Na história da humanidade, a igreja católica estabeleceu uma lista de sete comportamentos considerados prejudiciais e proibidos – soberba, avareza, inveja, ira, luxúria, gula e preguiça, balizando a ética e a moral do ser humano. Classificados como capitais, os principais (dos quais todos outros se originavam), eram uma espécie de faróis que iluminavam conteúdos sombrios da alma humana e auxiliavam o seu reconhecimento em momentos turvos e agitados do mar das emoções e do mundo interno de cada indivíduo.
Jung reconhecia na natureza humana e na psique a presença da sombra, ou seja, aspectos e conteúdos rejeitados pelo ego por não serem compatíveis com um ideal da persona ou com os requisitos válidos para uma adaptação ao mundo externo – os códigos de conduta morais. Sendo renegados ao inconsciente, sua voz ainda ecoava e exigia reconhecimento e integração, mesmo que fosse às custas da insegurança, da surpresa e do constrangimento do funcionamento da consciência e do controle egóico.
Atualmente, infelizmente, por conta do padrão patriarcal e da heteronormatividade dominantes, acredito que podemos acrescentar um novo pecado capital: a sensibilidade. Sua expressão genuína e o contato com sua força arquetípica são rechaçados e considerados infames, sem valor e fora de qualquer validação social. Em um mundo onde as pessoas estão cada vez mais voltadas para si mesmas, enredadas em comportamentos massificantes, estimuladas para unilateralidades de pensamento e percepções rígidas e literais – que impedem o olhar para um outro lado mais flexível, de forma simbólica, acabam determinado a morte e a inadequação da sensibilidade e suas reverberações.
Quando se olha a raiz latina da palavra, encontra-se “sensibilitas,atis“, que significa sentido.
O sentido é algo que está morto na sociedade atual. Muitos de nós procuramos sentido e significado em redes sociais, na aceitação em grupos de ideologia sem reflexão, em laudos que determinam transtornos, em uma doença para chamar de “minha”. Entretanto, todos esses caminhos massacram a individualidade, massificam o pensamento próprio e enterram a possibilidade do contato mais natural, leve, contrastante e rico com o campo humano sensível.
Pecado, do grego hamartia, é um verbo que significa errar o alvo. Isso não significa meramente um erro intelectual de juízo, mas não conseguir atingir o objetivo existencial.
No pensamento coletivo, a ideia de expressar sua sensibilidade foi associada à característica feminina, a aspectos do ser mulher e todo seu campo afetivo. Jung associa a Alma ao princípio feminino e, como ela, muitas vezes, gera incômodos, negá-la acaba sendo uma forma de defesa. Um ponto intrigante é que, ao refutar esse aspecto humano e proibir sua expressão, o estigma da fragilidade feminina e a sua menos valia entram no campo de discussão. Um estímulo ao empobrecimento do que é ser um ser humano integral e conectado com seu Si mesmo, com sua totalidade psíquica, que abarca um olhar múltiplo para o mundo externo, é constantemente reforçado. Negar uma parte essencial da mulher também presente no homem é um atentado contra a singularidade de cada ser.
Frases como: “isso é coisa de mulher”, “o que importa no mundo é ter sucesso profissional”; “isso é bobagem, não tem razão nenhuma”; “você tem coração mole”; revelam o quanto há uma cisão profunda no interior da sociedade moderna. Quanto mais divididos somos, mais diabólicos ficamos. A divisão afasta a união, afasta o símbolo e, consequentemente, levanta angústias, dores emocionais e físicas, sintomas, sensação de vazio e perda de perspectiva de mundo.
“A atrofia dos sentimentos é uma característica do homem moderno que se manifesta como reação quando há sentimentos em demasia e principalmente sentimentos falsos.” (JUNG, OC.15, §183)
Aquilo que é desconhecido assusta, mesmo que haja um potencial oculto de libertação e inovação. A expressão da sensibilidade acaba se tornando um desconforto, algo estranho, ruim, difícil de ser compreendido e aceito como um aspecto natural do ser humano. Como resultado, a busca pela anestesia dos sentidos e sentimentos se intensifica, abrindo caminho para o uso de drogas, entorpecentes e outros mecanismo de compensação e fuga.
As pontes são construídas pela sensibilidade. Não há como relações serem construídas sem a presença do “oitavo pecado capital”. O se desarmar, o sair das próprias convicções e certeza, o retirar-se da zona de conforto e do controle da vida, são passos e posturas fundamentais para o desenvolvimento de relações. O que mais se vê hoje em dia são demandas emocionais com o tema do se relacionar. Os reflexos mais notórios são casamentos falidos nos quais a comunicação se perdeu; o aumento da indisponibilidade em procurar parceiros e parceiras; a reclusão no mundo digital e sua ilusão de virtude e perfeição.
“É o mesmo caso do intelecto que não consegue explicar nem muito menos entender a essência do sentimento. E essas duas coisas não existiriam como entidades separadas, se sua diversidade, em princípio, não se tivessem imposto, há muito tempo, à inteligência.” (JUNG, OC.15, §99)
A sensibilidade é a mãe da criatividade e mola propulsora da espontaneidade. Ser criativo é ter a possibilidade de unir contrastes; de pensar originalmente fora daquilo que é preestabelecido como normal e previsível; é poder ter um contato mais próximo da natureza interna rica e presente em cada um de nós. Nenhuma espontaneidade aflora se não houver um reconhecimento daquilo que é verdadeiro, daquilo que foi construído por imposições socias e familiares e que não é coerente com o potencial da natureza.
A sensibilidade está ligada ao Eros e é a mãe das expressões criativas. O casamento real se completa com a sua contraparte. O Pai, como está ligado ao Logos, estimula o criativo pela dificuldade, necessidade, limite de tempo e espaço. Logos e Eros juntos conclamam o resgate da integralidade, não limitados no macho e na fêmea, mas sim da totalidade da expressão humana com alma e realização coletiva. Para gerar o novo é preciso ouvir a complexidade inerente à sensibilidade e não encará-la como um pecado capital.
Pedro Pimentel Rocha – Membro Analista em formação IJEP
Waldemar Magaldi – Analista Didata IJEP
Referências:
JUNG, C. G. O espírito na arte e na ciência. OC.15. Petrópolis: Vozes, 2021