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O complexo paterno de Jung em relação a Freud

O artigo destaca o relançamento literário de 2023, "Cartas de Freud e Jung", pela Editora Vozes, focando no complexo paterno de Jung em relação a Freud. Explora a troca de correspondências entre os dois pesquisadores do inconsciente, revelando momentos marcantes que evidenciam o descompasso na relação, incluindo a demora de Jung em responder às cartas, provocando reações de Freud. A análise revela a intensidade da batalha consciente entre os dois para lidar com projeções relacionadas ao complexo paterno. O texto enfatiza a importância da obra para estudiosos e praticantes do campo, apresentando reflexões sobre a natureza humana dos pioneiros e a fantasia de um curso conjunto para a psicanálise e a psicologia analítica junguiana.

Este artigo é uma reflexão inicial que destaca um aspecto importante de um excelente lançamento literário de 2023, “Cartas de Freud e Jung”, pela Editora Vozes, concentrando-se no complexo paterno de Jung em relação a Freud. Como Jung descreveria muito tempo depois, em 1921, o complexo parental envolve a submersão da libido do consciente no inconsciente:

“No inconsciente jazem conteúdos relativamente marcantes, por exemplo, os complexos de reminiscências ao complexo da infância em geral. Pela devoção, isto é, pela submersão da libido no inconsciente, é reativado o complexo da infância de modo que as reminiscências infantis como, por exemplo, as relações com os pais são revividas. As fantasias oriundas dessa reativação ocasionam o surgimento das divindades paterna e materna e o despertar de um relacionamento religioso infantil para com Deus e dos sentimentos infantis correspondentes[i]”.

Na introdução da obra que reúne as cartas trocadas entre Freud e Jung, o organizador William McGuire (1932-2007), prolífico editor, escritor e pesquisador sobre a história da Psicologia Analítica, já dá o tom: “Essas cartas são a evidência direta do encontro intensamente fecundo e finalmente trágico de Freud e Jung[ii].

Ao começar a ler o livro de 743 páginas, é possível deparar-se com o encantamento inicial e as palavras gentis de agradecimento pelos livros autorais enviados. É o caso da primeira carta, enviada por Freud, datada de 11 de abril de 1906, que confirma o recebimento dos “Estudos de diagnóstico de associação”, lançados naquele ano por Jung (1F – a classificação mostra o número da carta e a consoante mostra se era escrita por Freud (F) ou Jung (J)).

Desde esta primeira carta, já fica evidente um certo descompasso na velocidade da troca de correspondências.

Está certo que não faz parte da etiqueta responder a uma nota de agradecimento, mas Jung não a aproveita para engatar uma conversação por cartas com Freud. Sua primeira correspondência será enviada apenas quase seis meses mais tarde, em 5 de outubro de 1906 (2J), para agradecer o envio da “Coletânea de artigos breves sobre a teoria da neurose”.

Esse descompasso nas respostas chama a atenção imediatamente e leva a perceber que, com o tempo, o diálogo desbloqueia uma série fascinante de observações, interpretações e ampliações psicanalíticas e analíticas. Para começar, basta lembrar que na concepção junguiana, Jung é percebido como um introvertido com função predominante intuição e a primeira auxiliar pensamento. Por outro lado, Freud é percebido como um extrovertido com função predominante em sentimento e primeira auxiliar em sensação. Ora, apesar da intensa colaboração que se desvela na fundação das sociedades e na organização dos congressos, ambos percebiam o mundo e interagiam com ele de maneiras distintas, complementares se quisermos.

Contexto histórico

Do ponto de vista histórico, no início do século XX, a reputação de Freud ultrapassava seus círculos em Viena, Áustria, mas o primeiro grupo a se interessar de forma mais firme pela psicanálise foi relacionado ao Hospital Mental Burghölzli, em Zurique, Suíça. O Burghölzli era então dirigido por Paul Eugen Bleuler (1857-1939), que cunharia o termo “esquizofrenia“, substituindo gradualmente o usado até então, “demência precoce“.

Em 10 de dezembro de 1900, Jung chega ao Burghölzli como médico recém-formado, para assumir seu primeiro posto de trabalho. Bleuler pede a Jung que apresente, em uma reunião de equipe, sua visão de “A Interpretação dos Sonhos“, de Freud, lançado naquele ano. Aliás, é tocante ver como as novas publicações eram trocadas entre os principais interessados, divulgando o avanço do conhecimento. Ainda assim, as cartas mostram que Bleuler nunca aderiu totalmente à psicanálise, apesar dos esforços de Freud e Jung ao longo dos anos. Jung acaba se desligando da psicanálise freudiana em 1913, para trilhar seus próprios caminhos na Psicologia Analítica.

Complexos à tona

Freud e Jung tinham consciência de possuírem complexos – um termo idealizado por Jung. A diferença de quase 20 anos também contribui para o reforço desse complexo parental. Freud, o austríaco, nasceu em 1856, e teve uma mãe significativamente mais jovem que o pai, que enfrentou dificuldades financeiras. Por outro lado, Jung passou a vida tentando compreender teórica e empiricamente a falta de fé de seu pai, um pastor luterano com doutorado.

A troca de cartas de Freud e Jung se estende de 1906 a 1913. Vamos destacar alguns momentos da evidência sobre o complexo paterno. Em 31 de março de 1907 (17J) Jung começa dizendo que:

Caro Professor Freud,
Sem dúvida alguma o senhor há de ter tirado suas conclusões do prolongamento de meu tempo de reação. Tive uma forte resistência em escrever, pois até recentemente me incomodava o tumulto dos complexos despertados em Viena”[iii].

Como se sabe, Jung havia estabelecido um laboratório no Burghölzli para realizar o teste de associação de palavras, que naquele momento era compreendido como uma forma de dar expressão aos conteúdos reprimidos do inconsciente por meio de atrasos nas respostas, associações e intercâmbios de conteúdo.

No mesmo ano, 1907, uma correspondência de Jung datada de 28 de outubro faz referência ao mesmo complexo (49J):

Suas últimas cartas contêm referências à minha preguiça de escrever. Devo-lhe, certamente, uma explicação. Uma das razões é meu acúmulo de trabalho, que mal me deixa tempo para respirar à noite; já a outra há de estar no domínio do afeto, no que o senhor chamou de meu “complexo de autopreservação” – uma expressão maravilhosa! E com efeito é de seu conhecimento que esse complexo já me pregou muitas peças, inclusive em meu livro sobre a Dem. pr. [Demência Precoce]. Tento, honestamente, mas o espírito mau que (como vê) me enfeitiça a pena não raro impede que eu escreva. Na verdade, é preciso um grande esforço para confessar isso –, tenho pelos sonhos uma admiração ilimitada, quer como homem, quer como estudioso, e não lhe voto o menor rancor consciente. Decerto não é aqui que reside a origem do meu complexo de autopreservação, mas dá-se que a maneira como o venero tem algo do caráter de um embevecimento “religioso” [iv].

A seguir, em carta datada de 2 de novembro de 1907 Jung faz referência ao mesmo complexo (50J), mas revela o embrião do que se tornaria um importante elemento da análise junguiana –  a compensação:

Caro Professor Freud,
Estou sofrendo todas as agonias de um paciente em análise, permitindo que os mais diversos medos concebíveis sobre as possíveis consequências de minha confissão me torturem. Há uma consequência que talvez lhe interesse, e por isso a exponho logo. O senhor há de se lembrar que lhe contei um breve sonho que tive quando estava em Viena. Fui incapaz de decifrá-lo na época. E ocorreu-lhe que a solução pudesse estar num complexo de competição (sonhei tê-lo visto como um velho fraco, muito fraco, que ia andando ao meu lado). Desde então, esse sonho se manteve a me afligir a mente. A solução só veio (como de hábito) depois de eu lhe ter confessado minhas preocupações. O sonho tranquiliza minha mente acerca de sua + + + periculosidade! Essa ideia não me poderia ter ocorrido na época, é óbvio que não! Espero que os deuses subterrâneos desistam, enfim, de suas tramoias e me deixem em paz” [v]

A resposta de Freud denota um certo senso de humor (52F): “Farei o possível para lhe mostrar que não estou talhado para ser um objeto de adoração[vi]. Em nossa interpretação, Freud lida com a intensidade de Jung em várias passagens. Por um lado, ele o pressiona e cobra para escrever regularmente (afinal, estavam desenvolvendo um novo campo do conhecimento juntos e muito dependia da prontidão nas respostas). Por outro, ele realmente reforça a noção de pai para Jung.

Como mostra o seguinte trecho (205F), no qual Freud se manifesta como um pai severo:

Os primeiros meses de seu reinado, meu querido filho e herdeiro, não se revelam propriamente brilhantes. Às vezes, tenho a impressão de que o senhor mesmo não levou suas funções muito a sério nem começou ainda a agir de modo condizente com a nova dignidade de que foi investido[vii].

Em 31 de dezembro de 1911, a carta de Freud já mostra um certo saturamento do conteúdo paternal (290F):

Se o senhor sente realmente qualquer ressentimento contra mim não há necessidade de usar Frau C __ como veículo para torná-lo público. (…) Minha última disputa dessa espécie foi com Ferenczi, que me achou frio e reservado e se queixou amargamente da minha falta de afeição, mas depois admitiu que estava errado e que a minha conduta havia sido sensata. Não nego que gosto de estar com a razão. Afinal de contas, esse é um triste privilégio, já que é conferido pela idade.  O problema de vocês, mais jovens, parece ser a falta de compreensão ao lidar com os seus complexos paternos[viii]

Evidentemente a batalha travada por Freud e Jung de forma consciente para lidar com as projeções que refletem o complexo paterno inconsciente de ambos é magistral.

Jung finaliza uma carta de conteúdo visceral datada de 3 de março de 1912 (303J): Foi isso o que o senhor me ensinou com a ψA. Como alguém que é verdadeiramente seu seguidor tenho que ser corajoso, ainda mais em relação ao senhor”.[ix]

Freud não deixa por menos na sua resposta:

O senhor fala da necessidade de independência intelectual e cita Nietzche em apoio ao seu ponto de vista. Estou de pleno acordo. Mas se uma terceira pessoa lesse esse trecho, perguntar-me-ia quando havia eu tentado tiranizar o senhor intelectualmente e eu teria que dizer: “Não sei”. Não acredito que o tenha feito alguma vez. Adler, na verdade, fez queixas semelhantes, mas estou convencido de que a neurose dele falou por ele. Ainda assim, se o senhor acha que quer de mim maior liberdade, que posso fazer senão abandonar o meu sentimento de premência quanto à nossa relação, ocupar a minha libido desocupada em qualquer outro objeto e aguardar a minha oportunidade, até que o senhor descubra que pode tolerar uma intimidade maior. Quando isso acontecer, o senhor me procurará disposto. Durante a transição para esta atitude de reserva queixei-me muito baixinho. O senhor teria me achado insincero se eu não tivesse reagido de algum modo.”[x]

Honestamente, o modo como Freud encerra esta delicada carta é genial:

O senhor pensa que estou procurando alguma outra pessoa capaz de ser ao mesmo tempo meu amigo, meu colaborador e meu herdeiro, ou que espero encontrar outro tão logo? (…) Fique certo da minha catexia afetiva e continue a pensar em mim com amizade, mesmo se não me escrever com frequência[xi].

Para a psicanálise, catexia, é a canalização e concentração de grande parte da energia psíquica para um determinado objeto, pessoa ou ideia.

Do seu jeito teimoso, Freud tenta se manter na persona do mestre, mas não deixa de dar um tapa com luva de pelica em Jung, tocando justamente no ponto nevrálgico desde o início: a demora de Jung em responder as cartas no tempo que Freud apreciava.

Num ponto da narrativa, quando Jung havia tido seu terceiro filho, o primeiro homem, Freud analisa esta questão paterna, que pode bem se aplicar ao relacionamento de ambos:

“A transferência das próprias esperanças para um filho é, decerto, um excelente meio de alguém apaziguar seus complexos não resolvidos”[xii].

A troca de correspondência, claro, apresenta momentos positivos também, como numa das respostas de Jung de 29 de agosto de 1911 (269J): “Sua carta foi uma grande alegria: sou muito suscetível ao reconhecimento concedido pelo pai[xiii]. Estes momentos, por serem mais significativos do que as trocas de farpas, não serão analisados aqui, assim como as farpas que ambos disparam para colaboradores e inimigos ao longo da troca de correspondência, o que, por si só, renderia um estudo. O que torna esta obra vital de leitura tanto para qualquer estudioso quanto para praticantes do campo.

Por final ficam duas reflexões. A primeira: todos somos humanos, e pioneiros brilhantes como Freud e Jung também o são. A segunda: a fantasia de que curso teria sido a psicanálise e a psicologia analítica se ambos tivessem de fato conseguido lidar com seus complexos e seguir juntos. Levando em consideração que existiam diferenças e divergências significativas na visão de mundo, no que tange os valores espirituais e a capacidade criativa e curativa do inconsciente.

Monica Martinez – Analista em formação do IJEP

Waldemar Magaldi – Analista Didata do IJEP

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Referência:

FREUD; S.; JUNG, C. G. Cartas de Freud e Jung. 1. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2023.

Cartas de Freud e Jung: Reflexões sobre Complexo Paterno e Relações Humanas na Troca Intelectual e Emocional


[i] Carl Gustav Jung, Tipos Psicológicos (OC 6), 6th edn (Petrópolis, RJ: Vozes, 2012, § 187).

[ii] Cartas de Freud e Jung, ed. by William McGuire, 1st edn (Petrópolis, RJ: Vozes, 2023, p. 15).

[iii] Freud; and Jung, p. 76.

[iv] Freud; and Jung,, p. 179-180.

[v] Freud; and Jung, p. 181.

[vi] Freud; and Jung, p. 184.

[vii] Freud; and Jung, p. 465.

[viii] Freud; and Jung, p. 619.

[ix] Freud; and Jung, p. 638.

[x] Freud; and Jung, p. 639.

[xi] Freud; and Jung, p. 639.

[xii] Freud; and Jung, p. 281.

[xiii] Freud; and Jung, p. 575.

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