“E eu achei uma coisa mais amarga do que a morte, a mulher cujo coração são laços e redes, e cujas mãos são grilhões; quem agradar a Deus escapará dela; mas o pecador virá a ser preso por ela’’.”(Eclesiastes 7:26)
Nesse artigo, veremos como o arquétipo da Pombagira reflete a sombra coletiva do feminino no sagrado, representando uma parte reprimida e projetada do inconsciente como uma imagem simbólica da demonização e castração da mulher.
As religiões patriarcais contribuíram e ainda contribuem para a visão machista que a sociedade tem sobre as mulheres. Em uma sociedade machista e patriarcal, não é de se espantar que a cultura cristã apenas aceite como manifestação divina do feminino o arquétipo da mulher virgem, imaculada e maternal e, ainda assim, renegada à um papel secundário e submisso.
Entretanto, nem sempre foi assim. Os povos primitivos além de pacíficos, viviam em sociedades equitativas, onde homens e mulheres ocupavam importantes posições sociais. Embora fossem cultuadas divindades masculinas e femininas, nessas sociedades a mulher representava o poder central e o feminino, como o poder de dar e manter a vida, era considerado o mais elevado (Cf. CAMPBELL, 1997, pg. 12).
Com o Cristianismo tivemos uma das principais mudanças nessa dogmática, trazendo a imagem de um Deus masculino, um Pai criador de homens à sua imagem e semelhança, com a ideia de soberania da masculinidade.
O relato da criação que todos conhecemos de Adão e Eva, trazida pelo Livro do Gênesis da Bíblia Hebraica, demonstra bem o papel dado para as mulheres, como um ser inferior e submisso ao homem, sendo criada de sua costela para lhe fazer companhia e, ainda, de perigosa e pecadora, sendo Eva a que seduziu e fez Adão pecar, causando a expulsão do paraíso. A mulher não ser criada diretamente de Deus, assim como o homem, faz com que ela possua uma imperfeição inerente e originária.
Com o fim da era matriarcal, a mulher passou a ocupar um lugar de sombra no sagrado e a representação que a sociedade passa a ter da mulher é negativa e sombria.
Cabe a ele, homem, criatura diretamente criada por Deus, encarnar o bem, e a mulher, criatura submissa, pecadora, assumir o papel de demoníaca. A mulher passa então a ser definida em função dos valores masculinos, e toda sua validade social é vista em função dos papéis que lhe são impostos pela sociedade machista e patriarcal. A sexualidade da mulher também passa a ser experimentada dentro deste contexto de posse e submissão.
Jung, sempre transgressor, em Fundamentos da Psicologia Analítica (conferências), já destacava a ausência do papel feminino na religião cristã:
Também em Psicologia e Religião ele traz o caráter exclusivamente masculino da Trindade, um dos principais símbolos do cristianismo, e destaca que não é difícil adivinhar as consequências espirituais deste simbolismo.
Sabemos que no inconsciente pessoal, além dos complexos, encontramos a sombra, que é composta de conteúdos reprimidos, negados ou não reconhecidos pelo ego, ou seja, aquelas características que não nos orgulhamos, a parte oculta ou desfavorável da nossa personalidade. Entretanto, a sombra é uma parte viva em nós e fará de tudo para se manifestar, por isso, se não integrada, encontrará uma forma de se projetar no mundo.
A projeção leva o indivíduo ou a coletividade a ver no outro tais aspectos reprimidos, procurando ver o “mal” fora.
Quando projetada na coletividade, a sombra representa aquilo que uma cultura rejeita, como a liberdade sexual e a independência feminina. Assim, o feminino profano surge em oposição a mulher idealizada e angelical. Nesse contexto, o arquétipo da Pombagira pode ser visto como a personificação dessa sombra coletiva feminina, emergindo como uma imagem que assusta e fascina, levando a sociedade a confrontar seus paradigmas.
A sexualidade ainda é “demonizada” por grande parte das religiões e da sociedade, que acatam apenas a imagem da mulher imaculada, pura, virgem e submissa como ideal da “santa” e oposto da “puta”. E assim, arquétipos como de Lilith, Astarte, Asherat e Pombagira são criados, sendo considerados como “mulheres demônio”, “encarnações do mal” e levianas.
Na Umbanda, a entidade espiritual conhecida como Pombagira e que se manifesta incorporada em seus médiuns está fundamentada em um arquétipo desenvolvido a partir da entidade Bombogira, originária doscultos angolo-congoleses aos Inquices (divindades da cultura bantu). A Pombagira também é conhecida como a contraparte feminina de Exu, atuando como mensageira junto aos Orixás, e como guardiões, principalmente do sagrado feminino.
Acredita-se que as primeiras manifestações das Pombagiras são anteriores à fundação da própria Umbanda pelo médium Zélio de Moraes e que ocorriam esporadicamente nas chamadas ‘’macumbas’’ do Rio de Janeiro. Assim, de repente a sociedade da época se viu diante de manifestações de espíritos femininos que se apresentavam de forma sensual, altiva e independente, causando, como ainda hoje, muito interesse, fascinação e preconceitos.
A Pombagira é uma entidade religiosa que bebe, fuma, dança, rebola, gargalha alto, transgredindo o que a sociedade sempre reprimiu na mulher, que deve ser recatada. É uma entidade espiritual que representa um feminino transgressor e poderoso, que ensina as mulheres a recuperarem a sua autoestima e poder pessoal.
É um arquétipo que evoca aspectos do feminino que confrontam às normas impostas pela sociedade e religiões patriarcais, revelando um lado do sagrado reprimido e marginalizado da psique coletiva.
O feminino como sagrado foi calado e a Umbanda, ao permitir a manifestação das Pombagiras traz um resgate, permitindo que seja estabelecido um sagrado feminino, que proporciona uma reflexão sobre o papel da mulher em contraposição a cultura machista e sexista da base patriarcal judaico-cristã.
A rejeição e demonização da Pombagira, como um arquétipo sagrado representando um feminino livre das regras moralizantes do pensamento cristão, reflete a projeção da sombra coletiva que enxerga como mal, demoníaca, vulgar e vagabunda a mulher livre, sensual e altiva.
A Pombagira representa a mulher em sua potência máxima de liberdade, autoconfiança, empoderamento, consciente e dona do seu corpo e sexualidade.
A Pombagira vai além do seu papel religioso, pois o seu culto e fortalecimento tem a função de perturbar e ampliar a consciência egóica do patriarcado, auxiliando na integração da sombra do feminino como sagrado e fortalecendo o feminino como um todo.
Segundo dados da Agência Brasil a cada 24 horas, ao menos oito mulheres são vítimas de violência, portanto, em um momento social tão delicado, onde assistimos o aumento assustador de cada vez mais diversas formas de violência contra a mulher, se faz necessário questionar o papel ao qual somos historicamente submetidas e a religião é uma ferramenta importante, pois é capaz de influenciar a visão que temos de diversos aspectos determinantes da sociedade.
Nas manifestações da Pombagira temos a mulher em sua potência máxima, confrontando toda essa opressão imposta a nós mulheres, para mostrar que somos sim, mães, santas, sensuais, donas de nosso corpo, cientes do nosso poder. Através da sua manifestação nos terreiros de Umbanda podemos sentir e ouvir o grito das mulheres que ela habita e integrar a sombra que patriarcado impõe ao feminino.
O arquétipo da Pombagira e o feminino sagrado, quando analisados pela psicologia junguiana, revelam-se como importantes símbolos de liberdade e transgressão para a psique feminina.
Assim, a Pombagira assume um papel libertador que vai além do campo religioso, nos ensinando que somos donas do nosso corpo e destino, carregando um simbolismo que não apenas transgride, mas também ajuda a curar as dores e os estigmas de muitas gerações de mulheres abusadas e marginalizadas.
Salve as moças!
Artigo baseado na minha monografia em Especialização em Psicologia Junguiana.
Itala Resende – Membro Analista em Formação pelo IJEP
Dra. E. Simone Magaldi – Membro Didata do IJEP
REFERÊNCIAS:
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– MAGALDI, Waldemar (Org). Fundamentos da Psicologia Analítica. São Paulo: Eleva Cultural, 2022.
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– PEIXOTO, Norberto. Iniciando na Umbanda: A Psicologia dos Orixás e dos Cristais. 03ª Edição. Porto Alegre: Legião Publicações, 2019.
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