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O efeito gado e a sombra nossa de cada dia

O efeito gado e a sombra nossa de cada dia

O efeito gado e a sombra nossa de cada dia

“Ninguém está fora da negra sombra coletiva da humanidade”, avisa Jung. Pode ser muito bom lembrar isso na conjuntura social e política do Brasil neste momento de sua História. Vai aqui uma sugestão de Jung para você e eu tirarmos da sombra individual e coletiva o melhor, no sentido de avançarmos em direção a um horizonte de mais viva esperança. 

Sessenta por cento dos eleitores. “No máximo”, escreve Jung (OC 10/1, §523), alertando se tratar de uma “estimativa otimista”. Com base em plebiscitos – imagino que na Suíça dos tempos de Jung ou ali por perto, e sempre de acordo com ele –, essa poderia ser considerada a camada da população a que ele chama de “espiritualmente estável e consciente”. Estimativa otimista!

Para Jung, esses eleitores, vamos dizer assim, estariam aptos ao exercício encantado da “razão crítica”, no confronto com a gama enorme de atentados contra a alma humana, por via, por exemplo, da massificação, do absolutismo do Estado, da ideologia como mascaramento do real, da ditadura de qualquer tipo ou, ainda, de um tanto de outras coisas que costumam se colocar como ameaça no caminho da afirmação do indivíduo como “medida de todas as coisas” (JUNG, OC 10/1, §523). 

Tratar-se-ia, ao fim e ao cabo, daquela parte da população capaz de se afirmar como sujeito e, com isso, de fugir ao jogo diabólico da perversão representada pelo espírito de gado, de manada – de “massa”, para Jung –, esse jogo tão apreciado, e favorecido, pelas tiranias de todas as formas, tempos e lugares.

Escrito em 1957, o livro 1 (Presente e futuro) do volume 10 (Civilização em mudança) das Obras Completas de Carl Gustav Jung nos situa na perspectiva da Europa do pós-guerra. Apresenta-nos um Jung já com mais de 80 anos e muito preocupado com os destinos da humanidade. O octogenário Jung sofreu no corpo e mais ainda no espírito os horrores causados pelo domínio da sombra e da culpa coletiva em duas grandes guerras, algo que o orgulhoso e arrogante século XIX passava longe de poder – ou querer – imaginar. Mais: o homem branco europeu “carrega um enorme peso na consciência” –, como se observa quando a conversa migra das guerras medonhas, ali no continente, para o campo do colonialismo – por causa das “crueldades e carnificinas” que ele, o homem branco europeu, provocou (JUNG, OC 10/1, §571). 

A Guerra Fria desloca nessa época o eixo bélico da Europa para os países periféricos e instaura no mundo o equilíbrio do terror, fundado na lambança dos gastos militares – coisa de doido. Uma “cortina de ferro” divide nessa mesma época o continente, e com ele de certa forma o mundo, em dois grandes blocos, o do Império Soviético e o do Império Americano, cada um com suas zonas de influência, sob o jugo respectivamente do comunismo e do capitalismo. Sombra, sombra, sombra! 

A ameaça nuclear paira por sua vez também como uma enorme sombra sobre o mundo, projetada pelo brilho absurdamente letal das bombas de Hiroshima e Nagasaki – e Jung desde 1946 já se interrogava, muito preocupado: “Será que as condições morais e espirituais do homem se encontram suficientementes maduras para gerir o uso dessas armas e enfrentar a monstruosidade das consequências possíveis?” (JUNG, OC  10/2, §457).

Pergunta retórica. Tudo em Jung nos leva à triste conclusão que não: o homem não se encontra moral e  espiritualmente preparado. É Jung mesmo quem o diz, quase que ad nauseam, no contexto da primeira metade do século XX europeu e também depois.

De um lado e de outro da muralha ideológica viceja o materialismo e a fé inabalável na ciência e em sua irmã, a tecnologia triunfante – e nesse terreno específico, capitalismo americano e comunismo soviético brincam por essa época de amarelinha no mercado onde, como Jung se expressa falando do povo alemão, se vende “o espírito à técnica” (JUNG, OC 10/2, §433). 

Os regimes totalitários, não vamos esquecer, estão também ali, vivos, vivíssimos, no mundo real tanto quanto numa lembrança ainda muito fresca das engenharias do terror. Tempos sombrios!  

É nesse ramerrão geopolítico todo, de briga de cachorro grande e de ameaças com letras maiúsculas, que Jung levanta, assustado, agoniado, a bandeira da defesa da alma humana como o lugar onde o jogo se joga de verdade. Jung vê no indivíduo  e em sua singularidade a realidade concreta e vital que os grandes projetos, planejamentos e promessas de matriz científico-tecnológica – exteriores, portanto – prometem, mas não conseguem abarcar.

É sobre o indivíduo que recai corajosamente o foco da psicologia analítica. O indivíduo no mundo, na sociedade, na política, é preciso sempre dizer – porque outra maneira não há de o indivíduo existir. Xô,individualismo! Coisa mais tosca essa de alguém se imaginar numa bolha, nada tendo a ver com a política, direitos e deveres, o preço do pão francês na padaria da esquina e da carne no açougue logo em frente! Jung não pensa desse modo, ao afirmar a perspectiva do indivíduo.

“Nossas realidades culturais não caem do céu”, avisa Jung (OC 10/2, §462). E “cultura”, como está sendo pensado por ele, tem tudo a ver com os modos como pensamos, sonhamos, trabalhamos para organizar o social e o político, a escola para o filho, o almoço do domingo, o atendimento à saúde. Tudo.  

“Sem a transformação do indivíduo, nada pode acontecer” (JUNG, OC 10/1, §582). “Tudo depende, portanto, exclusivamente, da condição do indivíduo singular” (JUNG, OC 10/1, §535). O pai da psicologia analítica nos desafia todo o tempo a “examinarmos nosso coração e nossa consciência” (JUNG, OC 10/2, §441). “Não falo para nações, falo para indivíduos, para alguns poucos que sabem que nossas realidades culturais não caem do céu, consistindo em realizações de homens individuais” (JUNG, OC 10/2, §462). “Alguns poucos.” Anote aí. 

Ponto de vista negativo

Há, porém, uma outra visão possível, “mais pessimista”, assinala Jung, diferente dessa que dá sessenta por cento para o espírito crítico e quarenta por cento para a alienação mental. Também porque, como ele expressa, “o dom da razão e da reflexão” – da consciência, portanto, em sua melhor expressão, e, com isso, da crítica e da autocrítica – “não constitui uma propriedade incondicional do homem”. Aliás, nada é “incondicional” nesse mundo dos comportamentos e atitudes humanos. Mesmo lá, onde a virtude da razão crítica se deixa ver e celebrar, “ela se mostra muitas vezes instável e oscilante”  (JUNG, OC 10/1 § 489). Instável e oscilante!

Em outro trecho do mesmo livro, mais adiante, Jung volta a expressar esse seu sentimento negativo face a certos postulados que exalam o perfume meio ingênuo de uma aposta grande demais nas virtualidades humanas – e muito particularmente em relação às possibilidades que emergem do agir coletivo. “Não podemos ser muito otimistas”, sugere Jung. “Como se sabe, a natureza não é tão pródiga com seus dons a ponto de dar, por exemplo, a uma grande inteligência também o dom do coração.” Quando um é dado, o outro falta, em regra. Se uma faculdade humana avança e se aperfeiçoa, isso costuma acontecer à custa das demais. Há uma unilateralidade embutida nessas dinâmicas da alma humana. “Um capítulo especialmente penoso é precisamente a falta de integração entre sentimento e intelecto que, na experiência, dificilmente se compatibilizam” (JUNG, OC 10/1, §569). Dificilmente!

Lembra o convite de Jung, linhas atrás, a examinarmos “nosso coração e nossa consciência”? Aqui, o várias vezes Vovô Jung está dizendo que a coisa não é fácil, que a integração entre um e outro lado de nós mesmos não se dá, constituindo por isso mesmo “um capítulo especialmente penoso”. “Quem quer passar além do Bojador / Tem que passar além da dor”, diz o poeta, e nisso ele concorda de cheio com Jung.

Por certo podem ser muito diversos os modos como se apresentam a instabilidade e a oscilação de que trata Jung ao falar dos respeitáveis sessenta por cento de pessoas “espiritualmente estáveis e conscientes”. São pessoas de espírito crítico, diferentes portanto da condição triste e assustadora de indivíduos dissociados psíquica e cognitivamente, resultando em formas também diversas de dissociação social, coletiva – coisa de gado. 

Jung menciona um caso em que o potencial consciente desses sessenta por cento de eleitores críticos costuma, no mínimo, balançar. Isso pode facilmente ocorrer – ele diz – em circunstâncias políticas em que determinados grupos – de não-amantes da razão crítica! – adquirem uma expressão maior, mais contundente. “Se o Estado de direito sucumbe, por exemplo, a um acesso de fraqueza, a massa pode esmagar a compreensão e reflexão ainda presentes em indivíduos isolados, levando fatalmente a uma tirania autoritária e doutrinária” (JUNG, OC 10/1, §489). Morte da razão crítica, por esmagamento… Dá até para pensar numa boiada desembestada. Quem segura?!

Jung não podia, na época, se referir a uma teoria da comunicação de massa – palavra perigosa, para Jung! – que só viria a existir a partir do final dos anos 1970, desenvolvida pela alemã Elizabeth Noelle-Neumann: a espiral do silêncio. Traduzindo, de forma simples: quando você, que se imagina fora da bolha ou da manada, se cala – por medo, covardia ou simplesmente por não querer se sentir um peixe fora d’água –, acaba consolidando a perspectiva de pensamento e ação com a qual não concorda. E o que às vezes nem maioria é acaba por parecer maioria. Pior: acaba virando maioria. Eia, boi! 

Isso representa mais do que pode significar a expressão “quem cala consente”. O estrago nas relações amorosas entre coração e consciência é maior, e o é também para o mundo da sociedade e da política, do coletivo. Um silêncio, portanto, que de fato grita, ou fede – o silêncio da espiral do silêncio.

Em que condições, então, pode se dar o verdadeiro estado de graça de uma argumentação racional, que leve a uma mudança positiva no campo social e também do indivíduo? Como garantir na esfera pública a boa deliberação, fundada na ação comunicativa? – é o que perguntaria Jürgen Habermas, um representante ainda vivo da Teoria Crítica, ou Escola de Frankfurt.

Vai depender do nível das emoções, responde Jung. Há um ponto crítico, um nível de “temperatura afetiva” que, em sendo ultrapassado, “dá ruim”. É quando o racional perde o seu caráter racional – democrático, poderíamos acrescentar –, e a coisa descamba para o lado da “possessão coletiva”. E da possessão à epidemia psíquica é um pequeno pulo. A virulência antissocial assume a dianteira. O efeito gado triunfa. Viva o fanatismo! Viva o Führer! Heil!

Mito! Mito! Mito! 

Crítica? Autocrítica? Kkk!

“Eh, oh, oh, vida de gado. Povo marcado, eh! Povo feliz!”, canta Zé Ramalho, em “Admirável gado novo!”. 

Toda semelhança com o Brasil desses nossos últimos e horrorosos anos de insensatez política, de destruição sistemática das prerrogativas do estado de direito e de vilipêndio à democracia, aos direitos sociais e ao direito sagrado que tem a pátria de ser mátria, frátria (Caetano Veloso), não é mera coincidência. Mas não é, mesmo!

Mas engana-se redondamente quem imagina que esse tipo de gente dissociada, doida de pedra, fanática, constitua “simplesmente uma curiosidade apenas vista nas prisões e nos hospícios”, chama a atenção Jung. Porque bastaria, em princípio, fazer as contas da matemática do pessimismo que se anuncia em Jung a respeito do assunto. Senão vejamos: já a visão otimista situa em cerca de 40 por cento – 4 em cada 10! – o número de eleitores que, sem maior acanhamento, conseguem se deixar arrastar pelo movimento avassalador do espírito de gado

Mas – como dizia Jung – esse número cresce, até Deus sabe que altura, em circunstâncias onde o estado de direito sucumbe e as loucas emoções tomam conta de uma nação. A manada aumenta, se irrita, urra. O homo hominis lupus, de Hobbes, sai do armário, de dentes arreganhados. Tudo ameaça virar com o tempo uma verdadeira bellum omnia omnes, a guerra de todos contra todos, ainda segundo Hobbes – e, se somos angustiados, se reina um desconforto geral no mundo, defende Freud em O mal-estar na civilização apoiando-se em Hobbes, é porque no fundo, no fundo, a civilização o que faz é cercear, reprimir esses nossos instintos mais básicos… 

Libere o lobo! Solte os cães raivosos! Solta os instintos e empunhe as armas, gado! Marcha, soldado! Um-dois-um-dois! A nossa bandeira jamais será vermelha! Deus acima de tudo!

Voltando a Jung, a razão crítica – a faixa da população “espiritualmente estável e consciente”, mais uma vez – irá sob essas condições desfavoráveis parecer de repente completamente esmagada sob os cascos da boiada. Triturada. Silenciada. Parecer? 

Jung está nos dizendo que a coisa é muito mais séria, perigosa, triste. Mais do que to be or not to be. Um caso sério de psiquiatria, e você às vezes nem respirar direito consegue em contextos como esse. Deus me livre! Hannah Arendt dizia do totalitarismo que sua ação mais perversa não consiste primeiramente em cercear a liberdade, perseguir, matar: ele age sobre a nossa alma, louco para destruir nossa capacidade de pensar e refletir, de sentir (ARENDT, 2008). Uma morte por dentro. A pior.

Com seu pessimismo, pelo menos nesta parte específica de sua obra, Jung também não ajuda muito a dissipar essa sensação de impotência provocada pelo fenômeno do efeito gado, ou da possessão coletiva e consequente epidemia psíquica. Porque, no caso negativo e assustador de aumento da efervescente loucura, e ampliando o pensamento de Jung, pode-se intuir facilmente que a rua vira hospício. A avenida e as rodovias viram hospício. As portas dos quartéis viram hospício. Nossas igrejas viram hospício. Todo lugar pode virar hospício. 

Mas como é que se chega a essa conclusão tão assustadora? A culpa é de Jung! Ele fala essas coisas, e a gente fica aqui, sofrendo, como cidadãos desafiados pela vida a escapar da caverna de Platão, onde o que se vê são simulacros dessa mesma vida. “Isso mesmo!” – protesta Jung. “Você tem toda a razão!”

Pelos cálculos que Jung faz com base em sua experiência de muitos anos como médico e terapeuta, “para cada caso manifesto de doença mental existem ao menos dez casos latentes que nem sempre chegam a se manifestar”. As condutas dessa gente e seus modos de ver as coisas “encontram-se sob a influência de fatores inconscientes doentios e perversos, apesar de toda a aparência de normalidade” (JUNG, OC 10/1, §490). Mãe de Jesus!

Não custa continuar fazendo umas contas dessa que estou aqui chamando de matemática do mal – e você, cara leitora e caro leitor, irá como eu ficar em dúvida se é mal com inicial minúscula ou maiúscula. Podemos ficar com os dois?

Imaginemos os efeitos – para o mundo, para a democracia, para o cidadão – do estrago causado pela possessão diabólica, ainda que, como aponta o próprio Jung no mesmo texto, não haja “nenhuma estatística médica a respeito da frequência das psicoses latentes”. Tá bom! Mas – veja só o que ele diz –, mesmo que fosse baixa essa proporção, inferior a um décimo, ainda assim, não se deve nem de longe menosprezar a “alta periculosidade” que essa parte da população representa. 

Ainda que estejamos nos movendo no labirinto da especulação, amparados no pessimismo junguiano do momento, podemos continuar imaginando – e a coisa só piora: se esses 40 por cento de indivíduos mais ou menos avessos ao cultivo da razão crítica são sérios candidatos à possessão coletiva, que pode virar epidemia… Se, quando isso acontece, “esse tipo de indivíduo” deixa de ser “simplesmente uma curiosidade apenas vista nas prisões e nos hospícios” para se mostrar pra lá e pra cá na rua, na igreja, no estádio de futebol, ainda que sob o manto da normalidade… Se, para cada caso manifesto de doença mental pode existir ao menos dez casos latentes…. 

Ai, ai, ai. Paremos por aqui! Também porque a vida do indivíduo e da sociedade está longe de poder se deixar explicar pelo recurso à matemática, muito menos ainda quando circulamos, como é o caso, no terreno movediço das especulações, da opinião e da imaginação.

Vamos, sim, parar. Mas a renúncia ao signo perigoso da explicação por parte de um ego muito provavelmente inflacionado não nos exime da tarefa de perguntar e tentar compreender. O perguntar nos eleva à condição de humano ser, concordaria Kant, ainda que respostas definitivas, exatas e arrogantemente esculpidas à imagem e semelhança de uma excrescência chamada racionalismo, possam nem existir. 

Faz sentido. Porque, se é verdade – como defende ardorosamente Jung – que “a consciência é uma condição do ser” (JUNG, OC 10/1, §528), é também verdade que essa mesma consciência – como lugar privilegiado do que estou chamando de signo da explicação, espaço do argumento e da lógica, do método, da balança, da régua e do esquadro – está longe, muito longe, não obstante todo o seu brilho e importância, de abarcar a totalidade psíquica. 

A consciência é ilha, o oceano é o inconsciente. É de novo Jung quem o diz, com redobrado ardor, muitas e muitas vezes em sua obra. Inflacionada a consciência, a saúde psíquica vai pro saco – e não só a saúde psíquica – o que, de novo, acontece mais do que a gente gosta, uma vez que, como aponta Jung (OC 10/1, §562), “parece muito perigoso para o eu duvidar de sua monarquia”. Pobre oceano, imenso e desprezado!

A explicação, a definição e o conceito, por sua unilateralidade, mais violentam a diversidade e a complexidade do real que auxiliam na busca de uma compreensão mais ampla e não dogmática das coisas. Fecham ao invés de abrir. Colocam pontos finais em estações da vida onde a complexidade dessa mesma vida e da realidade chama para muitas horas de conversa ao redor do símbolo mítico da fogueira.  

Autoconhecimento e compreensão

Muito mais complicada ainda se torna toda essa situação, portanto, pelo fato curto e rasteiro de que  os “ressentimentos fanáticos” que campeiam pelo mundo dessa “irracionalidade coletiva”, na visão de Jung, “exprimem certos motivos e ressentimentos também presentes nas pessoas normais (sic!), embora adormecidos sob o manto da razão e da compreensão” (JUNG, OC 10/1, §490). O perigo de toda essa coisa horrorosa vir à tona e infeccionar completamente o tecido social, sempre de acordo com Jung no mesmo parágrafo, se dá “sobretudo em razão do conhecimento muito limitado que as pessoas, ditas normais, possuem de si mesmas”.

E é aqui, me parece, que a condição sine qua non de todo caminho de individuação – o autoconhecimento – nos revela como esse passo inegociável no desenvolvimento da personalidade constitui a base mais profunda não apenas do encontro/confronto com o Si-mesmo, mas também de toda espécie de responsabilidade política e social, de toda luta por libertação, pelo fim da tirania, pelo empenho em favor da justiça social, da democracia e da paz. 

Mas eis que se apresenta de novo um problema de todo tamanho: “Normalmente, confundimos ‘autoconhecimento’ com o conhecimento da personalidade consciente do eu”, e isso não é correto: “O eu […] só conhece os seus próprios conteúdos, desconhecendo o inconsciente e seus respectivos conteúdos” (JUNG, OC 10/1, §491). É a ilha imaginando (poder) ser o mar, com toda a dose de ignorância e preconceito que Jung tanto odeia ver existir em relação ao “campo amplo e vasto do inconsciente, não alcançado pela crítica e pelo controle da consciência” (JUNG, OC 10/1, §493).

Em nossa cultura ocidental, de matriz marcadamente branca, cristã e patriarcal, Jung deixa com todas as letras claro que o ego arrogante e inflacionado – que pensa conhecer o indivíduo fazendo médias estatísticas, operando a partir do coletivo e da ideia do universal –, é filho dileto do cientificismo que a tudo julga poder conhecer e explicar. E é aí que o indivíduo, não “o universal e o regular”, mas o “singular e único”, como unidade “que, em última análise, não pode ser comparada nem mesmo conhecida”, sobra, é jogado para escanteio. O efeito manada dá as caras, convoca, seduz, prospera. Gado.Gado. Gado!

Jung, retoma nesse momento de sua conversa, embora sem mencionar explicitamente, uma antiga discussão no interior das chamadas Geisteswissenschaften (ciências do espírito) entre conhecimento e compreensão. Mais precisamente, a distinção que se fazia primeiramente na Alemanha desde o século XIX era entre “explicar” (Erklären), que constituiria uma tarefa primeira das ciências naturais, e “compreender” (Verstehen), mais condizente com os propósitos das ciências do espírito. 

Embora reconhecendo toda a graça e valor da empresa científica, Jung literalmente chuta o balde da epistemologia tradicional, fortemente positivista, egolátrica, monoteísta. O criador da psicologia analítica, como escrevi em “Jung e a heresia do método” (KÜNSCH, Online), reivindica “o direito a se opor à trama estreita, redutora e reducionista das explicações de tipo lógico-racional, para propor horizontes compreensivos de maior envergadura espiritual”.

Com esse propósito, Jung apela para o conhecimento do indivíduo em sua singularidade, o que implica “abdicar de todo conhecimento científico do homem médio e renunciar a toda teoria de modo a tornar possível um questionamento novo e livre de preconceitos”. Mais ainda: “Só posso empreender a tarefa da compreensão com a mente desembaraçada e livre (…), ao passo que o conhecimento do homem requer sempre todo o saber possível sobre o homem em geral” (JUNG, OC 10/1, §495). 

Opa! Conhecimento não é o mesmo que compreensão! Compreender é, pois, diferente de explicar. Ainda que se deva “fazer uma coisa sem perder a outra de vista” (JUNG, OC 10/1, §496), vale dizer que a contemplação do indivíduo em sua singularidade e, bem lá no fundo, em seu mistério, só pode mesmo se dar no registro da compreensão – e o termo compreender, do latim, comprehendere, significa juntar, integrar, incluir… abraçar. 

A compreensão não explica nem define: ela afaga, inclui, abraça. Ela se deixa mais seduzir e pautar pelo universo livre e encantado das metáforas, dos mitos, da arte, dos símbolos em geral, do que pela falsa onipotência de tudo poder explicar, dissecar, analisar, no sentido mais cartesiano do termo.

O conhecimento compreensivo – poderíamos dizer: de alma para alma, quando no setting terapêutico, ou também da pessoa consigo mesma, com a sua própria alma – é o único que possibilita um confronto humano, plural e fértil com o indivíduo em sua singularidade: a compreensão compreende também o conhecimento e a explicação.

“Para a compreensão, o homem em sua singularidade consiste no único e no mais nobre objeto de sua investigação, sendo necessário o abandono de todas as leis e regras que, antes de tudo, encontram-se no coração da ciência. O médico, principalmente, deve ter consciência dessa contradição” (JUNG, OC 10/1, §497).

É fácil reconhecer como ressoa, nesse e em outros pontos que lhe estão próximos no texto de Jung, o conteúdo de uma de suas frases mais citadas, que ele talvez nunca tenha pronunciado, assim, dessa forma: “Conheça todas as teorias, domine todas as técnicas, mas ao tocar uma alma humana, seja apenas outra alma humana”. Pode não ter dito, assim, dessa maneira. Mas que está ali, está.

A sombra e o Mal nosso de cada dia

É desse modo que a coisa se complica, ainda mais e enormemente. Porque, no andar dessa carroça chamada vida, como está se vendo, são de fato muitas as abóboras que é preciso acomodar. Abóboras e pedras. 

Nosso pessimismo e nossa brincadeira – aliás, muito séria – com a matemática do mal parecem adquirir com tudo isso, e a cada novo parágrafo deste ensaio, ingredientes mais desanimadores. Trata-se, nesse contexto, de coisas que nos ameaçam, atravessam e costumam cheirar mal, podendo por isso mesmo legitimar o pessimismo de Jung nessa fase de sua vida e em confronto com o Zeitgeist que se descortina diante de seus olhos, no final dos anos 1950. 

Primeiro, como eu dizia, fazendo as contas com Jung, temos aí esses quarenta por cento de eleitores mais ou menos – ou mais que menos, para dar crédito ao pessimismo – dissociados psíquica, cognitiva e socialmente. Esse número, lamenta Jung, como eu já disse, pode se agigantar em determinadas conjunturas ideológica e psiquicamente tomadas muitas vezes até a tampa pelo irracionalismo das ideias e práticas que por elas circulam.

Isso pode ter muito a ver com a pressão do coletivo sobre o indivíduo – pressão essa que vez ou outra se transforma em puro terror –, mas há também o fato, lembrado por Jung, do caráter instável e oscilante justamente daqueles que encontram em geral motivos para se distanciar do ser-gado. 

Ao imbróglio gerado por esse cenário estatístico, em nada muito promissor, agora se soma o dado de que a consciência – ai, meu Deus, a pequena razão, diria Nietzsche! – erra, e erra feio, ao nutrir muitas vezes o vício de fazer uma aposta demasiado elevada em seu potencial cognitivo: é, mais uma vez, a ilha julgando abarcar, conhecer, dominar o oceano inteiro, ou melhor, imaginando-se oceano. 

É, com outras palavras, a arrogância rondando o tempo todo essa casa de muitos quartos, portas e janelas onde “não somos os senhores”. É o medo e é a covardia de a gente não querer se aventurar no mundo incerto e perigoso do inconsciente – mundo encantado e assustador ao mesmo tempo, misterioso: tremendous et fascinans, numinoso, sagrado, no dizer de Rudolf Otto (2021), dual, ambivalente. 

Capaz apenas de falar de si mesma – e olhe lá! – com as ferramentas de que dispõe, quando deixa de se abrir ao imponderável, ao indizível, ao sagrado que como centelha divina em nós existe e que nos move, a consciência erra o objetivo, não se amplia, não progride, dá BO. Não consegue contemplar os vastos horizontes, porque acaba por circular o tempo todo ao redor do próprio umbigo. Inflada, agitada, nervosinha, explode e lança estilhaços de sua insignificância humana, social e política para tudo quanto é lado. Projeta, projeta, projeta. 

Mas isso está ainda bem longe de ser tudo o que se pode dizer sobre o terror e a bem-aventurança representados pela busca do Si-mesmo e a exorcização do espírito de gado. Falta ainda um elemento indispensável para fecharmos essa equação do autoconhecimento. Exige-se, para que o autoconhecimento se dê, uma verdadeira virada epistemológica – algo assim como uma revolução copernicana no universo do conhecimento, como propõe de fato Jung. 

Explicar menos e compreender mais! A epistemologia tradicional, ortodoxa, esculpida à imagem e semelhança do racionalismo e do positivismo, passa longe de poder dar conta desse diálogo com a alma humana. A compreensão vem primeiro na ordem das coisas do espírito, objetiva e concretamente falando. 

Eis aí um traço importante dessa revolução do pensamento: Jung atribui ao inconsciente coletivo o estatuto da objetividade! Vade retro!, berra o pensamento científico ortodoxo, assustadíssimo! Mas deixemos que berrem, que gritem, que esperneiem esses “adoradores da razão”, como os nomeia Jung! Que fiquem lá com sua racionalização infeliz, doentia: a doença da razão se chama racionalização, como entende Edgar Morin. Trata-se de espíritos frágeis e personas lastimáveis, que sofrem por incapacidade de dançar a dança da diversidade consciente-inconsciente, matéria-espírito, Ego e Si-mesmo, uma dança que traz em si promessas e riscos, tem seus cálculos e os seus delírios… “Traduzir uma parte na outra parte / Que é uma questão de vida e morte / Será arte?” (Ferreira Gullar).  

Aliás, e de novo: a alma humana não se deixa explicar, como na realidade não se deixa explicar nada que diga respeito àquelas perguntas primeiras e mais profundas do existir. O numinoso representado pelo campo enorme do inconsciente coletivo, com seus instintos e os seus arquétipos todos, é objeto de experiência, em primeiro lugar. Experiência! Experiência de vida, e não a experiência científica no sentido do mais puro e tantas vezes tacanho método científico. Primum vivere, deinde philosophare

Assim, o apelo junguiano à metanoia – essa reviração do espírito, esse renascimento espiritual na direção do Si-mesmo e da totalidade psíquica – abrange também, como nem poderia deixar de ser, o mundo do conhecimento, ou daquilo que Aristóteles classificava como o desejo natural de saber. A dissociação psíquica, no campo vasto da política como em outros campos, arrasta o sujeito para a doidice da dissociação cognitiva. Melhor, muito melhor é ouvir o Idiota, o maluco das colheres de pau, personagem do autor do livro Da douta ignorantia, Nicolau de Cusa, em pleno século XV (KÜNSCH, Online). 

Esse apelo à metanoia por parte de Jung e o acento que ele coloca a toda hora e em todo o canto no indivíduo como grau zero do movimento de mudança do mundo não devem obscurecer o gigantismo do desafio social, democrático, cidadão que nos acossa o tempo todo, em países como o Brasil. Compreender é preciso, diria Hannah Arendt. Mas o mal, em toda a sua banalidade, está aí, na forma por exemplo do mais vil totalitarismo (ARENDT, 1999). Lá, onde “o mito vira dogma” (Martín Sagrera), perdendo seu conteúdo simbólico e cognitivo, e onde a consciência se compraz em se entregar ao ímpeto violento do gado e da manada, a convocação para a luta se faz presente, a partir do mais íntimo da alma humana. Indignação ética, vamos dizer assim. Não necessariamente, é claro – e essa é uma das principais razões do pessimismo que insiste em atravessar estas páginas. 

“A partir de dentro”, sussurra Jung. Aliás, quase grita, quando ele afirma com todas as letras que “o que, em última instância não caminha bem é o homem” (JUNG, OC 10/2, §441). E o faz quase que no calor infernal provocado pelos bombardeios na Segunda Guerra, a matança, a doideira, a possessão diabólica por aquilo que, gado ou não gado, está também em nós, nos provoca, evoca, convoca… para a frente, não para trás, preferencialmente! Progressão, não regressão! 

Jung faz de novo essa afirmação sobre a centralidade do indivíduo, incluindo o universo do coletivo, no muito sofrido e dramático ensaio “Depois da catástrofe”, sobre o nazismo e a Segunda Guerra Mundial, escrito em 1946. O ensaio encontra-se no segundo livro (Aspectos do drama contemporâneo) do volume 10 (Civilização em mudança). Vem depois de “Wotan”, sobre o mesmo tema, escrito em 1936, e antes de “A luta com as sombras”, de 1946.

As sombras, esse nosso lado B, o outro lado de nós mesmos. Esse “outro homem existente em nós” (JUNG, OC 10/1, §560). Essa “força extremamente poderosa” (JUNG, OC 10/2, §455). “Ninguém está fora da negra sombra coletiva da humanidade” (JUNG, OC 10/1, §572).

“O mal, a culpa, o medo profundo, a consciência moral e as instituições sinistras estão aí para quem quiser ver”, expressa Jung, em sua atenta e eterna luta para não deixar que se faça  do mal uma abstração, privatio bonum ou algo do gênero. “Foram homens que cometeram esses atos”, ele reforça. E conclui: “Eu sou um homem e, enquanto natureza humana, compartilho dessa culpa como também trago em minha própria essência a capacidade e a tendência a fazer algo semelhante”. Fazer algo semelhante a quê? Às “coisas terríveis que aconteceram e ainda acontecem”, como os crimes cometidos pelos europeus durante o período colonial. Ou como os crimes do nazismo. “Nós somos, enquanto seres humanos, criminosos em potencial”, arremata Jung, sempre no mesmo parágrafo (JUNG, OC 10/1, §572).

Pronto! A Sombra e o Mal. A sombra e o mal nosso de cada dia e de cada um.  Ferrou! É aqui, como deixa claro Jung, que um lado e outro da Cortina de Ferro conversam sem querer um com o outro. “Deus e o Diabo na Terra do Sol” (Glauber Rocha). É aqui, podemos dizer nós, hic et nunc, que aspectos importantíssimos do efeito-gado e manada habitam o nosso interior, nos atravessam e ameaçam. Assustam-nos. “Mefistófeles é o outro lado de Fausto e não pode mais dizer: ‘Isso era, pois, a essência de um cão’, mas teve que confessar: ‘Isso é o outro lado, meu alter ego, minha sombra infelizmente demasiado real e inegável” (JUNG, OC 10/2, §440).

Uma “Declaração da Dignidade do Homem”

Nesta altura, o termômetro do pessimismo pode ganhar alguns graus a mais de temperatura, beirando o desespero do paciente. Ou também não. Pertencendo de modo irrenunciável à vida psíquica do indivíduo, como parte de sua natureza humana, e não sendo por isso mesmo coisa do Demo, a sombra promete. Assusta e promete. Sombra e luz podem conversar uma com a outra mais do que supõe às vezes a nossa vã filosofia. “O mal habita a natureza humana independentemente da nossa vontade e (…) não pode ser evitado”, entrando “na cena psicológica como o lado oposto e inevitável do bem” (JUNG, OC 10/1, §573).

“De que maneira eu convivo com essas sombras? Que atitude é necessária para se viver, apesar do mal?”, pergunta Jung. “Faz-se necessária uma renovação mental abrangente”, ele responde, “que não pode provir de alguém especial, devendo ser conquistada por cada um” (JUNG, OC 10/2, §443).

Eis a chave: “Sem culpa não pode haver maturação psíquica nem tampouco ampliação do horizonte espiritual” (JUNG, OC 10/2, §440). Jung busca inspiração na Carta de São Paulo aos Romanos, capítulo 5, versículo 20 (“Onde abundou o pecado superabundou a graça”), quando propõe que “onde a culpa é grande, a graça pode também ser imensa” (JUNG, OC 10/2, §441). Pode, se você e eu nos mostrarmos dispostos a “examinar nosso coração e nossa consciência”, como sugere Jung – e essas duas coisas (coração e consciência), como já sabemos de outro trecho, não costumam muito viver um grande amor uma pela outra, o tempo todo, apaixonadas. 

No entanto, a abundância da graça onde a culpa é grande, em acontecendo – se eu tomo consciência disso, ativamente –, “produz uma transformação interior infinitamente mais importante do que as reformas políticas e sociais que, na verdade, de nada valem nas mãos de homens injustos” (JUNG, OC 10/2, §441). Essa “renovação mental abrangente” que deve “ser conquistada por cada um”, como trouxemos linhas antes, pode ser entendida como a condição elementar para que as “verdades eternas” sejam “geradas novamente em cada época pela alma humana” (JUNG, OC 10/2, §443). Em cada época!

Como não perceber a importância de tudo quando neste ensaio está sendo dito, a partir de Jung, para o Brasil deste final de ano de 2022 e início de 2023? Como poderíamos querer tapar o sol com a peneira de nossa arrogância, insensatez e alienação, e querer negar que é difícil, muito difícil, tomar consciência de nossas sombras e reconhecer que somos parte – e não apenas vítimas – dessa doidice gerada pelo efeito gado? Que chance têm a democracia e os nossos esforços por mudança social, se não reconhecemos o grito lancinante de nossa natureza mais profunda por um movimento sério de autoconhecimento, de mudança de nossas mentes e de nossos corações, de metanoia? 

Fugir às dinâmicas de negação da própria sombra e de sua projeção sobre os outros é preciso – assinala Jung. “A verdade é preferível a um silêncio injurioso”, ele diz (JUNG, OC 10/2, §427), referindo-se aos alemães e ao nazismo. Dói, mas tem o poder de curar. “Se os homens soubessem a vantagem que representa encontrar a própria culpa, que dignidade e elevação da alma isso significa!” (JUNG, OC 10/2, §415). 

“Na verdade, pouco se ganha em perder de vista a própria sombra, ao passo que o conhecimento da culpa e do mal que habitam em cada um traz muitas vantagens. A consciência da culpa oferece condições para a transformação e melhoria das coisas”, ensina Jung. E diz por quê: “Como se sabe, aquilo que permanece no inconsciente jamais se modifica e as correções psicológicas são apenas possíveis no nível da consciência. A consciência de culpa pode, portanto, converter-se no mais poderoso movente moral” (JUNG, OC 10/2, §440).

De vantagens desse tipo, que ofereçam a nós e ao nosso País “condições para a transformação e melhoria das coisas”, parece que estamos precisando demais da conta. Essa metanoia radical, por via da consciência da própria culpa, capaz de “converter-se no mais poderoso movente moral”: que aconteça logo, em abundância! 

Não se deve em momento algum estranhar que Jung leve a discussão sobre como fugir do efeito gado, na sociedade e na política, para o território da religião – ou, mais precisamente, para a função religiosa da alma humana. É da experiência religiosa que Jung fala, dessa mesma experiência que, em outro contexto, ele distingue da própria fé, vista como ato segundo em relação à experiência do divino. “Uma resposta positiva ao problema da experiência religiosa apenas pode-se oferecer se o homem estiver disposto a satisfazer as exigências de um exame e conhecimento rigoroso de si mesmo”: autoconhecimento! 

Crítica e autocrítica! Consciência do mal e da sombra em nós! Alienação mental, vida de gado, manada, jamais! Credo em cruz!

Jung prossegue, dizendo que, “se (o homem) assim fizer, não só descobrirá algumas verdades importantes sobre si mesmo, mas também obterá uma vantagem psicológica: terá conseguido julgar a si mesmo como pessoa digna de toda consideração e simpatia”. Bonito isso! Autoconhecimento! Autoestima! Autonomia de ação!

Sempre no mesmo trecho de sua obra, Jung conclui, poética e divinamente: “Assim, ele (o homem), de certo modo, subscreverá uma declaração da dignidade do homem e dará, ao mesmo, um primeiro passo para a fundamentação de sua consciência, ou seja, para o inconsciente a única fonte existente da experiência religiosa” (JUNG, OC 10/1, §565).

Uma declaração da dignidade do humano ser, subscrita pelo indivíduo… para o mundo! Gado, não! Gente!

PS.: Coincide com o exato momento da redação final deste ensaio a escolha, pelo IJEP, do tema de seu VIII Congresso, marcado para junho de 2022: “Ética, espiritualidade e política no campo junguiano”. Acho que, também no mundo da vida psíquica, como diz o ditado, a língua toca onde o dente dói. Julgo que o Instituto Junguiano de Ensino e Pesquisa responde, por meio dessa sua escolha, a um sinal dos tempos, que aponta para a urgência de um “movente moral” indispensável para a reconstrução e ampliação do terreno violentamente pisoteado pelo gado, em tempos recentes da História do Brasil. Entendo que este ensaio possa ser visto como uma tentativa de circular com alguma dose mais elevada de esperança pelas complexas, múltiplas e promissoras vias que o tema do próximo Congresso irá sugerir. 

Dimas A. Künsch – Analista em Formação pelo IJEP

Waldemar Magaldi – Analista Didata

FOTO: THALES CARRARO

Referências

ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

ARENDT, Hannah. O que resta? Resta a língua. In: Compreender: formação, exílio e totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras; Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008, p. 31-53.

JUNG, Carl Gustav. Presente e futuro. 7. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012. [OC 10/1].

JUNG, Carl Gustav. Aspectos do drama contemporâneo. 5. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012. [OC 10/2].

KÜNSCH, Dimas A. Jung e a heresia do método. Portal do IJEP. Disponível em: https://blog.ijep.com.br/jung-e-a-heresia-do-metodo/. Acesso em: 2 dez. 2022.

KÜNSCH, Dimas A. Livrai-nos do Mal. Amém! Portal do Ijep. Disponível em: https://blog.ijep.com.br/livrai-nos-do-mal-amem/. Acesso em: 2 dez. 2022.

KÜNSCH, Dimas A. Deus e o idiota das colheres de pau: um ensaio sobre o inefável. Portal do Ijep. Disponível em: https://blog.ijep.com.br/deus-e-o-idiota-das-colheres-de-pau-um-ensaio-sobre-o-inefavel/. Acesso em: 2 dez. 2022.

OTTO, Rudolf. O sagrado. 5.ed. São Leopoldo: Sinodal, 2021.

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