Site icon Blog IJEP

O Mito de Tântalo: Mitologizando o diabetes mellitus

diabetes e psicologia

De acordo com a psicologia analítica, mente e corpo são uma única e mesma coisa, inseparáveis em si, atuando de forma unitária em todas as instâncias da existência humana, “animados por uma e mesma vida” (JUNG, 2011, p.127). E a doença pode ser compreendida como um símbolo, a única forma encontrada pela psique de se manifestar num indivíduo que não encontrou outra forma de simbolizar o seu sofrimento.

Decodificar esse símbolo significa trazer à consciência a mensagem que vem diretamente do inconsciente, e com isso dar um sentido e um significado às doenças.

O objetivo deste artigo é estudar o diabetes mellitus à luz do mito grego de Tântalo, de sua trajetória e de seu destino porque toda doença traz em si motivos mitológicos.

Tântalo era o rei da Lídia, país da Asia Menor. Estima-se que seja filho de Zeus e Pluto, “a Rica”. Seu reino incluía também a Frígia, a cordilheira do Ida e a planície de Tróia. Embora fosse considerado um homem, não era mortal.

Um dos pecados atribuído a Tântalo foi o de que, como hóspede dos deuses, não foi capaz de manter a boca fechada e revelava os segredos dos imortais aos homens. Em outra versão, Tântalo deixava que os amigos comessem da comida e da bebida dos deuses, o seu néctar e sua ambrosia. (KERÉNYI, 2015)

Sobre Tântalo ainda se conta que Zeus estava pronto para realizar um desejo seu, pois era um hóspede muito amado. Este pediu-lhe a vida que os deuses viviam. Isto lhe foi concedido, porém uma pedra foi deixada pendendo sobre sua cabeça, de modo que não pudesse aproveitar dos prazeres que estavam ao seu alcance. (KERÉNYI, 2015)

Tântalo também escalou o céu para chegar ao banquete dos deuses e os convidou para irem à sua casa para uma tarefa sacrificial. Porém, Tântalo atreveu-se a não preparar para a refeição nenhum animal vicário, mas sim o seu próprio filho como refeição sacrificial. O pequeno Pélope foi retalhado pelo próprio pai e cozido num caldeirão, para pôr à prova a onisciência dos convidados. Os deuses perceberam, exceto Deméter que estava desatenta pela morte da filha, que acabou comendo-lhe a espalda. Réia reuniu os pedaços e reconstituiu o menino, e os deuses lhe deram um ombro de marfim para substituir o que havia sido devorado. (KERÉNYI, 2015)

Por seus pecados Tântalo foi lançado no Tártaro, e condenado a sentir fome e sede por toda a eternidade. Seu castigo era permanecer mergulhado até o pescoço em água fresca e límpida, que quando ele se abaixasse para beber, o líquido lhe escorreria por entre os dedos. Foi também condenado a viver cercado de árvores repletas de frutos, porém quando ele ia apanhá-los, os ramos se erguiam. (BRANDÃO, 2018)

diabetes é uma doença descrita há mais de três milênios. O papiro de Ebers, datado de aproximadamente 1500 a.C. no Egito Antigo, já traz a descrição de uma doença em que existia emissão intensa e frequente de urina, sede extrema e que levava à morte.  O nome diabetes só surgiu no século II na Grécia Antiga, onde este termo significava “passar pelo sifão”, numa comparação da poliúria com a drenagem das águas através de um sifão. Araeteus, discípulo de Hipócrates propôs este nome e descreveu o quadro clínico como sendo de poliúria, polidipsia, polifagia e astenia. Mais adiante, indianos observaram que formigas se acumulavam ao redor da urina destes pacientes, levando a pensar que pudesse haver nessa urina uma maior quantidade de açúcar. Cullen, no séc. XVIII introduz o termo mellitus (do latim: mel) (TSCHIEDEL, 2014)

Hoje sabemos que o diabetes mellitus é a síndrome causada pelo metabolismo defeituoso dos carboidratos, lipídios e proteínas, determinada pela ausência de secreção de insulina ou pela diminuição da sensibilidade dos tecidos à insulina. É chamado diabetes mellitus tipo I quando causado pela ausência de insulina, e diabetes mellitus tipo II quando causado pela diminuição da sensibilidade dos tecidos à ação da insulina. 

Seguindo a intuição de ampliar a compreensão da doença a partir do motivo mitológico, nosso foco aqui será o Diabetes mellitus tipo II, devido à sua característica de ser uma patologia adquirida dependente do histórico e hábitos de vida do paciente.

Segundo Hall (2011) a secreção de insulina está associada à abundância de energia, ou seja, quando existe uma grande abundância de alimentos muito energéticos na dieta, em especial carbohidratos, a secreção aumenta.  Para além do uso imediato dessa energia, a insulina desempenha papel importante no seu armazenamento na forma de glicogênio no fígado e no músculo, ou na forma de gordura no tecido adiposo. Com relação às proteínas, a ação da insulina é a de promover a captação de aminoácidos pelas células para sua conversão em proteínas.

O efeito da alteração na síntese ou na ação da insulina é impedir a captação e utilização da glicose pelas células. Isso faz com que a concentração da glicose sanguínea aumente e a utilização celular da glicose caia. Como consequência dessa impossibilidade do uso da glicose pela célula o metabolismo é desviado para um aumento da utilização de lipídeos e proteínas como fonte de energia.

O aumento da glicose plasmática apresenta múltiplos efeitos por todo o organismo:1) provoca perda de glicose pela urina e com isso a diurese osmótica, com emissão excessiva de urina e consequente desidratação e aumento da sede. 2) causa desidratação intracelular por mecanismo osmótico 3) causa lesões teciduais por alteração nos vasos sanguíneos, aumentando o risco de ataques cardíacos, derrame, doença renal, retinopatia, cegueira, isquemia e gangrena dos membros. 4) lesões dos nervos periféricos e disfunção do sistema nervoso autônomo levam a alteração dos reflexos cardiovasculares, deterioração do controle da bexiga, diminuição da sensibilidade nas extremidades. 5) hipertensão secundária à lesão renal (HALL, 2011)

O aumento na utilização de lipídeos aumenta a liberação de cetoácidos podendo desenvolver acidose metabólica e nos casos mais graves e descompensados o coma acidótico. Também leva à hipercolesterolemia com consequente arteriosclerose e outras lesões vasculares (HALL, 2011)

O aumento da utilização das proteínas causa sua depleção no organismo, levando à perda de peso e astenia, apesar da grande necessidade de ingerir alimentos (polifagia). (HALL, 2011)

No diabetes tipo II existe um aumento também da insulina no plasma, pois como existe uma diminuição da sensibilidade dos tecidos à insulina, o pâncreas aumenta sua produção. O desenvolvimento da resistência à insulina e do metabolismo alterado da glicose é gradual e começa com ganho de peso e obesidade. A resistência à insulina faz parte de uma cascata de distúrbios denominada “síndrome metabólica”, que se caracteriza principalmente por: obesidade com acúmulo de gordura abdominal, resistência à insulina, hiperglicemia de jejum, aumento dos triglicerídeos e redução do colesterol HDL, e hipertensão. (HALL, 2011)

O diabetes mellitus é, portanto, uma doença crônica que compromete toda a economia do indivíduo, com potencial gravidade e que pode comprometer-lhe a vida. 

Segundo a visão da psicologia analítica, toda e qualquer doença se trata da ativação de um complexo, e porque este tem uma base arquetípica, podemos dizer que toda doença traz em si motivos mitológicos.

Em sua conceituação de inconsciente, Jung o divide em inconsciente pessoal e inconsciente coletivo. O primeiro se refere a uma camada mais superficial e de conteúdo pessoal que repousa sobre uma camada mais profunda, o inconsciente coletivo, inato, com conteúdos idênticos em todos os seres humanos, “constituindo um substrato comum de natureza psíquica suprapessoal que existe em cada indivíduo” (JUNG, 2014, p. 12). Arquétipos são elementos estruturais e primordiais da psique humana.

No inconsciente pessoal encontramos os complexos de tonalidade emocional, e no inconsciente coletivo, os arquétipos. Os arquétipos não podem ser representados em si, e sua imagem aparece expressa nos mitos, nos contos de fada, nos ensinamentos tribais coletivos, nos sonhos, nas visões.

Mitos são, portanto, uma expressão dos arquétipos. Falam de vivências e valores de tempos imemoriais que pertencem a toda a humanidade. Enquanto os arquétipos designam os conteúdos psíquicos que ainda não foram submetidos à uma elaboração consciente, os mitos são formas já trabalhadas de um modo específico e transmitidas através dos séculos. (JUNG, 2014)

Através dos mitos podemos reconhecer a nossa própria história na história de humanos e de deuses, contadas muitas e muitas vezes através dos séculos, repetindo a história de um sofrimento compartilhado pela humanidade. Histórias que mudam de roupa de acordo com cada cultura, mas que tem em seu núcleo a mesma estrutura, o mesmo arquétipo.

Para Hillman, apenas na mitologia a patologia recebe um espelho adequado. Segundo ele, patologizar é um modo de mitologizar (HILLMAN, 2010, p. 210)

O diabético tipo II talvez possa reconhecer-se, em sua história e seu destino, no mito de Tântalo. 

O diabetes mellitus tipo II se desenvolve principalmente em adultos geralmente obesos e sedentários, com antecedente familiar de diabetes está em íntima relação com o estilo de vida que o paciente assume. Hábitos alimentares que priorizam alimentos hipercalóricos, processados, industrializados, o excesso de bebidas alcoólicas, associados à pouca atividade física e ao stress favorecem o surgimento da patologia.  Antes da instalação da doença, houve uma vida de excessos e transgressões. Tal qual Tântalo que desafiou os deuses, o diabético também desafiou a sua homeostasia.

A obesidade não acontece de um dia para o outro. Ela é resultado de muitos anos onde o balanço entre ingesta e consumo pende para o lado do excesso de ingesta calórica. E quanto mais cedo se estabelece este ambiente diabetogênico, maior a possibilidade de desenvolvimento do sobrepeso e obesidade.

Acontece que existe uma grande porcentagem de não aderência ao tratamento dietético por parte dos diabéticos, com manutenção do mesmo padrão alimentar de sempre. E estes hábitos são culturais, grande parte dependente do que se tem como modelo na família, e assim, crianças que são inseridas nesses padrões desde cedo tem maior possibilidades de também desenvolver obesidade, arrastá-la no decorrer dos anos e também desenvolver a mesma doença na vida adulta. 

Quando falamos dos antecedentes familiares de diabetes, para além do componente genético, talvez estejamos falando do motivo mitológico do sacrifício do filho por Tântalo, numa tentativa de desafiar a onisciência dos deuses, aqui simbolizada pela sacralidade do corpo.

Como castigo, o diabético pode ter à sua frente a mesa farta dos deuses, mas não pode usufruir segundo sua vontade e prazer. Deve ser comedido na ingesta calórica. As árvores recolhem seus galhos tirando de sua frente os suculentos frutos. Deve aderir ao tratamento dietético de forma consciente, caso contrário corre o risco de desencadear a rede de mecanismos fisiopatológicos que levam à descompensação e lhe colocam a vida em risco. Sobre sua cabeça pende uma pedra pesada que pode esmagá-lo. 

Condenado a uma vida de “fome” e “sede”, o diabético deve refletir sobre a hybris cometida. Reconhecendo no destino de Tântalo o seu próprio destino, o diabético pode vivenciar o que Campbell nos coloca acerca dos mitos: “os mitos ensinam que você pode se voltar para dentro, e você começa a captar a mensagem dos símbolos… O mito ajuda a colocar sua mente em contato com essa experiência de estar vivo”. (CAMPBELL, 1990, p. 6)

Selma de Fátima Silva Canoas – Membro analista em formação

Maria Cristina Mariante Guarnieri – Analista didata responsável

BIBLIOGRAFIA

BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia Grega. 23. ed. Petrópolis: Vozes, 2015.

CAMPBELL, Joseph. O poder do mito. São Paulo: Palas Athena, 1990.

HALL, John Edward. Tratado de fisiologia médica. Rio de Janeiro: Elsevier, 2011.

HILLMAN, James. Re-vendo a psicologia. Petrópolis: Vozes, 2010.           

JUNG, Carl Gustav. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. 11 ed. Petrópolis: Vozes, 2014.

______ Psicologia do Inconsciente. 19. ed. Petrópolis: Vozes, 2011.

KERÉNYI, Karl. A mitologia dos gregos. Petrópolis: Vozes, 2015, vol 2.

TSCHIEDEL, Balduino. A história do diabetes. Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia. 17 jun. 2014. Disponível em: <www.endocrino.org.br/a-historia-do-diabetes>

Exit mobile version