O folclore brasileiro é rico de histórias sombrias. Segundo Cascudo (2023), os Tupis amavam gastar as primeiras horas da noite evocando e contando histórias para as crianças indígenas. O autor menciona que ao longo de seu levantamento dos mitos brasileiros, especialmente das Regiões Norte e Nordeste, observa-se o entroncamento cultural entre os indígenas, os brancos europeus e os negros africanos, e seus descendentes mestiços, tão comuns no Brasil.
Uma delas me chama a atenção desde criança é a mula sem cabeça.
Assistindo recentemente um seriado brasileiro chamado “Cidade Invisível”, que mostra as entidades folclóricas numa trama de suspense, a mula aparece pegando fogo. Era uma mulher maravilhosa que traiu o marido com um padre. Eles se apaixonaram e queriam ficar juntos, mas por ter se relacionado com um homem religioso e representante de Deus na Terra, foi amaldiçoada. O interessante é que o padre não sofre absolutamente nada, afinal, esse conto não é sobre a sexualidade masculina.
Falando-se em sexualidade, é importante defini-la de forma mais ampla, em seus aspectos biopsicossociais e espirituais, onde temos no biológico, apenas um desses aspectos e não o mais importante para a completude e satisfação do indivíduo. Sempre cercada de muita dor e sofrimento em razão do seu ocultamento e negação pela sociedade, principalmente pela formação judaico-cristã, onde sempre pairou essa atmosfera de pecado e de preconceito em torno do assunto. Arrisco a afirmar que grande parte das lendas relacionados ao sexo e à sexualidade, estão relacionadas a todos os mitos, crendices e tabus sexuais relacionados à época, visto que até hoje, esse assunto é sempre dotado de muito preconceito.
Segundo Câmara Cascudo, a Mula-sem-cabeça é o castigo da concubina do padre católico.
Na noite de quinta para sexta-feira, ela muda seu corpo para mula, correndo com espantosa rapidez até o terceiro cantar do galo. Seus cascos afiados dão coices que ferem como navalhas, despedaça homens e animais em seu caminho. Para desencantá-la é preciso enfrentá-la e tirar o freio de ferro. Quando morre, a alma amaldiçoada fica a penar sobre a terra, apresentando-se como uma assombração horrível.
A mula sem cabeça é uma lenda que surgiu na Península Ibérica, trazida para a América Latina durante o período colonial, pelos portugueses e espanhóis. Corre toda a América, desde o México (malora) até a Argentina (mula anima). Na África, os mitos sobre transformação de mulheres em animais ocorre por fundamentos religiosos (culpa). Na Ásia e na Austrália há mitos de mulheres mais velhas que se transformam em lobas, tigres e panteras. Contudo, apenas a transformação da mulher em Mula está relacionada a sexualidade. Acredita-se atualmente que ela fazia parte de um esforço para reforçar os valores morais da época, com o objetivo de impedir que mulheres mantivessem relações sexuais antes do casamento.
As atitudes de silêncio sobre o sexo, apesar da febre de pesquisa científica que surgiu após os anos 50, segundo Costa Moacir (1986, p.44), resultam dos tabus e preconceitos herdados dos séculos passados, em que as religiões determinavam toda a linha de conduta humana e a moral sexual alienante, pautada pelo rigor de suas normas. Aos homens era determinada a “obrigação” de iniciar sexualmente as mulheres e essas mulheres deviam a esses homens, a “obrigação” de se casarem virgens. Essa “norma” arcaica e milenar, paira até os dias atuais em determinadas religiões.
Assim, sem se falar em sexo e sexualidade, passaram-se dois longos séculos em que tudo relacionado ao assunto era reprimido e, como nas sábias palavras de Foucault (2022), eram “injunção ao silêncio, afirmação de inexistência”. Essa sombra de preconceito e “falsa” moral cristã sobre o sexo, vivenciamos até hoje, inclusive sobre as pesquisas que ainda são incipientes sobre o tema.
Voltando à mula, resultante de um cruzamento entre dois animais de diferentes espécies (jumento e égua), em geral, é um animal estéril.
Segundo Chevalier & Gheerbrant (2020, p. 254), cavalos podem ser associados às trevas do mundo ctoniano, são filhos da noite e do mistério, sendo nesses casos ligados ao fogo e a água. O cavalo é montaria, veículo, nave e seu destino é, portanto, inseparável do destino do homem. O asno ou jumento é um símbolo da ignorância, obscuridade e até tendências satânicas. Em diferentes culturas, ele pode ser usado como montaria de Deuses maléficos (Índia), de imortais (China), besta ou entidade maléfica (Egito), relacionados a Jesus em sua entrada em Jerusalém. Também pode simbolizar satã, sexo, libido, elemento instintivo no homem, sensualidade e materialidade (CHEVALIER & GHEERBRANT, 2020, p. 140-141). As mulas eram animais frequentemente utilizadas pelos padres para sua locomoção.
A mula era um animal muito utilizado para transporte de carga, devido sua força e resistência física, um animal usado para o trabalho. Em diversas regiões e períodos do Brasil, o transporte da produção interna ocorria no lombo de mulas, bois e vacas. Interessante que a mula, importante animal no período colonial, era considerada profana, por sua origem mestiça, um animal inferior. O preconceito em relação a miscigenação entre raças não se relaciona apenas aos animais, mas também em relação às pessoas. Ainda hoje existem barreiras étnicas importantes em todo mundo, mas vamos deixar esse assunto para outro momento.
Interessante é que a mula perde sua razão, torna-se agressiva e desenfreada.
Quantas interdições aos seus instintos e percepções podem ser experimentadas, e as disfuncionalidades ligadas a vergonha, culpa, sentimento de inadequação, raiva, ressentimento e inferiorização? Uma questão importante a ser lembrada ao falar do papel sexual da mulher na história e trazendo as sábias palavras de Simone de Beavouir; “as mulheres não nascem mulheres, elas são feitas mulheres”. E os homens não nascem homens, eles são feitos homens e são educados para se impor e conquistar.
De acordo com Gabeira (1986, P.11), é preciso fixar que existe uma política sexual e que as relações entre duas pessoas, ainda que envolvidas pelo manto das relações afetivas e do amor, ainda que chamadas de relações amorosas, são, na realidade, relações de poder, onde predomina o exercício do domínio de um sobre o outro, o que corrobora o pensamento de JUNG (2019, p. 65). Onde impera o amor, não existe vontade de poder, e onde o poder tem precedência, aí falta o amor. Um é a sombra do outro. Quem se encontra do ponto de vista de Eros procura o contrário, que o compensa, na vontade do poder. Mas quem põe a tônica no poder, compensa-o com Eros.
Qualls-Corbett (1990, p. 38) relata que em matriarcados antigos, natureza e fertilidade consistiam no âmago da existência.
As pessoas viviam próximas à natureza e suas divindades comandavam o destino, proporcionando ou negando a abundância à terra. Em seus louvores de agradecimento, eles ofereciam o ato sexual à deusa, reverenciada pelo amor e pela paixão.
Em registros históricos de mais de 7 mil anos, existiam as prostitutas sagradas, sacerdotisas dedicadas a deusa Vênus ou Afrodite. Nesses templos, as mulheres eram iniciadas sexualmente antes de se casarem, assim, no ritual do casamento sagrado, elas tinham a oportunidade de explorar o desconhecido, sua feminilidade e sexualidade. As prostitutas sagradas, também chamadas de Virgens Vestais, tornavam-se noivas em rituais de matrimônio com o rei, representando um deus. Elas tinham privilégios econômicos, mais independência do masculino e seus filhos eram respeitados. O contrário das prostitutas chamadas de profanas, que eram consideradas e ainda o são até hoje, párias da sociedade (Cf QUALLS-CORBETT, 1990).
Essa estrutura matriarcal ou matrilinear evoluiu para o sistema patriarcal ou patrilinear.
O comércio, as guerras e a expansão decorrente se tornaram o foco, os padrões predominantes fragmentaram-se e novas estruturas surgiram. Muitas linhas explicativas para esse fenômeno são discutidas, uma delas foi a percepção errônea dos homens em relação a reprodução. Acreditavam que eles eram os geradores e que o corpo feminino apenas nutria a criança em seu ventre, portanto, a autoridade e direito dos pais eram absolutos, substituindo a descendência matrilinear pela patrilinear. Essa mudança da perspectiva leva a desvalorização da mulher na sociedade e repactuação social, gerando novos costumes (Cf QUALLS-CORBETT, 1990).
Com isso, a preocupação com a virgindade da mulher antes do casamento era crucial para o homem garantir sua linhagem e transferência de seus bens ou patrimônio a seus descendentes. As mulheres foram dominadas pelos homens, para garantir a suposta ordem das coisas. A mulher tornou-se Eva, aquela que cai em tentação e impõe à humanidade o pecado original. A religião e os valores morais impactaram sobremaneira as relações. O prazer era visto com maus olhos, afinal, sexo era destinado a procriação. E essa era a função social das mulheres, procriar os filhos dos homens (dentro do casamento, é claro!).
Segundo Harding (1985, p. 27 e 31), as ideias, como o mito dos primitivos, formam a base dos sentimentos e estado de espírito do homem contemporâneo.
A vida de hoje é vazia e estéril, procuramos a renovação, queiramos ou não, na fonte do despertar espiritual que existe em nosso interior. E em especial, estamos insatisfeitos com o caráter e qualidade de nossos relacionamentos.
Hoje em dia, o sucesso ou fracasso da vida de uma mulher não está mais atrelado ao casamento, outras nuances são levadas em consideração, como o trabalho e estudo, demandas do mundo objetivo exterior. Os impactos dessa nova realidade geram muitos conflitos e ansiedades. Agora não basta ser esposa e mãe, precisamos ser bem-sucedidas em todos os aspectos, recaindo muitas vezes em polarizações e uma carga de trabalho muito superior à dos homens. Para dar conta de tudo isso, as mulheres desenvolvem seu lado masculino (animus).
A mulher da atualidade quando encontra a mula sem cabeça dentro de si mesma, estará em conflito com sua sexualidade e sua capacidade criativa, correndo e incendiando tudo em seu caminho. Sabemos que os complexos são afetos que ganham tanta energia, que nos tomam de assalto e nos deixam amarrados ao seu enredo. Quando uma mulher se sente inferiorizada pelo masculino, julgada pela família ou comunidade, sem poder sobre seu corpo, abre caminho para que essa energia ctônica e avassaladora surja e ganhe espaço em seus sentimentos e pensamentos.
Mudanças importantes ocorreram no século XX em relação a sexualidade feminina, principalmente após o advento da pílula anticoncepcional.
Criada nos Estados Unidos na década de 1960, houve muitas controvérsias na época em relação ao uso indiscriminado pelas mulheres, seus efeitos colaterais e os impactos socioeconômicos, como o controle de natalidade. Desde então, o sexo não fica atrelado apenas a ideia de procriação, mas também ao prazer, abrindo caminhos novos para o feminino em sua luta por seus direitos, dentre eles, o direito de exercer sua feminilidade e sexualidade de forma livre e segura.
O corpo e os instintos fazem parte da vida cotidiana, assim como a vida psíquica.
Quando algo incomoda a psique haverá reflexos na vida diária do indivíduo, seja através de sintomas ou situações repetidas, alertando que algo precisa ser ressignificado. Segundo Jung (2012, p. 26), certos complexos só estão destacados da consciência porque preferiram se destacar dela, mediante repressão. Outros complexos nunca estiveram na consciência, mas são capazes de brotar do inconsciente com suas convicções e impulsos estranhos e imutáveis.
Em relação ao processo de individuação, cerne da psicologia junguiana, podemos afirmar que a sexualidade constitui um dos palcos possíveis para essa experiência, devido à sua grande sombra na humanidade, onde ainda quaisquer aspectos do indivíduo relacionados ao tema, causa estranheza e críticas na esfera social, onde está contida toda essa “sombra’. De acordo com Craig (1998, p.129), claro que não estamos dizendo que a pessoa precisa deixar-se inundar por fantasias de um Marquês de Sade, nem que ela deva viver essas fantasias. Significa, antes, que as fantasias desse tipo podem ser entendidas como a expressão simbólica de um processo de individuação que está se desdobrando no território dos deuses sexuais.
Ficar em paz com essa sombra seria a oportunidade de vivenciar situações fantasiosas que só existem em suas memórias.
A ideia seria vivenciá-las com seus parceiros(as) e tirá-las do terreno mental das culpas e dos sofrimentos. Ora, fantasias sexuais não combinam com casamentos religiosos e pudicos, onde apenas predominam manifestações do sexo-reprodução. O sexo-prazer nesse contexto é vivenciado fora de casa, com profissionais do sexo, onde uma parte dessa fantasia sexual seria a sensação de dominação no pagamento de uma mulher/homem, objeto de seus desejos para a satisfação de suas fantasias e vivenciar essa sombra sem culpa e sem dor, distante do “leito nupcial”, como bem cita Foucault (2022).
A sexualidade infelizmente, ainda é “demonizada” nos nossos dias. Fracassaram todas as tentativas de torná-la totalmente inofensiva e de apresentá-la como algo “completamente natural”. Para o homem moderno, algumas formas de sexualidade continuam a ter aspecto mau, pecador e sinistro, todavia, continuamos a lutar por melhores dias quando paramos para escrever um artigo como esse ou mesmo quando ampliamos nossas visões e discussões sobre o assunto, apesar de todas as críticas e movimentos sombrios contrários que possam advir. Duelar com sombras ancestrais nunca foi fácil.
Alguns movimentos de liberação feminina tentam entender a sexualidade como uma arma política usada pelos homens para oprimir as mulheres.
Com isso, essas mulheres “demonizam” a sexualidade e, ao mesmo tempo, deixam implícito que essa sexualidade poderia tornar-se inofensiva através da reversão dos papéis masculino e feminino, mas para isso ainda teríamos que galgar inúmeras outras esferas de revolução sexual e de preconceito social e nesse sentido, onde ficaria o processo de individuação?
O elemento demoníaco da sexualidade (CRAIG, 1998, p.121) talvez se mostre no fato de que é muito difícil experimentar e aceitar a atividade sexual apenas como “prazer” ou como uma experiência agradável. Poucas pessoas conseguem “simplesmente desfrutar” a sexualidade, como desfrutariam uma boa refeição. Essa negação da sombra e da energia sexual traz como elementos para aceitação pelo self, os sintomas e em consequência disso, temos na clínica, variados distúrbios de natureza sexual, frutos dessa não aceitação à vivência da sexualidade saudável (integração de aspectos de luz e sombra).
Para Craig (1998, p.122), a sexualidade oferece-nos símbolos para todos os aspectos da individuação. O confronto com a sombra leva aos destrutivos componentes sadomasoquistas do erotismo. O confronto com a nossa própria alma, com a anima/animus, com o feminino/masculino, pode ter uma forma sexual. O amor por si mesmo e o amor pelos outros são experimentados corporalmente na sexualidade, seja através de fantasias ou de atividades.
Em nenhum outro lugar a união de todos os opostos, a unio mystica, o mysterium coniunctionis, expressa-se de modo mais impressionante que na linguagem do erotismo.
Apesar de todas as mudanças em relação a vivência da sexualidade pelas mulheres da atualidade, as imagens arquetípicas podem ser acessadas pelas mulheres durante suas vidas, como a santa, a mãe, a prostituta, a mulher, a bruxa, a mula sem cabeça, entre outros. Os contos e mitos representam imagens arquetípicas importantes, presentes no inconsciente coletivo e em geral, provocam algum tipo de desconforto. Ressignificação da jornada do feminino, seu encontro com sua essência que foi afastada por maldições, preconceitos, costumes e regras morais, fazem parte do reencontro com essa energia fabulosa, divina, criativa e cheia de sabedoria.
A mula sem cabeça nos remete as interdições feitas ao feminino e às mulheres, ainda hoje presentes na sociedade. Não é um lugar distante! Conversar sobre o assunto nos abre caminhos, reflexões e saberes a serem construídos conjuntamente. Amar e respeitar a nós mesmas e validar nossa jornada, pode ajudar a mula sem cabeça aplacar seu descontentamento, rompendo a maldição. Com amorosidade somos capazes de tirar o freio que a aprisiona essa força, acolhendo-a em nós e encontrar nosso caminho rumo a nossa singularidade e individuação.
Me. Michella Paula Cechinel Reis – Membro analista em formação IJEP, Brasília
Maria Ivanilde Ferreira Alves – Membro analista em formação IJEP, Brasília
Dra. E. Simone Magaldi – Analista didata IJEP, São Paulo
Referências:
CASCUDO, Luís Câmara da. Geografia dos mitos brasileiros. São Paulo: Global Editora, 2023.
CHEVALIER & GHEERBRANT. Dicionário dos símbolos: mitos, sonhos, costumes, gestos, forma, figuras, cores e números. 34 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2020.
COSTA, R.P., GAIARSA, J.A., COSTA, M., GABEIRA, F., et. al. Macho, masculino, homem. 3 ed. São Paulo, 1986.
FOUCAULT, M. História da sexualidade: a vontade de saber. 13 ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2022.
GUGGENBÜHL-CRAIG, ADOLF. O lado demoníaco da sexualidade. [A. do livro] C. Zweig e J. (orgs) Abrahms. Ao Encontro da Sombra. São Paulo: Cultrix 1998.
HARDING, M.E. Os mistérios da mulher antiga e contemporânea: uma interpretação psicológica do princípio feminino, tal como é retratado nos mitos, na história e nos sonhos. São Paulo: Ed. Paulinas, 1985.
JUNG, C.G. Psicologia e religião: psicologia e religião ocidental e oriental. 11 ed. Petropolis, RJ: Ed. Vozes, 2012.
JUNG, C.G. Psicologia do inconsciente. 24 ed. Petrópolis, RJ: Ed. Vozes, 2019.
QUALLS-CORBETT, N. A prostituta sagrada: a face eterna do feminino. São Paulo: Ed. Paulus, 1990.
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