As primeiras vezes que Jung falou sobre trauma, foi a partir da perspectiva de Freud, já que naquele momento ele estava envolvido nas pesquisas e defesa das ideias postuladas pela escola freudiana. Naquele momento se tinha a ideia de que a partir do trauma se desenvolvia a histeria, contudo eles, tanto Freud quanto Jung, começaram a observar que, a priori, o trauma emergia em virtude de alguma predisposição.
O advento da primeira guerra mundial exigiu dos médicos técnicas para tratar os traumas psíquicos causados no campo de batalha. Neste período Jung faz alguns comentários sobre as críticas de William McDougal a respeito das ideias de William Brown no artigo The revival of emotional memories and its therapeutic value. Neste artigo Brown defende o tratamento dos traumas através da repetição dramática do momento traumático – ab-reação, que consistia basicamente em uma recapitulação emocional em estado desperto ou sob hipnose. O objetivo era oferecer para o indivíduo a oportunidade de relembrar dos acontecimentos de forma segura e consciente, até que as fortes emoções pudessem perder a força. Jung concorda com as críticas de McDougal a respeito do valor da ab-reação:
Infelizmente, porém, esta interpretação, tão clara e simples na aparência, corresponde tão pouco à realidade quanto outras explicações igualmente simples, mas falaciosas – como observa McDougall com toda razão. Posições como estas são muitas vezes defendidas com veemência, e até com fanatismo, como se fossem dogmas. Isto, porque elas não resistem a uma análise fenomenológica. McDougall afirma, portanto, com toda razão, que em inúmeros casos a ab-reação não é só inútil, como até prejudicial. (Jung, 2011a, p. 13)
Aqui se a presenta o nosso primeiro desafio dentro da clínica, porque na própria anamnese, em certa medida, já estamos relembrando os acontecimentos marcantes, e apesar da falta de lembrança, é possível que um incomodo se apresente inconscientemente, ou em outras palavras, um complexo pode constelar com toda a autonomia que lhe é característica. Mesmo que aconteça um esforço por parte do cliente, na tentativa de reprimir o incomodo, o ego aqui não goza de toda sua autonomia, conforme Jung reforça:
[…] o complexo se manifesta independentemente da vontade, pode inclusive mostrar-se diretamente antagônico às tendências conscientes. O complexo impõe-se à consciência com força tirânica. A explosão de fundo afetivo é comparável a uma investida global contra a personalidade: o indivíduo é como que atacado por um inimigo ou um animal selvagem. Tenho observado, não raro, que o afeto traumático típico é representado no sonho sob forma de feras selvagens e perigosas – o que ilustra adequadamente sua natureza autônoma, quando cindido da consciência. (Jung, 2011a, p. 14)
Quando falamos nestes complexos, que surgem a partir de um evento traumático na vida, estamos nos referindo também de uma porção da personalidade que separou, formando uma outra personalidade dissociada e desconhecida para a própria consciência, que nada conhece deste outro. E isso se torna um grande desafio para o analista, no papel de médico da alma, que precisa apresentar ao cliente esta outra personalidade autônoma, geralmente projetada ou negada:
Estas coisas só podem existir na repressão. Mas elas existem e têm uma existência separada; constituem um estado dentro de um estado, uma personalidade dentro de uma personalidade. Em outras palavras: estão presentes duas consciências, mantidas separadas por fortes barreiras emocionais. Uma não pode e não deve saber da outra. (Jung, 2011b, p. 358)
E somente após um vínculo saudável é que o analista poderá apresentar este aspecto sombrio a seu cliente, portanto é sempre importante lembrar que o terapeuta não deve esquivar-se das próprias dificuldades, como se ele mesmo não as tivesse, apenas porque está tratando das dificuldades de outrem. (Jung, 2011d, p. 88)
As vezes a dissociação que existe em nós é tão forte que ela mesmo passa a nos atacar, como se estivesse lutando pela própria vida, pelo direito de existir. Todos carregam em si o medo da morte, da finitude da existência, e isso também está presente nos outros que existem em nós – os complexos, porque eles também carregam o mesmo medo do fim. Por isso, sempre que o ego sinta sua autonomia ameaçada por um complexo e tenta se defender, eles também irão reagir defensivamente e a neurose se instala. É justamente neste momento que personalidade do médico faz total diferença no processo analítico, é nesta porção minimamente adaptada que o cliente pode se agarrar como um ponto de suporte.
Um dos grandes desafios, se não o maior, dentro da clínica é o enfrentamento das partes dissociadas, principalmente os que surgem a partir de fortes cargas emocionais vivenciadas na infância. E vale a pena também deixar claro que este enfrentamento não é apenas para quem está em terapia, a dificuldade é também para o terapeuta.
Eu gosto de usar a seguinte analogia para esta questão. A porção da personalidade dissociada se encontra trancafiada em uma torre, que por sua vez é guardada por um grande dragão. O cliente é aquele herói que busca a libertação desta personalidade bem guardada, porém sempre que se aproxima desta torre o dragão lança sua ira por toda terra e destrói todos os caminhos construídos até a torre. O analista por sua vez é aquele que vai ao lado do herói, trabalhando e criando condição para enfrentar essa luta.
Quando observamos com atenção, sempre que é alcançado o ponto central para tomada de consciência, as resistências inconscientes se levantam. Jung observa ao explicar que a liberdade do eu cessa onde começa a esfera dos complexos, pois esses são potencias psíquicas cuja natureza mais profunda ainda não foi alcançada. (Jung, 2011c, p. 51) As vezes o incomodo é tão grande que a análise pode ser interrompida. Todo tipo de coisa passa a acontecer, são dores de cabeça, agitações podem começar em todo o corpo, falta de memória a respeito de fatos relevantes que estão diretamente relacionados com assunto em questão, situações da vida social que passam a ganhar mais espaço que a própria análise, pesadelos em que o ego onírico é atacado e assim por diante.
O próprio Jung relata um atendimento onde ele enfrenta a mesma resistência, sua cliente tinha espasmos e contrações na região da barriga que a incomodavam muito, ao final sempre falava que era a última sessão, pois teria que parar em virtude de outros compromissos, mas acabava voltando para próxima sessão. Jung nos demonstra uma percepção muita acertada sobre essas resistências:
Quando necessário falham no paciente não só o interesse e a simpatia pelo médico, mas também o pensar, a memória e finalmente inclusive a fala. Mas são precisamente estes mecanismos específicos de defesa que revelam o complexo. No experimento de associações começam aparecer a hesitação, a reprodução deficiente e o distúrbio característico quando o complexo é atingido, assim também na análise começam a aparecer as dificuldades quando estamos perto de chegar ao complexo. (Jung, 2011b, p. 349)
Donald Kalsched, em seu livro O mundo interior do trauma, nos oferece uma visão muito bem-vinda para a análise destes traumas, e podemos notar essas defesas que se levantam sempre que nos aproximamos do complexo. Como sabemos, os complexos são partes da psique, como personalidades autônomas, e se encontram dissociados da consciência. Kalsched explica essa fragmentação da seguinte forma:
[..]quando o trauma atinge a psique em desenvolvimento de uma criança, tem lugar uma fragmentação da consciência na qual as diferentes “partes” (Jung as chamava de psiques fragmentadas ou complexas) se organizam de acordo com certos padrões arcaicos e típicos (arquetípicos), mais comumente díades ou sizígias formadas por “seres” personificados. Tipicamente, uma das partes do ego regressa ao período infantil, e outra parte progride, isto é, cresce rápido demais. (Kalsched, 2013, p. 15)
Quando, junto ao paciente, começamos a enfrentar esses materiais traumáticos, fica claro que a situação originária está sempre se repetindo e reafirmando a grande dificuldade, ao ponto de parecer que existe uma conspiração da vida contra o próprio indivíduo. Essa repetição se torna o próprio entrave para o andamento do processo. O sentimento e o pensamento que começam a emergir na terapia é o medo da constatação de que o sofrimento irá acontecer novamente como sempre aconteceu no mundo lá fora. O próprio consultório passa a comportar as projeções inconscientes e só a atitude de chegar no consultório ou ligar sua câmera, passa a ser a possibilidade de sentir a repetição ao vivo.
Conforme o próprio Jung constatou, não basta apenas esse reviver a experiencia sem nenhuma consciência, pois isso é vivenciado o tempo todo, porém apenas reativamente. Em outras palavras, a situação traumática e seus efeitos são vivenciados apenas no espaço interno, todo desconforto, todo incomodo e sentimento são partes do enredo inconsciente. Enquanto o resultado da constelação do complexo permanecer oculto e projetado, não há transformação porque o eu ainda está culpando o mundo externo em detrimento do seu mundo interno.
Sem a consciência que só pode surgir no processo do trabalho emocional, o mundo do trauma, com os seus processos defensivos arquetípicos, se duplica na vida exterior […] em um padrão que Freud apropriadamente chamou de daimônico. Na terminologia de Jung, poderíamos dizer que a situação traumática original apresentava um perigo tão grande para a sobrevivência da personalidade que não foi retida na forma pessoal relembrável, mas somente na forma arquetípica daimônica. Essa é a camada coletiva ou “mágica” do inconsciente e não pode ser assimilada pelo ego enquanto não for ‘encarnada” na interação humana. (Kalsched, 2013, p. 55)
Mais uma vez precisamos evocar o pensar de Jung quando diz que é a personalidade do médico que faz a diferença. A interação humana capaz de demonstrar um caminho de transformação para o paciente se apresenta a partir da projeção, mas é preciso lembrar que é a partir da mesma que se caracteriza os riscos da transferência e da contratransferência. O médico precisa ser capaz de conseguir suportar essa projeção sem ser sugado pelo trauma do paciente. A falta de consciência do analista passa a fazer parte do conjunto da obra das defesas arquetípicas. No pior dos casos o analista passa a ser o integrante do próprio trauma do cliente. Tal constatação se confirma com a reafirmação do trauma no paciente – “Meu caso não tem jeito mesmo”.
Por isso a análise junguiana não pode ser tratada de forma leviana e infantil. Quando a personalidade do médico – analista – é evocada, não se trata apenas da profundidade em que este chegou, mas sim da capacidade de se questionar a todo momento. Nos grandes traumas que enfrentamos na clínica essa exigência passa a ser a grande chave de transformação, que ocorre em ambos os indivíduos.
O que estou querendo trazer como reflexão é a raiz das repetições dos traumas que parecem nunca chegar a um desfecho. Assim como Sísifo que ao chegar ao topo da montanha a pedra rola para baixo novamente e seu trabalho recomeça, esse ciclo repetitivo de um trauma acontece pela própria dinâmica do inconsciente que pode ser representado na figura do dragão uróboros que devora a si mesmo. Da mesma forma que deus busca se conhecer através de nós e os complexos se revelam em nossas projeções e sonhos, me parece que os traumas também buscam serem resolvidos, porém ao mesmo tempo as defesas psíquicas se levantam mantendo o indivíduo, ele se torna, simultaneamente, vítima e algoz de si-mesmo, e o maior de todos os desafios é alcançar a paz, conciliando esses dois aspectos, porém só é possível quando vencer e perder deixarem de ter importância.
Daniel Gomes – Analista em Formação pelo IJEP
Waldemar Magaldi – Analista Didata
Referências:
Jung, C. G. (2011a). Ab-reação, análise do sonhos e transfêrencia (Vol. 16/2). Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes.
Jung, C. G. (2011b). Estudos Experimentais (Vol. 2). Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes.
Jung, C. G. (2011c). A Natureza da psique (Vol. 8/2). Petrópolis: Vozes.
Jung, C. G. (2011d). A prática da psicoterapia (Vol. 16/1). Petrópoles: Vozes.
Kalsched, D. (2013). O mundo interior do trauma. São Paulo: Paulus.