessariamente por artistas, a maquiagem como expressão criativa pode muitas vezes mostrar uma configuração que talvez nunca se repita e se vá conforme o demaquilante age.
Uma reflexão da maquiagem é que, por mais que esteja aderida à pele, e possa até ser confundida com ela, a maquiagem não é a pele, remover a maquiagem pode ser um exercício interessante de remover uma persona aderida e a possibilidade de se encontrar com sua individualidade. Ao se realizar o ciclo: pintar, analisar e remover exercitamos com o cliente uma forma de tratar as personas assim como as pinturas faciais, de maneira transitória e entender que só transformam temporariamente o rosto e criam a percepção da mudança da forma, no entanto, o rosto continua o mesmo por debaixo da pintura.
Quando convidamos então, como exercício terapêutico, a remoção da maquiagem ou ainda sugerir que, ao invés de esconder características indesejadas passe a destacá-las, estamos convidando a individualidade oculta a que se revele, uma vez que a persona é um pacto com a coletividade.
Para Jung:
A atitude meramente pessoal da consciência produz reações da parte do inconsciente e estas, juntamente com as repressões pessoais, contêm as sementes do desenvolvimento individual, sob o invólucro de fantasias coletivas (JUNG, 2014). Quando convidamos o cliente a expressar-se pela maquiagem fica a questão, quem se manifesta naquele novo rosto? Quais personagens internos se revelam quando destacamos as imperfeições ao invés de escondê-las? Não há resposta certa a priori, cabe apenas a ampliação e circuambulação, estabelecendo um diálogo entre os aspectos escondidos e revelados, em busca do terceiro oculto.
Observa-se que não tratamos nesse artigo de maquiagens transformadoras de indivíduos em outras espécies (animais, plantas etc).
Mauro Ângelo Soave Jr – Membro Analista Didata em formação
E. Simone Magaldi – Membro didata
Referências:
FUNAI (Fundação Nacional do Índio). Pinturas corporais indígenas carregam marcas de identidade cultural. 29 mar 2022. Disponível em: https://www.gov.br/funai/pt-br/assuntos/noticias/2022-02/pinturas-corporais-indigenas-carregam-marcas-de-identidade-cultural , acesso em 18 jun 2024.
JUNG, Carl G. O eu e o inconsciente /O.C 7/2. Petrópolis. Vozes. 2014
JUNG, Carl G. Tipos Psicológicos. O/C 6. Petrópolis. Vozes, 2015.
LANÖE, C. A maquiagem tem um gênero? Olhares sobre a maquiagem masculina. Tradução de Thiago Mattos. VOLUME 12 | NÚMERO 25 | ABRIL 2019 https://dobras.emnuvens.com.br/dobras | e-ISSN 2358-0003
PHILIPPINI, Angela. Linguagens e Materiais Expressivos em Arteterapia: uso, indicações e propriedades. Rio de Janeiro, Wak Ed. 2018.
STRICKLAND, Fernanda. Mercado de beleza atingirá cerca de US$ 580 bilhões até 2027, aponta pesquisa. Correio Braziliense. 13 fev 2024. Disponível em https://www.correiobraziliense.com.br/economia/2024/02/6802132-mercado-de-beleza-atingira-cerca-de-uss-580-bilhoes-ate-2027-aponta-pesquisa.html, acesso em: 19 jun 2024.
TRIOLO-RODRIGUEZ, Rhys. “Exploring Core Concepts and Uses of Makeup in Expressive Arts Therapy and Mental Health: A Critical Review of the Literature” (2023). Expressive Therapies Capstone Theses. 698. https://digitalcommons.lesley.edu/expressive_theses/698. Acesso em 20 jun 2024.
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