Resumo: O artigo propõe uma reflexão sobre a busca por barulhos externos como forma de defesa contra o inconsciente, evitando a escuta dos “barulhos” interiores. Distingue ouvir (processo fisiológico) de escutar (ato simbólico que promove ampliação da consciência). Fundamenta-se na função transcendente, que integra consciente e inconsciente por meio de práticas como meditação, imaginação ativa e registro de sonhos. O silêncio, nesse contexto, torna-se espaço de encontro com complexos e conteúdos reprimidos. A escuta interior é vista como ato de coragem e meio de autoconhecimento. O barulho externo, muitas vezes, mascara vozes internas que pedem escuta e integração.
INTRODUÇÃO
A sociedade contemporânea está imersa em constantes estímulos sonoros, que, com o avanço da tecnologia, vêm principalmente das mídias, redes sociais, podcasts, entre outros. Nota-se uma crescente necessidade de distração por meio de estímulos externos.
Mas estaríamos, na verdade, evitando o silêncio por que ele nos levaria a uma escuta dos nossos “barulhos” do mundo interior?
Neste artigo, pretende-se diferenciar o ato de ouvir do ato de escutar. Ouvir refere-se à capacidade biológica de captar sons — um processo automático e físico — enquanto escutar diz respeito à disposição interior de ouvir com o coração, promovendo uma ampliação da consciência.
Já aconteceu com você de chegar em casa sozinha(o), e, quase que automaticamente, sentir a necessidade de ligar a TV, um vídeo no celular ou qualquer outra coisa que emitisse som?
Agora, tente se lembrar, ou, se preferir, tente experimentar fazer este exercício da próxima vez que isso acontecer:
Pense na sensação que surgiu antes de ligar os aparelhos.
Essa sensação foi boa ou ruim?
Observe se você queria permanecer nela, ou ligou os dispositivos justamente para fugir dela?
O silêncio externo pode ser um convite à transcendência e ao encontro com um significado mais profundo da existência. Mas será que esse exercício é fácil e prazeroso? Se fosse, talvez muitos de nós não recorreríamos com tanta frequência aos sons externos para evitar o confronto com os sons internos.
Helena Blavatsky, em A Voz do Silêncio, revela a profundidade dessa jornada interior ao afirmar: “Antes que a alma possa ouvir, a imagem (do homem) tem de tornar-se surda aos rugidos como aos murmúrios, aos bramidos dos elefantes uivantes como ao argênteo zumbir do pirilampo de ouro” (2018, p. 64).
Assim, a escuta do que é verdadeiramente essencial não ocorre sem atravessar as camadas de ruído, não só do mundo, mas da própria psique.
Escutar, nesse contexto, é um ato de coragem e desapego, pois nos confronta com aquilo que muitas vezes evitamos: o vazio, a dor, o desconhecido dentro de nós mesmos.
Assim, os sons internos, em sua maioria, fazem parte do nosso inconsciente e em muitos casos, o barulho externo pode funcionar como uma defesa contra eles.
ESTRUTURA DA PSIQUE SEGUNDO JUNG
De acordo com a teoria junguiana, a psique humana atua como um sistema de equilíbrio dinâmico, no qual o inconsciente desempenha a função reguladora dos conteúdos conscientes. Dentro do inconsciente, Jung distingue duas camadas: o inconsciente pessoal e o inconsciente coletivo.
Como inconsciente pessoal Jung define que:
[…] contém lembranças perdidas, reprimidas (propositalmente esquecidas), evocações dolorosas, percepções que, por assim dizer, não ultrapassaram o limiar da consciência (subliminais), isto é, percepções dos sentidos que por falta de intensidade não atingiram a consciência e conteúdos que ainda não amadureceram para a consciência. Corresponde à figura da sombra, que frequentemente aparece nos sonhos.
(JUNG, 2013, § 103)
Já no inconsciente coletivo, a camada mais profunda da psique, residem os arquétipos e os instintos que influenciam silenciosamente nossas escolhas e comportamentos. No entanto, não nos damos conta de sua existência, afinal pertencem ao inconsciente.
Os sons internos, às vezes, podem ser mais altos do que os sons externos. A essas vozes internas, Jung deu o nome de complexos. Estruturas psíquicas que pertencem ao nosso inconsciente pessoal:
O que é, portanto, cientificamente falando, um “complexo afetivo”? É a imagem de uma determinada situação psíquica de forte carga emocional e, além disso, incompatível com as disposições ou atitude habitual da consciência. Esta imagem é dotada de poderosa coerência interior e tem sua totalidade própria e goza de um grau relativamente elevado de autonomia, vale dizer: está sujeita ao controle das disposições da consciência até um certo limite e, por isto, comporta-se, na esfera do consciente, como um corpo estranho, animado de vida própria. (entenda-se aqui imagem como “a expressão concentrada da situação psíquica global). Com algum esforço de vontade pode-se, em geral, reprimir o complexo, mas é impossível negar sua existência, e na primeira ocasião favorável ele volta à tona com toda a sua força original.
(JUNG, 2014, § 201)
Portanto, essas vozes internas que muitas vezes queremos calar, de fato podem ser silenciadas — mas apenas por um tempo.
No legado deixado por Jung, aprendemos que podemos e devemos dar espaço e escuta dessas vozes. Elas nos constituem; fazem parte da nossa integralidade.
Assim, o silêncio deixa de ser um vazio a ser preenchido e passa a ser um espaço de autodescoberta.
Mas como fazer isso? Como escutar a essas vozes internas que conflituam entre si?
A FUNÇÃO TRANSCENDENTE
Jung deu o nome de função transcendente, ao processo de integração entre conteúdos do consciente e inconsciente e define:
Lidar com o inconsciente é um processo (ou, conforme o caso, um sofrimento ou um trabalho) cujo nome é função transcendente, porque representa uma função que, fundada em dados reais e imaginários ou racionais e irracionais, lança uma ponte sobre a brecha existente entre o consciente e o inconsciente. É um processo natural, uma manifestação de energia produzida pela tensão entre os contrários, formado por uma sucessão de processos de fantasia que surgem espontaneamente em sonhos e visões.
(JUNG, 2013, §121)
Neste sentido, a análise junguiana tem como uma de suas principais incumbências acompanhar e auxiliar o cliente a olhar para conteúdos do inconsciente e a realizar a função transcendente.
Essa função pode emergir por meio de conteúdos oníricos, imaginação ativa, insights, intuições, entre outras manifestações simbólicas. No entanto, para que esse processo ocorra, é necessário desenvolver uma escuta atenta aos ruídos internos.
PRÁTICAS DE ESCUTA INTERIOR
Até agora, enfatizamos o papel do inconsciente, mas é fundamental reconhecer que qualquer processo de autoconhecimento só pode acontecer por meio da consciência do indivíduo. É por meio dela que tomamos ciência da existência do inconsciente. A consciência é a instância que organiza os conteúdos psíquicos e confere ao indivíduo um senso de identidade — é nela que o ego se ancora e se reconhece.
Portanto, sua importância nesse processo é indispensável. Sem a consciência, não haveria referência, nem discernimento. É graças a ela que somos capazes de distinguir o belo do feio, o bem do mal, o sagrado do profano. Em outras palavras, é a luz da consciência que revela as formas do inconsciente, tornando possível o diálogo entre os dois mundos.
Assim, precisamos manter esse ego estruturante para que consiga lidar com os conteúdos do inconsciente e trazer os sons/vozes internas, para um campo reflexivo, tendo consciência de que os conteúdos do inconsciente não são nossos inimigos, eles apenas precisam de espaço, atenção, reflexão!
Neste sentido, uma das formas de manter a consciência / ego mais presente, sem sucumbir aos estímulos externos como forma de anestesia, recomendam-se práticas de meditação, que envolve o treino da atenção com o objetivo de promover clareza mental, equilíbrio emocional e um estado de presença no aqui e agora.
Na prática junguiana, tem-se a imaginação ativa, que Jung explica como:
(…) uma certa forma de meditar com o auxílio da imaginação, e em cujo processo pode-se entrar deliberadamente em contato com o inconsciente, estabelecendo uma relação consciente com os seus fenômenos psíquicos.
(JUNG et al., 1964, p. 206)
Outra prática que favorece a escuta interior e que é fundamental para Jung, é o registro dos sonhos.
Mesmo que no início pareçam fragmentados ou desconexos, o simples ato de escrevê-los e dedicar-se a essa tarefa com constância já representa um convite ao ego para se reconectar com o conteúdo simbólico do inconsciente. Com o tempo, esse exercício abre uma espécie de portal — uma via de diálogo intrapessoal.
Através da teoria junguiana, temos vários instrumentos que nos ajudam nesta ponte entre consciência e inconsciente, além dos já citados, podemos falar também sobre o papel das expressões criativas (desenho, pintura, origami etc.), em que o resultado estético não é o foco, mas sim o conteúdo do processo vivido. Como o ego/consciência lidou com aquela experiência e todos os pormenores que ocorreram.
CONCLUSÃO
As práticas de registros de sonhos, expressões criativas, meditações, e o acompanhamento terapêutico, são caminhos que nos convidam a escutar mais atentamente o que se passa dentro de nós. Elas criam espaços para que conteúdos internos, muitas vezes ignorados ou reprimidos, possam se manifestar, contribuindo para a construção de uma vida com mais alma.
Evitar esse encontro com o desconhecido, refugiando-se constantemente em distrações externas, pode gerar um estado de unilateralidade psíquica, no qual a consciência rejeita tudo aquilo que parece estranho ou incompatível com suas referências habituais. Essa rejeição, por sua vez, impede a ampliação da consciência e o contato com partes valiosas da psique.
Desenvolver a escuta interior, portanto, não é buscar respostas prontas ou resultados imediatos, mas cultivar uma atitude de abertura diante do desconhecido. É permitir que o Ego dialogue com as imagens do inconsciente — não para controlá-las, mas para conhecê-las e acolhê-las. Esse exercício de escuta é, acima de tudo, um movimento de reconciliação consigo mesmo.
Silenciar o mundo externo pode nos colocar frente a frente com sons internos desconfortáveis.
No entanto, é justamente nesse silêncio que nasce a possibilidade de transformação. Como nos lembra Jung, “a vida tem que ser conquistada sempre e de novo” (JUNG, 2014, §142) — e essa conquista começa, muitas vezes, ao simplesmente ousarmos escutar o que, até então, vínhamos tentando calar.
Carolina Held dos Santos – Analista em formação IJEP