“God, has no mind, has no heart / Has no body, has no soul and no resemblance of you“ (Deus não tem mente, não tem coração / Não tem corpo, não tem alma, nem semelhança com você). Esta é uma das frases finais da canção “The Shadow Hunter” (O Caçador Sombra) da banda Angra, que tem sua letra composta pelo guitarrista Rafael Bittencourt, assim como o conceito, textos e as outras letras do álbum são de sua autoria, que foi todo concebido em torno de uma temática de questionamento da própria fé de um personagem fictício que é um cavaleiro do exército das cruzadas do Papa Urbano II, conhecido como “The Shadow Hunter”, que também nomeia a canção a ser explorada neste artigo.
As dúvidas e angústias vividas pelo cavaleiro cruzado de Bittencourt, lembram as de um personagem semelhante, do filme “O sétimo selo”, do cineasta sueco Ingmar Bergman, e representam o drama humano sobre a fé. Adicionalmente, ambas as produções artísticas, música e cinema, questionam se as Cruzadas tiveram de fato cunho de fé. Segundo Huberman (1986) as Cruzadas tiveram papel crucial no desenvolvimento mercantil da Europa e influenciou consideravelmente a transição do feudalismo para o capitalismo, o que nos coloca em condições de assumir que havia uma dose de fundamentalismo e dominação nessas ações bélicas, mais do que premissas baseadas puramente em fé.
No caso do Caçador Sombra, além dele fazer parte de um exército que não mais representa sua fé, ele vive a dor de ter sua esposa e filhos, ela de origem muçulmana (sendo os muçulmanos os principais alvos dos católicos nas Cruzadas), mortos em uma das ações. A partir daí ele revive alguns momentos de desespero, descritos na letra da música, que nos convidam a utilizar a narrativa de Bittencourt como uma metáfora das dores, sofrimentos e dúvidas que a nos traz fé. Nas palavras do compositor “este não é um álbum para meninos”, proferidas em entrevista concedida ao canal Heavy Talk do YouTube, quando defendia ser mais cabível uma leitura mais simbólica e menos literal de sua obra. Me sinto autorizado, portanto, a examiná-la à luz da Psicologia Junguiana, sem com isso ter um compromisso em decodificar literalmente o que o autor quis expressar, mas fazendo um sobrevoo nos elementos simbólicos presentes na canção.
“I remember the blood on his hands / So ashamed, regretting his faults” (Eu me recordo do sangue em suas mãos / Tão envergonhado, lamentando suas culpas), são as frases que introduzem a canção e que dão entender, ainda que não fique claro, que se trata de uma lembrança do Caçador Sombra de uma conversa que ele teve com o algoz de sua família, mas que também poderia ser compreendida como um diálogo simbólico do Caçador Sombra com seu alter ego. Ele parece estar resignado, escutando as queixas do cavaleiro, compreendendo que naquele contexto estava presente uma banalização do mal – na perspectiva arendtiana –, com uma pessoa que fez algo porque “precisa ser feito” sem haver reflexão crítica a respeito, assim como Hanna Arendt analisou o papel de Eichmann no nazismo. Em Ecl 8, 14 se observa uma ideia que sustenta metaforicamente a necessidade de resignação humana diante de incoerências, tal como é a do Caçador Sombra diante deste acontecimento: “Há uma vaidade que se faz sobre a terra: há justos que são tratados conforme a conduta dos ímpios e há ímpios que são tratados conforme a conduta dos justos. Digo que também isso é vaidade”.
O Caçador Sombra assume então a fragilidade de sua fé e de suas devoções, mas passa a buscar razões para a sua dor. Enlutado pela perda de sua família, sua psique se apresenta em estado de regressão em que, conforme sugere Jung (OC 8/1, 2002), a psique passa a revisitar e reviver situações do passado, acessando especialmente aqueles conteúdos que não foram integrados ao processo de adaptação externa (progressão). Seu questionamento de fé parece a revelação de um conflito ético inconsciente, onde os desejos da consciência ficam interditados por um complexo ainda não muito claro. Contudo, sua busca pelo desconhecido não aparenta ser uma desistência da fé, oposto, parece ser um anseio pela ressignificação desta relação. Segundo Emma Jung & Von Franz (1980), o vazio, ou a sensação de vazio, exerce um poder de atração para a psique, pois possui grande valor energético, por almejar ser preenchido.
Exemplificando com um aspecto da contemporaneidade, podemos pensar no “vazio psíquico” social como uma tentativa do ego de se abastecer com imagens exógenas (CONTRERA, 2015), como se fosse uma resistência ao movimento de regressão da psique, por meio do uso de celulares, reality shows, redes sociais, pornografias, uma vez que as imagens endógenas, oriundas do inconsciente coletivo, não conseguem se expressar no ego, a não ser alimentando complexos que serão experimentados como doenças e compulsões na consciência (MAGALDI FILHO, 2014). O Caçador Sombra, em seu estado de regressão, num primeiro momento se apresenta fixado em tentar resolver o enigma da sua fé externamente, assim como Perceval ficou paralisado ao encontrar o Santo Graal (Emma Jung & Von Franz, 1980), mas é exatamente na fé que ele irá encontrar uma possível saída para a diminuição de seu sofrimento, como se observa neste trecho da canção: “But I’ll fight till the end / Gonna find my Holy Grail” (Mas lutarei até o fim / Acharei meu Santo Graal).
O estado de regressão sugere ao Caçador Sombra uma reflexão mais profunda de seu papel ecológico e psíquico em sua passagem de vida. Uma das frases extraídas do livro Eclesiastes da Bíblia e inseridas na música (“What does a man gain from his work? Under the sun where he labors”) revelam este aspecto: “Que proveito tira o homem de todo o trabalho com que se afadiga debaixo do sol?” (Ecl, 1, 3). É possível pensar nessa indagação na perspectiva alquímica, considerando o trabalho como a opus, isto é, a obra que será feita a serviço de si e da humanidade, uma obra que o reconecta com Gaia e com a sua totalidade. O conflito vivido pelo Caçador Sombra é a de alguém que experimenta um movimento que sai do estado de inflação do ego (“Lost my pride, fought in vain” – Perdi meu orgulho, lutei em vão), para alienação do ego, que é a cisão entre ego e Self, conforme explicado por Edinger (2020). Essa tentativa de reconexão interior acontecerá junto a um grande sentimento de angústia (EDINGER, 2020), descrita nesta passagem: “Had to find reasons to my pain” (Tive de encontrar razões para a minha dor).
Caminhando em sua jornada de reflexões, ele tenta buscar a dissolução deste núcleo conflituoso em sua psique. Essa intencionalidade é fundamental para o processo de individuação, tal como menciona Jung (OC 12, 2012). Para tanto, é necessário trazer a intenção para a consciência, pois esta é, tal como sintetiza Jung (OC 10/3, 2013, §825,) “um fenômeno complexo que consiste, por um lado, num ato elementar da vontade ou num impulso para a ação que não se baseia em motivo consciente e, por outro lado, num julgamento baseado no sentimento racional”.
“Running blind against the faith / Running blind again” (Correndo cego contra a fé / Correndo cego novamente), passa a impressão de que ao lutar contra a fé, o Caçador Sombra também perde referência, como se lutar contra a fé fosse tão entorpecedor quanto lutar sem ela. Esse é um tipo de questionamento ético que acontece no processo de desenvolvimento da personalidade e tem implicância significativa para o amadurecimento psíquico se isso for tomado em consideração conscientemente. Segundo Jung (OC 17, 2008, §314) “Na mesma medida em que alguém se torna infiel à sua própria lei e deixa de tornar-se personalidade, perde também o sentido da própria vida. Por sorte a natureza bondosa e indulgente não chega a propor à maioria das pessoas essa pergunta fatal a respeito do sentido da própria vida. E se ninguém pergunta também ninguém precisa dar resposta”. Quando Jung menciona “a natureza bondosa e indulgente não chega a propor…” ele se refere, com alguma ironia, a responsabilização pelo problema do drama existencial, no sentido de que ao ignorar um conflito ou ao atribuir sua causa a algo externo ou a alguém, tem o mesmo sentido de não “receber a proposta da natureza” para refletir sobre a própria vida, pois isto se refere a um estado em que o ego, defendido e/ou identificado com a persona, se mantém na posição de alienação, resistindo bravamente às mensagens e o esforço que o self faz pela vida inteira para sensibilizar o sujeito, por meio de conflitos, doenças, sonhos e sincronicidades, o que podemos entender como “propostas da natureza”.
Em outros termos, e simbolicamente, o que teria feito Caçador Sombra, agora em profundo conflito, optar por ser um cavaleiro do exército das Cruzadas? Teria havido opções para ele? Ele foi produto de um espírito de sua época? Seria este o seu caminho cármico e necessário para ele reestabelecer sua conexão com seu sagrado interior? Como cita Jung (2017, pág. 319) no Livro Vermelho “Por isso diziam os antigos que, após Adão ter comido a maçã, a árvore do paraíso secou. Tu precisas do escuro para tua vida. Mas quando sabes que é o mal, não mais o podes aceitar, passas por necessidades e não sabes por quê. Mas também não o podes aceitar como o mal, caso contrário teu bem te rejeita. Também não podes negar que conheces o bem e o mal. Por isso conhecimento do bem e do mal foi uma maldição insuperável (…)”, e continua: “Quem não suporta a dúvida não suporta a si mesmo”. É preciso, portanto, assumir consciência diante das ambiguidades e paradoxos da vida.
O Caçador Sombra sugere que consegue dar conta de sustentar suas dúvidas e por isso se apresenta um caminho de resolução quando ele descola sua fé da instituição (“Church is falling like castles on the sand” – Igrejas estão caindo como castelos sobre areia) e caminha para uma conexão direta com o seu sagrado: “Jesus was a man / With a heart, with a mind / With a body, with a soul / So divine a your own” (Jesus foi um homem / Com um coração, com uma mente / Com um corpo, com uma alma / Tão divina quanto a sua). Essa passagem lembra a ideia de Jung (OC 12, 2012) da imitatio Christi em que ele sugere que a imitação simbólica da vida de Cristo é uma incumbência possível para todos os seres humanos, não no sentido das literalidades, mas no seu simbolismo, que propõe reconexão com o sagrado interior, com o exercício do altruísmo e com a incumbência de se tomar um caminho do servir sem ser subserviente. Aqui também parece se apresentar ao Caçador Sombra, a função transcendente, que é a função psicológica que integra conteúdos da consciência e do inconsciente (Jung, OC 8/2, 2013).
Quase no final da canção, a frase a que introduziu este texto, e que se refere a não corporeidade de Deus, parece ter reverberação com a ideia junguiana de que o Self é a imagem arquetípica de Deus que nos habita (JUNG, OC 12, 2012), sendo apenas representável, mas não materializável, e que só pode ser experimentada individualmente, relembrando sua célebre frase dita em entrevista à BBC de Londres “I don’t need to believe. I know.” (Eu não preciso acreditar. Eu sei).
A expressão que de fato encerra a canção é “No! / Like chasing the wind” (Não! / Como caçar o vento). Esta também faz alusão ao Eclesiastes, e parece se referir à uma compreensão simbólica (ou tentativa de compreensão) do Caçador Sombra sobre a sua fé, aceitando que não se pode controlar o incontrolável da vida, e sugerindo uma possível resolução para seu drama de fé. O Ecl 11, 6 expressa esta ideia “De manhã semeia tua semente, e à tarde não repouses a mão, pois não sabes qual delas prosperará: se esta ou aquela, se ambas serão boas”.
Uma melhor compreensão da jornada psíquica do Caçador Sombra exige uma leitura completa do álbum Temple of Shadows (Angra / Rafael Bittencourt), que é todo baseado em sua trajetória. Contudo, ao fim deste texto está a versão original em inglês e a tradução para o português da canção que baseou a análise aqui exposta. A jornada do The Shadow Hunter (Caçador Sombra) é paradoxalmente individual e coletiva: individual à medida que se refere à acontecimentos de sua vida, com suas particularidades, responsabilidades e acasos, e até mesmo pode expressar as angústias existenciais do autor, e coletiva pois se refere a um drama humano, atemporal e arquetípico, que é o problema da fé. Somente com um profundo exame da própria vida e responsabilização pelo próprio processo de autoconhecimento é que se poderá ter a expectativa de reconexão com o sagrado e reestabelecimento de uma vida com sentido e significado, “antes que o pó volte à terra de onde veio, e o sopro volte a Deus que o concedeu” (Ecl, 12, 7). “Vaidade das vaidades – diz Coélet – tudo é vaidade” (Ecl, 12, 8).
Rafael Rodrigues de Souza é Analista Junguiano em formação do IJEP.
Letra: The Shadow Hunter / O Caçador Sombra
I remember the blood on his hands / Eu me recordo do sangue em suas mãos
So ashamed regretting his faults / Tão envergonhado, lamentando suas culpas
So defenseless he came from the darkness / Tão indefeso, ele veio da escuridão
We spoke and had a good talk / Dialogamos e tivemos uma boa conversa
Dark old hat reminds me of someone / Velho chapéu negro, me lembra alguém
I find hard to recall / Acho difícil me lembrar
Bowed his head surrendering to sorrow / Curvou sua cabeça se rendendo à tristeza
Wears the face of war / Trajava a face da guerra
Desperate cries / Gritos desesperados
(Desperate cries) / (Gritos desesperados)
Running in circles / Correndo em círculos
(Mourning in vain) / (Lamentando em vão)
Resigning to terror / Submetendo-se ao terror
(A sinful warfare) / (Uma guerra pecaminosa)
A sinful warfare / Uma guerra pecaminosa
(Innocents die) / (Inocentes morrem)
Lost in the faith from my fragile heart / Perdido na fé vinda de meu frágil coração
From my heart / De meu coração
Wearing black, a bow without arrows / Vestindo preto, um arco sem flechas
God, have mercy on his soul / Deus tenha piedade de sua alma
Eyes of dread, entrenched in horror / Olhos de medo, arraigados ao horror
My devotions are gone! / Acabaram-se minhas devoções
(Desperate cries) / (Gritos desesperados)
Running in circles / Correndo em círculos
(Mourning in vain) / (Lamentando em vão)
Resigning to terror / Submetendo-se ao terror
(A sinful warfare) / (Uma guerra pecaminosa)
Atrocious attack / Ataques atrozes
(Atrocious attack) / (Ataques cruéis)
My crusaders faith / A fé da minha cruzada
Drowns in religious blood / Se afoga em sangue religioso
But I’ll fight till the end / Mas lutarei até o fim
Gonna find my Holy Grail / Acharei meu Santo Graal
Running blind against the faith / Correndo cegamente contra a fé
Reason slips away / A razão escapa de minhas mãos
Churches falling like castles on the sand / Igrejas caindo como castelos sobre a areia
Ends the Holy War / Termina a Guerra Santa
Have the good for bad / Tem o bem para o mal
What does a man gain from his work? / O que um homem ganha por seu trabalho
Under the sun where he labors / Sob o sol onde labuta?
What is so good for a man in life? / O que é tão bom para um homem em vida?
During his days he’s just like a shadow / Durante seus dias ele é como uma sombra
Vanitas! Vanitas! Utters the oracle / Vaidade! Vaidade! Profere o oráculo
A chasing after the wind / Uma caçada ao vento
Meaningless! Meaningless searches for wisdom / Inexpressivas! Inexpressivas buscas por sabedoria
Everything is in vain like your hunting for shadows / Tudo é em vão como sua caçada por sombras
Lost my pride, fought in vain / Perdi meu orgulho, lutei em vão
Had to find reasons to my pain – Oh! / Tive de encontrar razões para a minha dor, oh!
Running blind against the faith / Correndo cego contra a fé
Running blind again / Correndo cego novamente
Church is falling like castles on the sand / Igrejas caindo como castelos sobre a areia
Ends the Holy War / Termina a guerra santa
Jesus was a man / Jesus foi um homem
With a heart, with a mind / Com um coração, com uma mente
With a body, with a soul / Com um corpo e com uma alma
So divine as your own / Tão divina quanto a sua
God has no mind, has no heart / Deus não tem mente, não tem coração
Has no body, has no soul and no resemblance of you / Não tem corpo, não tem alma nem semelhança com você
No! / Não!
Like chasing the wind / Como caçar o vento
Referências:
CONTRERA, Malena. A imagem simbólica na contemporaneidade. II Congresso CRI2i, Porto Alegre, Brasil – 29 a 31 de outubro de 2015, pág. 62-73.
EDINGER, Edward. Ego e Arquétipo: uma síntese fascinante dos conceitos psicológicos fundamentais de Jung. 2ª ed. São Paulo: Editora Pensamento Cultrix, 2020.
HUBERMAN, Leo. História da riqueza do homem. 21ª ed. Rio de Janeiro: LTC Editora, 1986.
JUNG, Carl Gustav. A energia psíquica, OC 8/1, 8ª ed. Petrópolis: Vozes, 2002.
JUNG, Carl Gustav. A natureza da psique, OC 8/2, 10ª ed. Petrópolis: Vozes, 2013.
JUNG, Carl Gustav. Civilização em transição, OC 10/3, 6ª ed. Petrópolis: Vozes, 2013.
JUNG, Carl Gustav. O desenvolvimento da personalidade, OC 17, 10ª ed. Petrópolis: Vozes, 2008.
JUNG, Carl Gustav. O Livro Vermelho: edição sem ilustrações. 4ª ed. Petrópolis: Vozes, 2015.
JUNG, Carl Gustav. Psicologia e alquimia, OC 12, 6ª ed. Petrópolis: Vozes, 2012.
JUNG, Emma; VON FRANZ, Marie-Louise. A lenda do Graal: do ponto de vista psicológico. São Paulo: Cultrix, 1980.
MAGALDI FILHO, Waldemar. Dinheiro, saúde e sagrado: interfaces culturais, econômicas e religiosas à luz da psicologia analítica. 2ª ed. São Paulo: Eleva Cultural, 2009.