Arthur Fleck, personagem principal do filme Coringa, teve sua existência negada desde o início, desde sua infância. Sendo ou não, filho bastardo do magnata Thomas Wayne, as duas hipóteses apresentadas na história contam de um abandono: pelo pai rico na primeira suposição, ou por ambos os pais, no caso de realmente ter sido adotado pela mãe doente que o criou. Tratado sempre como uma criança, impedido de crescer psiquicamente, foi projeção de uma felicidade inalcançável de uma mãe disfuncional e doente que o chamava o tempo todo de “Happy” (feliz), apelido infantil que o manteve infantilizado por toda vida. Ninguém ri o tempo todo, a não ser que seja por uma esperança – o último mal contido na caixa de Pandora – para disfarçar o desespero. Negado pelo pai, fosse ele o milionário Thomas Wayne, fosse ele um pobre qualquer, Arthur não teve uma construção minimamente funcional de um complexo paterno. Herdou de sua mãe a capacidade de viver – até certo ponto – de fantasias, até que se tornou a literalização da paradoxalidade – individual e coletiva – negada pela sociedade.
Quando comete o matricídio, tentando se livrar na verdade do complexo materno disfuncional que o habita, dá um passo grande para se tornar literalmente uma hannya. A hannya é a representação de uma mulher que se tornou um demônio triste que ri de maneira ameaçadora e mostra, dentro da cultura japonesa do teatro Noh, a confusão de sentimentos humanos. Ela ri com a boca, enquanto seus olhos mostram angústia. Matar literalmente sua mãe não determina o fim do seu complexo materno. Arthur chega a nutrir também uma fantasia de companheirismo projetada numa mulher que mal conhece, uma vizinha. Com a impossibilidade de concretizar seus desejos, e com o embate da realidade, essa fantasia também se esvai, se desfaz. Depois desses acontecimentos, como no mito de Hermafrodito, Arthur é possuído por sua anima enlouquecida, uma ninfa faminta de amor e desejo que se prende a ele com desespero para não mais se soltar, os dois se transformam em um único ser que carrega em si traços masculinos e femininos. Hermafrodito era filho de Hermes e Afrodite. Seus pais foram portanto, o deus trickster, aquele que consegue transitar entre os três mundos (olímpico, telúrico e ctônico) e tem o poder de dominar as sombras, e a deusa do amor – Afrodite representa muitas formas diferentes do amor, mas principalmente a força da fecundidade que direciona os seres humanos de maneira instintiva; é o amor animal e selvagem que faz com que até mesmo Zeus, o mais poderoso dos deuses, perca o controle de seus atos. Arthur, tomado por esse amor instintivo, mas de maneira deturpada e distorcida, se torna aquele que faz emergir os conteúdos da escuridão de uma sociedade inteira.
O Coringa é a representação da sombra da cultura hipócrita, egoísta, consumista, preconceituosa, unilateralizante e literalizante. Além disso, traz consigo características de todo indivíduo tratado como invisível por essa sociedade. Por isso, a identificação com o personagem é tão fácil por aqueles que têm o mínimo de sensibilidade, no que diz respeito a essas questões, ao mesmo tempo que é negado veementemente pelas pessoas que mostram indiferença com esses assuntos. Ele pode ser a sombra de qualquer um de nós, afinal, ele é um coringa e pode ocupar qualquer posição no jogo social. Então, é apenas óbvio que quando Arthur se torne o Coringa, leve consigo toda a parte pobre, suja, doente e louca da população de Gotham num movimento frenético e catártico que se espalha contagiando psiquicamente todas essas pessoas. A parte negada da sociedade se identifica com ele, o apoia e o segue, mesmo sem saber direito para onde está sendo conduzida.
Ele representa um impulso irracional para a mudança. É de natureza ambígua: ri com a boca enquanto sofre com os olhos; tem uma aparência andrógina; usa paletó e pinta o rosto como um palhaço; destrutivo e criativo ao mesmo tempo. Nunca sabemos se o que diz é verdade ou mentira. A tensão que antecede suas ações é constante, elas são sempre imprevisíveis. Tem o poder de nos incitar a mergulhar no desconhecido, nas sombras. Essa é a descrição da carta “o louco” do tarô mitológico, e ela é a representação do deus grego Dioniso. Na carta, o deus louco se prepara para saltar para o mundo inferior enquanto é guardado pela águia de Zeus. Arthur desce as escadas nessa mesma direção amparado por pombos, ratos com asas, como são chamados às vezes. Na falta das folhas de vinha nos cabelos, usa apenas tinta verde barata. Assim como a hannya, o louco tem chifres na frente da cabeça, o que indica uma condição instintiva animal. O Coringa é o messias das sombras, um Dioniso do mundo inferior, uma mistura de mitos e mitologemas – o Coringa.
Não quero reduzir esse personagem a um único mito ou representação simbólica, porque isso transformaria o símbolo em signo e caracterizaria um erro. Faço apenas a consideração da projeção de um aspecto arquetípico específico do inconsciente. Consciente de que o trabalho de análise de mitos, contos de fadas ou sonhos, alinhado com o objetivo da psicologia junguiana, é de sempre ampliar, e não reduzir ou encerrar uma interpretação. O próprio personagem propõe isso de maneira genial: ele não se encerra, não se torna apenas um vilão e não tem apenas duas caras, tem milhares. Essa é a razão pela qual muitos espectadores saíram da apresentação com sentimentos ambivalentes num espectro amplo oscilando entre a atração e a repulsão. Possui todas as caras escondidas pelas máscaras de seus seguidores: qualquer um pode ser um coringa, assim como o Coringa pode ser qualquer um.
No consultório com clientes, em conversas com amigos, conhecidos, e com pessoas que estudam a psicologia junguiana e outras, posso perceber como o filme tem um impacto grande causando impressões profundas nos indivíduos. Gostando ou não do filme, ninguém sai da experiência sem se sentir tocado de alguma maneira. E mesmo que não haja reflexão, a imagem, ou as imagens evocadas em cada um são suficientes para mostrar que arquétipos, afetos e complexos foram estimulados. É extremamente interessante a pluralidade de leituras que surgem, com suas diferenças e similaridades. Obviamente, cada um falando de seus próprios aspectos espelhados, de alguma maneira, na tela do cinema.
Para mim, de todos os recortes analíticos, o mais importante está na ideia de que, quanto mais unilateral e literal nossa sociedade se torna, maior o perigo de vivermos movimentos enantiodrômicos avassaladores que nos levam para o outro lado do pêndulo, também de forma extrema e patológica. Enquanto não aceitarmos que somos seres paradoxais, e que é necessário mergulhar em si mesmo para integrar nossos aspectos sombrios masculinos, femininos, andróginos e loucos, alimentaremos sociedades com culturas ainda mais divididas e estratificadas. Jung, no texto abaixo, comenta a importância do paradoxal e do enfraquecimento da religião quando esta abre mão do contraditório e dos questionamentos opositivos:
“Surpreendentemente, o paradoxo pertence ao bem espiritual mais elevado. O significado unívoco é um sinal de fraqueza. Por isso a religião empobrece interiormente quando perde ou reduz seus paradoxos; no entanto, a multiplicação destes últimos a enriquece, pois só o paradoxal é capaz de abranger aproximadamente a plenitude da vida. A univocidade e a não contradição são unilaterais e, portanto, não se prestam para exprimir o inalcançável.” (JUNG, O.C. VOL 12, § 18)
Parece falar aqui especificamente sobre religião, porém, é possível e importante ampliarmos isso para outros – talvez todos – aspectos da vida. Percebamos que ele diz que “só o paradoxal é capaz de abranger aproximadamente a plenitude da vida”. Ou seja, mesmo vivendo o paradoxo, somos aproximadamente completos, e sem ele nos tornamos cada vez mais doentes. É preciso entender e aceitar que em cada um de nós habitam personagens que nos fazem chorar e rir ao mesmo tempo. Ouçamos os loucos, dionísios, coringas e hannyas que vivem em nós e façamos esse mergulho nas profundezas do nosso ser em busca dos paradoxos que nos tornam verdadeiramente aquilo que deveríamos ser, antes que seja tarde demais. Afinal de contas, sem dúvida não pode existir a fé!
*Jose Luiz Balestrini Junior, ser humano, psicólogo, especialista em psicologia junguiana pelo IJEP, analista junguiano em formação pelo IJEP, especialista em medicina tradicional chinesa, e Sifu (mestre) de Kung Fu.
E-mail: balestrini@lungfu.com.br
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Consultório: (11) 98207-7766
Referências
JUNG, C. G. Psicologia e alquimia, O.C. vol. 12, Petrópolis, Vozes, 2016.