RESUMO: Esse artigo, de motivação pessoal, aborda a expressão criativa de se fazer um mosaico, no processo terapêutico, como uma oportunidade de se trabalhar os complexos e reintegrá-los à totalidade psíquica, facilitando a reorganização do mundo interno do indivíduo.
INTRODUÇÃO
Tenho em casa um jogador mirim de futebol, que sonha muito em um dia ser jogador profissional. Seu corpo, mesmo que ele se esforce, não consegue parar de chutar a bola o tempo todo, da hora que sai da cama, até a hora do boa noite. Pouco tempo atrás, ele acertou a bola em uma prateleira muito alta, onde eu acreditava que meus objetos favoritos estariam protegidos do seu talento futebolístico. Me equivoquei, pois um vaso, que tinha um valor emocional muito significativo para mim, despencou lá de cima e, sendo de cerâmica, partiu-se em diversos pedaços e muitos farelos.
Por saber do meu apreço pelo vaso, meu filho chorava e me abraçava, completamente decepcionado consigo mesmo. Logo que comecei a varrer os cacos, ele me pediu pra que não os jogasse fora, pois ele daria um jeito de colar. Apesar de estar totalmente descrente da eficácia de sua ideia, resolvi guardar os pedaços, para que houvesse uma chance dele se retratar, ainda que apenas em tentativa. Na mesma noite do ocorrido, quando meu marido chegou em casa, ao saber do “caso” do vaso partido, ele me contou que no dia seguinte filmaria uma cena de vaso se quebrando, com a presença no set de filmagem de um restaurador, que usaria uma técnica japonesa para colar os pedaços. Pôde então ser concretizado o desejo muito sincero de uma criança arrependida de sua “boa” pontaria.
A técnica citada é chamada de Kintsugi, que significa “emendar com ouro”.
A técnica consiste em misturar cola com pó de ouro, prata ou platina para recuperar cerâmicas e porcelanas. Surgiu no Japão, no século XV, quando o xogum (mais alto título militar concedido pelo imperador) Ashikaga Yoshimasa enviou à China uma cerâmica quebrada para ser restaurada. Não satisfeito com o resultado, que utilizou grampos metálicos para juntar os pedaços, o xogum pediu para que artesãos japoneses desenvolvessem outra maneira de consertar a peça. Esses artesãos, ao invés de tentarem disfarçar as emendas entre os pedaços partidos, usaram ouro para colá-los e, assim, evidenciar as falhas. Com isso, os defeitos e imperfeições não foram mais escondidos, mas valorizados, trazendo uma nova beleza para a peça. Assim, a técnica Kintsugi permitiu que o objeto ganhasse novo uso após seu dano ou ruptura (Cf. HATANAKA, 2023, sp).
Graças ao Kintsugi, meu filho teve a possibilidade de reparar algo muito importante dentro de si.
Ele teve a chance de fazer algo novo surgir dos cacos e me presenteou com um objeto novo, diferente do antigo, mas com um significado muito mais importante para mim.
Essa situação me fez pensar no uso do mosaico como recurso, dentro de um setting de arteterapia, de possibilidade de ressignificação de uma dor ou até mesmo de conteúdos psíquicos rompidos de nossos clientes. Antes de entrarmos nessa reflexão, vamos conhecer um pouco da sua história como expressão artística.
UMA BREVE HISTÓRIA DO MOSAICO
A palavra mosaico, de origem grega, significa “paciência digna das musas”. “Paciência porque requer concentração e muita atenção para executá-lo, e digna das musas por se tratar de um trabalho de uma beleza rara e magnífica” (MEDEIROS; BRANCO, 2012, p. 39). O mosaico é considerado, assim como a pintura e a escultura, uma das primeiras manifestações culturais do ser humano. Pesquisas indicam que a técnica tem origem nas civilizações antigas, como Egito e Mesopotâmia. Segundo historiadores, o primeiro mosaico produzido data de 3.500 a.C, na antiga cidade de Ur, sendo composto por dois painéis realizados em mármore, arenito vermelho e conchas, que eram carregados em procissões.
“A obra retrata a guerra e a paz, com cenas do cotidiano de uma sociedade que utilizava veículos de transporte e de combate com características bem rudimentares.”
(MEDEIROS; BRANCO, 2012, p. 40)
No Egito, os mosaicos eram usados para ornamentar as paredes e colunas dos templos com pedras preciosas e vidro. Já na Grécia, os mosaicos eram usados para pavimentar os pisos, retratando cenas com motivos mitológicos e recriando situações de lutas e caças de animais. Quando os romanos conquistaram a Grécia, assimilaram diversas formas de arte, incluindo o mosaico. Neste período, começou a ser usado em basílicas onde eram reproduzidas cenas bíblicas. O mosaico passou então a ser um elemento de difusão do Cristianismo, adquirindo um caráter majestoso de riqueza e poder (Cf. MEDEIROS; BRANCO, 2012, p. 40-43).
Bem mais tarde, no começo do século XX, o arquiteto catalão Antonio Gaudí, utilizou-se do mosaico para conciliar arquitetura e decoração, rompendo com a sua estrutura plana. A técnica chegou no Brasil, sendo utilizada em várias construções espalhadas pelo país, principalmente como revestimento externo. As primeiras cidades a adotarem a técnica, que foi trazida pelos franceses e italianos, foram São Paulo e Rio de Janeiro. Nesta ultima cidade, “as calçadas também ganharam graça e beleza com a iniciativa do prefeito Pereira Passos, quando, em 1905, pavimentou a Avenida Central – hoje Avenida Rio Branco” (MEDEIROS; BRANCO, 2012, p.43).
USO DO MOSAICO NA ARTETERAPIA
Assim como o vaso despedaçado e depois restaurado, o mosaico permite que peças inteiras de azulejos sejam quebradas para, então, criar e transformar seus múltiplos cacos em uma nova peça, uma nova unidade.
“A produção da peça depende de cada caco encaixado adequadamente na composição da imagem. Um caco que se encaixa em uma determinada parte não cabe na outra.”
(MARQUES, 2024, p. 9)
Do mesmo modo que o mosaico, também somos feitos de pedaços; de diversos fragmentos psíquicos que nos compõe.
Apesar de nos reconhecermos como uma unidade, o inconsciente é habitado por inúmeros complexos, isto é, imagens de situações psíquicas de forte carga emocional, que geralmente são incompatíveis com a atitude da consciência. Como explica Jung, “esta imagem é dotada de poderosa coerência interior e tem sua totalidade própria e goza de um grau relativamente elevado de autonomia” (2013, p. 43).
Os complexos são como pedaços que foram arrancados da psique por um choque emocional ou moral, no embate com o mundo exterior. Por nascerem dessa incompatibilidade com a atitude da consciência, os complexos são reprimidos e se tornam inconscientes. Eles são, então, sentidos em nós como personagens internos autônomos, ou externos (quando projetados), e que têm influência na nossa maneira de pensar, de agir e de sentir. Esse processo de cisão entre consciência e conteúdos do inconsciente tem efeito no indivíduo como uma sensação de perda, “e quando um complexo perdido se torna, de novo, consciente, por exemplo, através do tratamento psicoterapêutico, o indivíduo sente que houve um aumento de força” (JUNG, 2013, p.265).
Verena Kast (2013, p.42), em A dinâmica dos símbolos, identifica no trabalho terapêutico com os complexos, uma chance de desenvolvimento do indivíduo. A autora explica que os complexos podem ter tanto caráter inibidor, quanto promotor. Para ela, ao trabalhar os complexos em um processo analítico, identificando-os e conscientizando-se de sua dinâmica, sempre há a chance de liberar a energia contida nele para que haja sua integração à consciência e, assim, favorecendo o desenvolvimento do indivíduo.
Há complexos que inibem, outros que promovem. Esse é um lado da realidade. O outro é que, em todo complexo, ainda que inicialmente se trate de um complexo inibidor sempre será também, se nos envolvermos com ele, um tema de desenvolvimento, um estimulo para o desenvolvimento. (KAST, 2013, p. 72)
Quando trabalhamos os complexos na clínica, através da fantasia, sonhos e expressões artísticas, ativamos a formação de símbolos.
Os símbolos têm uma função de mediar a relação conflituosa entre a consciência e o inconsciente. Ao simbolizarmos, conseguimos lidar criativamente com a vida, com os conflitos, e, acima de tudo, transformamos as forças inibidoras dos complexos em forças promotoras de desenvolvimento.
“Os complexos se tornam visíveis nos símbolos, por meio de fantasias. Pois onde há emoções, também há imagens. Os complexos se fantasiam, por assim dizer, nos símbolos.”
(KAST, 2013, p. 48)
A função simbólica do fazer artístico confere uma manifestação visível ao afeto do complexo. Jung percebeu a importância do uso de técnicas expressivas como meio de acesso ao inconsciente.
Como descreve Lígia Diniz (2018, p.35), em Arte: a linguagem da alma, “a Arteterapia, sob a ótica junguiana, parte do princípio que a vida psíquica tem uma tendência inata à organização e que o processo terapêutico por meio da arte poderá dinamizar esta tendência”.
Segundo Diniz (2018, p.35), o símbolo, trazido pela expressão artística, tem a capacidade de tocar o afeto, de compreender, refazer e reparar estruturas. Embora seu sentido oculto nunca seja totalmente esgotado, o símbolo traz a chance de trabalharmos o mundo interno do cliente.
A prática da Arteterapia facilita a decifração do mundo interno, o conflito com as imagens e a energia psíquica que aí se configuram.
A compreensão destas formas simbólicas possibilita o confronto com o inconsciente e a tomada de consciência de seus conteúdos, pois o mundo das emoções e o mundo das coisas concretas não estão separados por fronteiras intransponíveis. Ambos permeiam-se no dia a dia, o que é particularmente manifesto nas obras de artes plásticas e literárias, e a Arteterapia pode aperfeiçoar estes intercâmbios. (DINIZ, 2018, p.33)
CONCLUSÃO
Trabalhar com mosaico no processo terapêutico é propor para o indivíduo que ele revisite seus fragmentos, os complexos, assim como sua memória e experiências, e possa reorganizá-los em uma nova versão. Através dos símbolos que surgem do inconsciente, o mosaico, como recurso terapêutico, traz uma possibilidade de reintegração dos aspectos que estavam cindidos à totalidade psíquica. A expressão do inconsciente através da arte permite que a carga emocional da imagem simbólica seja despotencializada, facilitando essa reorganização do mundo interno.
O indivíduo pode ressignificar então seus conflitos, juntando os cacos, reorganizando e colando. Desse modo, um novo sentido para a experiência vivida surge, assim como aconteceu com meu filho e o vaso restaurado.
Beatriz Assumpção – Analista em formação IJEP
Lia Romano – Analista Didata IJEP
REFERÊNCIAS:
DINIZ, Lígia. Arte: linguagem da alma. Arteterapia e psicologia junguiana. Rio de Janeiro: Wak Editora, 2018.
HATANAKA, Paulo (2023). Kintsugi: aceitar e valorizar as imperfeições. https://www.japanhousesp.com.br/artigo/kintsugi/ Acesso em: 18 nov. 2024.
JUNG, Carl Gustav. A natureza da psique. 10ed. Petrópolis: Vozes, 2013
KAST, Verena. A dinâmica dos símbolos. Fundamentos da psicoterapia junguiana. Petrópolis: Vozes, 2013.
MARQUES, Gilmara. O mosaico e a expressão da totalidade da alma. Curso de Arteterapia e expressões criativas, IJEP. São Paulo, 2024. Apostila de aula.
MEDEIROS, Adriana; BRANCO, Sonia. Conto de fada. Vivências e técnicas em arteterapia. 2ed. Rio de Janeiro: Wak Editora, 2012.
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