Resumo: Com essa narrativa, podemos ver o espanto e o reconhecimento ocasionado pela Coré. Uma menina doce, infantilizada, que colhia flores de forma ingênua. No mito, Coré aparece como uma nítida: “filha da mãe”. Ou seja, uma donzela, cuidada e nutrida somente pela mãe, alheia aos desafios da vida e do precipício do inconsciente. Contudo, no momento do rapto, ao abandonar a antiga vida, vai ao encontro do profundo, das trevas, do invisível. Uma possível leitura dessa profundidade é dizer que ela vai ao encontro da alma. E essa foi a função decisiva do mito. Hades raptou Coré. E, com isso, ela passou de donzela à rainha das trevas. De menina à mulher. De criança à senhora.
A proposta do presente ensaio não é compreender ou absorver a totalidade do mito, conquanto tal missão seria impossível e infrutífera. Berry ensina: “Não há caminho para fora de um mito – apenas um caminho mais profundamente dentro dele” (2014, p. 37).
A proposta aqui é convidá-los a uma possível compreensão do mito de Perséfone a partir de uma perspectiva pouco estudada: a dela própria.
Quando refletimos sobre e ampliamos um mito, inevitavelmente esbarramos em outros mitos, outros personagens importantes, e em um aspecto relacional. O herói ou heroína normalmente se relacionam com outros personagens, sem os quais o mito não teria qualquer relevância. Nesse ensaio, não pretendo ressaltar os sentimentos de Deméter sobre o rapto da filha, mas sim, a perspectiva da raptada diante do arrebatamento do casamento. Ressalva-se, contudo, que a perspectiva apresentada aqui não é a única possível, e muito menos visa limitar a compreensão do mito, dado seu caráter arquetípico.
O conceito de arquétipo é fundamental para a compreensão da Psicologia Analítica. O termo não foi cunhado por Carl Gustav Jung, mas foi utilizado por este para definir os moldes psíquicos.
Para Jung (2014, p. 81), em OC 8/2, § 280:
“Os arquétipos são formas de apreensão, e todas as vezes que nos deparamos com formas de apreensão que se repetem de maneira uniforme e regular, temos diante de nós um arquétipo, quer reconheçamos ou não seu caráter mitológico. ”
Dito isto, o objetivo é trabalhar esse convite ao inconsciente que se apresenta com a coniunctio desse casamento divino. Há muitas narrativas acerca do mito de Perséfone.
Para dar contornos à narrativa, vamos observar os pontos cruciais do mito, a partir da compreensão de Brandão. Ensina Brandão (2014, p. 504)
“Filha de Zeus e Deméter, […] Coré (v.) ou Perséfone crescia feliz entre as ninfas em companhia de Ártemis e de Atená, quando um dia seu tio Hades, que a desejava, a raptou com o beneplácito e auxílio de Zeus. O local varia muito de acordo com as tradições: o mais “acertado” seria dizer que foi na pradaria de Ena, na Sicília […]. ”
Cabe fazer uma consideração acerca das relações familiares nas divindades gregas e romanas. O grau de parentesco entre eles não impacta as relações de casamento, afetivas ou sexuais. Muitos mitos foram passados de forma oral de pais para filhos, então os registros com relação aos familiares diretos não são bem traçados. O fato de Hades ser tio de Perséfone nada impede o casamento, do ponto de vista grego.
Para incrementar a narrativa, leremos a cena a partir dos olhos de Calasso:
“No lugar em que os cães não conseguem seguir a pestilência por causa do violento perfume das flores, num prado sulcado pela água, que se eleva nas margens para depois se precipitar entre rochas íngremes, no umbigo da Sicília, perto de Enna, ocorreu o rapto de Coré. No momento em que a terra se abriu e apareceu a quadriga de Hades, Coré estava observando o narciso. Observava o olhar. Estava a ponto de colhê-lo. Coré foi então raptada pelo invisível rumo ao invisível. Coré não significa apenas “donzela”, mas também “pupila”. E a pupila, como disse Sócrates a Alcibíades, é “a parte mais excelente do olho”, não apenas porque é “aquela que vê”, mas porque é aquela onde quem olha encontra, no olho do outro, “o simulacro de quem olha”. E se, como queria Sócrates, a máxima délfica do “conhece-te a ti mesmo” só pode ser entendida se for traduzida por “olha para ti mesmo”, a pupila se torna o único meio para a consciência de si. Coré observa o amarelo “prodígio” do narciso. Mas por que esta flor amarela, que adorna ao mesmo tempo as guirlandas de Eros e dos mortos, é tão prodigiosa? O que as diferencia das violetas, dos açafrões, dos jacintos que enchiam o prado vizinho da região de Enna? Narciso é também o nome de um jovem que se perdeu ao olhar-se a si mesmo.
(1990, p. 145-146)
Coré, a pupila, estava, portanto no umbral de um olhar em que teria visto a si própria. Estava estendendo a mão para colher aquele olhar. Mas irrompeu Hades. E Coré foi colhida por Hades. Por um instante, o olhar de Coré teve de desviar-se do narciso e encontrar-se com o olho de Hades. A pupila da Pupila foi acolhida por uma semelhante, na qual viu a si própria. E aquela pupila pertencia ao invisível.
Houve quem escutasse um grito naquele momento. Mas o que significava aquele grito? Era apenas o terror de uma donzela raptada por um desconhecido? Ou foi o grito de um reconhecimento irreversível?
Alguns poetas antigos insinuaram que Perséfone experimentou um “funesto desejo” de ser raptada, que se uniu com um “pacto de amor” ao rei das trevas, que expôs sem peias ao contágio de Hades. Coré viu a si mesma na pupila de Hades. Reconheceu no olho que observa a si mesmo o olho de um invisível outro. Reconheceu pertencer àquele outro. Superou naquele momento a fronteira que estava prestes a superar enquanto observava aquele narciso. Era o umbral do Elêusis.”
Com essa narrativa, podemos ver o espanto e o reconhecimento ocasionado pela Coré. Uma menina doce, infantilizada, que colhia flores de forma ingênua. No mito, Coré aparece como uma nítida: “filha da mãe”. Ou seja, uma donzela, cuidada e nutrida somente pela mãe, alheia aos desafios da vida e do precipício do inconsciente. Contudo, no momento do rapto, ao abandonar a antiga vida, vai de encontro ao profundo, às trevas, ao invisível. Uma possível leitura dessa profundidade é dizer que ela vai de encontro com a alma. E essa foi a função decisiva do mito. Hades raptou Coré. E com isso, ela passou de donzela, a rainha das trevas. De menina a mulher. De criança, à senhora.
Para Barcellos, esse momento representa:
“O abandono da mãe pode marcar o encontro com a alma. Se lembrarmos do mito de Eros e Psiquê, há também um afastamento com relação à Afrodite, que ali se apresenta como uma figura materna – pois Afrodite, no conto Eros e Psiquê, está no seu papel de mãe (mãe de Eros), e apresenta um enlace terrível com a Mãe, tanto para Eros quanto para Psiquê. Os dois precisam se afastar dela, para alcançarem a alma como base, essa outra terra, uma terra psíquica.” (BARCELLOS, 2019, p. 277)
O mito de Perséfone continua, relata-se que após seu rapto, sua mãe Deméter secou os campos de cereais, fazendo com que os humanos morressem de fome e se recusou a voltar ao Olimpo até o resgate de sua filha. Zeus, então, intermediou o retorno de Perséfone, agora Rainha das Trevas, para sua mãe. Contudo, restou acordado que ela não poderia comer nada no mundo inferior, pois aqueles que consomem do mundo inferior devem permanecer nele. Sobre isso, Chevalier e Gheerbrant (2024, p. 866):
“No contexto do mito, a semente de romã poderia significar que Perséfone sucumbiu à sedução e merece, portanto, o castigo de passar um terço da vida nos Infernos. Por outro lado, provando uma semente de romã, ela quebrou o jejum, que era a lei dos Infernos. Ali, quem comesse qualquer coisa, ficava impedido de voltar à terra dos vivos. Foi por um favor especial de Zeus, que ela pôde dividir sua existência entre os dois lugares.”
A partir daí os relatos sobre a alimentação de Perséfone no mundo dos mortos diverge.
Alguns autores dizem que Hades a obrigou a comer as romãs, outros dizem que ela comeu para não morrer de fome. Para fins desse ensaio, escolhi os relatos de Chantal:
“Chega o momento da partida. Prudente, antes que sua esposa tome o caminho da claridade, Hades lhe oferece uma romã bem madura, a mais bela, avermelhada, para refrescá-la durante a viagem. Também ele está cuidando de sua seara, pois com isso deseja garantir o retorno da esposa, a menos que Perséfone já esteja convencida de que doravante sua vida é com ele – disso a mãe não precisa saber, mas seguramente já suspeita. Durante a viagem para a luz do dia, Proserpina[1] chupa seis dos grãos suaves oferecidos pelo marido: a polpa tenra e suculenta, o sabor acidulado e leve quase a fariam sentir saudades dos beijos do esposo; mas a saudade logo é afugentada pelo reencontro, pelos abraços, beijos e afagos de sua mãe. A alegria, a vida, as estações retornam à Terra e durante seis meses a recobrem de um tapete verdejante e fértil. Ao cabo desse lapso de tempo – um mês por grão de romã -, Perséfone volta a pensar com ternura no esposo. As brigas e os amuos entre a mãe e a filha se multiplicam, de modo que, de comum acordo, elas decidem que a jovem está sofrendo de saudades do país dos mortos, do qual ambas falam muito mal, mas esperando que Perséfone retorne logo para lá. Numa noite, quando sua mãe está dormindo e a terra e os vinhedos estão em plena colheita, a jovem rainha deixa o colo materno e retorna, por vontade própria, para os braços imortais do senhor dos mortos, abraçando durante seis meses o descanso do Hades; enquanto isso, sua mãe se cobre novamente com o véu infértil do luto, assim como o solo se cobre de folhas mortas e, depois, de um tapete de neve, esperando a vinda de Proserpina para renascer de novo na primavera.” (CHANTAL, 2024, p. 182-183)
Com esse relato, percebe-se que talvez Perséfone tenha descoberto uma nova identidade de seu ser no Hades, e que talvez – pasmem – tenha gostado da sua nova identidade.
É evidente que, com isso, não estamos aqui defendendo o rapto de mulheres, mas se lermos de forma simbólica, esse rapto pode ser interpretado como um chamado da alma, pelo sombrio, pelo profundo, pelo inconsciente. Nessa situação, representada pelos Infernos, ela foi atraída para a borda do precipício, e de dentro dele foi arrancada da estabilidade das terras maternas e protetoras.
O casamento pode ser um dos responsáveis por esse chamado da alma, mas é claro que não é o único. Contudo, nesse ensaio a proposta é falar somente sobre o casamento. O afastamento tanto físico, quanto emocional da família originária, e claro, a dedicação de Perséfone ao novo lar, simboliza a realidade de muitas mulheres ocidentais até hoje (e de alguns homens também). Uma possibilidade é interpretarmos a chegada de Hades como a força avassaladora de um Animus brutal. Jung define o Animus como: “A mulher não tem anima, mas animus. A anima é de índole erótica e emocional, enquanto que o animus é de caráter raciocinador”. (JUNG, 2019, p. 83).
Segundo essa definição de Jung, podemos concluir que, no caso de Perséfone, uma menina doce, gentil, infantilizada, uma verdadeira donzela, o casamento despertou um aspecto forte, dominador, de poderio nela. Ela se tornou rainha dos mortos. Por lá passou a dominar tudo e todos. Se tornou senhora daquele reino. Passou de uma deusa primaveril, à deusa da morte. Aquela que governa o mundo da esterilidade. Aquela a quem vários heróis buscaram pra pedirem passagem segura pelos reinos do Inferno.
Ainda sobre o caráter arrebatador do animus, Jung ensina:
“Essas duas figuras crepusculares, do fundo escuro da psique, a anima e o animus (verdadeiros e semigrotescos “guardiões do umbral”, para usar o pomposo vocabulário teosófico), podem assumir numerosos aspectos, que encheriam volumes inteiros. Suas complicações e transformações são ricas como o próprio mundo, e tão extensas como a variedade incalculável do seu correlato consciente, a persona. Habitam uma esfera de penumbra, e dificilmente percebemos que ambos, anima e animus, são complexos autônomos que constituem uma função psicológica do homem e da mulher. Sua autonomia e falta de desenvolvimento usurpa, ou melhor, retém o pleno desabrochar de uma personalidade. ” (JUNG, 2015, p. 101)
O Hades, representante nesse mito da figura do marido, personifica o mundo das possibilidades. Muito embora os Infernos sejam estéreis, e aparentemente sem mudanças, a morte é uma oportunidade. Sem a morte, o trabalho da mãe de Perséfone seria inútil. É necessária a morte para que a vida possa existir. Essa constante renovação é um movimento que observamos na psique. O amor deslumbrado de Hades por Perséfone prova que nem a morte está imune ao poder do amor. E o movimento de Perséfone de poder circular entre o mundo dos vivos e dos mortos mostra o caráter transicional da nossa alma. Nos comunicamos com o mundo exterior, e com o mundo interior.
Quando ignoramos o mundo interior, “somos raptados” para dentro.
Assim é o casamento, um convite a lidar com as nossas projeções. A relação com o outro se estabelece a partir das minhas expectativas, projeções e nos apaixonamos pelos nossos próprios conteúdos apresentados num outro. A segurança que esse outro nos oferece é a companhia no caminho para dentro.
Podemos olhar esse mito de múltiplas formas, uma delas é a partir do simbolismo da romã, que pode significar a perda da inocência, da virgindade, e o aparecimento do desejo. Somos magicamente atraídos, como Perséfone pelo narciso, por tudo aquilo que esperamos que nos complete. Se por um lado, a representação dos Infernos é um lugar estéril em que nada acontece, por outro, Perséfone encontrou um lugar de possibilidades onde construir sua vida. O marido a convida a reinar e criar um mundo de possibilidades.
Num mundo árido, em que nada cresce, a romã encontrou seu caminho, provando que todas as plantas têm raízes no subsolo. Nós, da mesma forma, florescemos no consciente, mas nossas raízes crescem nos espaços sombrios do umbral.
Paula de A. Bernardi Peñas – Membro Analista em formação pelo IJEP
Dra E. Simone Magaldi – Membro Analista Didata do IJEP
Referências:
BARCELLOS, Gustavo. Mitologias arquetípicas: figurações divinas e configurações humanas. Petrópolis: Vozes, 2019.
BERRY, Patricia. O corpo sutil de eco: Contribuições para uma psicologia arquetípica. Petrópolis: Vozes, 2014.
BRANDÃO, Junito de Souza. Dicionário Mítico-Etimológico. Petrópolis: Vozes, 2014.
CALASSO, Roberto. As núpcias de Cadmo e Harmonia. Tradução de Nilson Moulin Louzada. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
CHANTAL, Laure de. Livre como uma deusa grega: Na mitologia o melhor da humanidade é a mulher. Petrópolis: Vozes, 2024.
CHEVALIER, Jean; Gheerbrant, Alain. Dicionário de símbolos: mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. 40. Ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2024.
JUNG, Carl Gustav. A natureza da psique. 7. Ed. Petrópolis: Vozes, 2013.
______ Os arquétipos e o inconsciente coletivo. 11.ed. Petrópolis: Vozes, 2014.
______ O eu e o inconsciente. 27.ed. Petrópolis: Vozes, 2015.
______ Aspectos do feminino. Petrópolis: Vozes, 2019.
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[1] Proserpina é o nome de Perséfone nos mitos romanos.