Resumo: Este artigo traz uma provocação: De onde vem a ideia de ativação de arquétipos? De onde vem a ideia de 12 arquétipos? Já sabemos que os arquétipos estão presentes na humanidade muito antes da nossa existência individual e continuarão aí depois de partirmos, sempre sendo ampliados pelas experiências humanas. Ele faz parte do inconsciente coletivo, este por sua vez é repleto de conteúdos de toda a vivência humana. A partir disso já podemos compreender que é impossível determinar qual a quantidade de arquétipos existente no universo. No entanto na área de marketing e propaganda começou-se a entender que o conceito de arquétipo poderia ajudar a alinhar uma imagem ao desejo do consumidor, e assim a ideia de 12 principais arquétipos foi ganhando força e se espalhando. Este artigo pretende demonstrar como essa ideia foi construída e um tanto deturpada ao longo do caminho. E por fim, como enquanto analistas temos que ter atenção a isso e não reduzir a compreensão sobre os arquétipos.
Começo este artigo levantando várias questões sobre como lidamos com a ideia de arquétipo.
Podemos acessar um arquétipo de forma consciente? Podemos escolher que arquétipo permeará uma situação? Podemos ativar arquétipos? Essas e outras perguntas rondam a psique de algumas pessoas e levantam dúvidas sinceras.
A minha pergunta é, por que isso acontece? Por que a preocupação em controlar o incontrolável? O intangível?
Os arquétipos estão presentes na humanidade muito antes da nossa existência individual e continuarão aí depois de partirmos, sempre sendo ampliados pelas experiências humanas. Ele faz parte do inconsciente coletivo.
O inconsciente coletivo corresponde às camadas mais profundas do inconsciente, reúne conteúdos psíquicos inerentes à psique de todo ser humano. Jung chegou a essa formulação, que revolucionou a Psicologia, com o auxílio de dados empíricos obtidos na observação clínica e provenientes de sua própria experiência interna.
O conteúdo do inconsciente coletivo não depende de experiências vividas, são impessoais, comuns a todos e transmitidos por hereditariedade. Jung defende que acontece com a psique o mesmo que com o corpo, no sentido de que a evolução e a hereditariedade lhe dão as linhas de ação. Esses processos não dependem diretamente das experiências pessoais.
O inconsciente coletivo é um reservatório de potencialidades de imagens latentes, denominadas primordiais, primeiras, originais. O indivíduo desenvolve um padrão pré-formado de comportamento pessoal, estimulado por conteúdo do inconsciente coletivo. Esses conteúdos, que recebem em Jung o nome de arquétipos, são responsáveis pela seleção de nossas percepções e ações.
De acordo com Nise da Silveira, os arquétipos constituem formas instintivas de imaginar.
São potencialidades herdadas que possibilitam representar imagens semelhantes. São como matrizes, funcionando como um nódulo de concentração de energia psíquica, que quando se atualiza e toma forma gera a imagem arquetípica. Esta se diferencia do arquétipo justamente por possuir uma imagem definida.
O arquétipo é uma forma irrepresentável, e o que chega até nós através do inconsciente é a imagem arquetípica. O arquétipo tem uma característica psicóide, é transcendente, e não é capaz de atingir a consciência porque, ao percebermos conscientemente algo de natureza arquetípica, esse algo nos vem carregado de variações do mesmo tema.
Jung descreve psicóide como representando as duas extremidades de um arquétipo, uma mais vinculada ao instinto (próxima ao Bios), enquanto a outra está associada ao aspecto espiritual. Ele o ilustra como um espectro, em que, de um lado, encontramos o infravermelho dos instintos, e do outro, próximo ao ultravioleta, residem os aspectos espirituais, ou seja, os arquétipos. Esses dois polos, o instintivo e o espiritual, ocupam o mesmo espectro. Para corpo e espírito, não há separação; somos um todo indivisível.
Ao tentarmos imaginar o arquétipo, já estamos vendo a imagem arquetípica, porque tudo que chega à consciência faz parte do mundo dos fenômenos. Neste momento, peço ao leitor que imagine a figura do herói. Cada leitor teve acesso a uma imagem diferente, de acordo com seu conhecimento acerca do tema. Essas imagens são representações do arquétipo e dependerão da psique de cada leitor, não tendo por isso mesmo como ser objetiva. Tudo o que dissermos a respeito do arquétipo não passará de “visualizações e concretizações que pertencem ao domínio da consciência. Mas não temos outra maneira de falar sobre os arquétipos senão esta”.
A transformação de energia psíquica em imagens pode ser observada em nossos próprios sonhos. Aparecem também, em épocas diferentes e lugares distantes, temas idênticos nos contos de fada, nos mitos, nos dogmas e ritos das religiões, nas artes, na filosofia e em várias produções do inconsciente, demonstrando assim sua característica de base psíquica comum a todo ser humano.
Para Jung o arquétipo é autônomo como uma força da natureza, nem positivo nem negativo, e capaz de organizar a experiência humana sem considerar as consequências construtivas ou destrutivas para o indivíduo. Existem tantos arquétipos quanto situações da vida, tendo sido gerados a partir de uma repetição infinita de experiências ancestrais. Não se trata, porém, de imagens cheias de conteúdo, e sim de formas que representam possibilidades, como um negativo a ser revelado.
Os arquétipos são universais. Todos herdamos as mesmas temáticas arquetípicas básicas, que, juntando com a experiência, dão origem à diferenciação individual na expressão do arquétipo.
Ora, sendo assim já podemos compreender que é impossível sabermos qual a quantidade de arquétipos existente no universo. E também que não os controlamos, portanto não é possível ativá-los quando bem entendemos. Então de onde surgiu a ideia de ativação de arquétipo?
Bom, faz parte da natureza humana querer controlar os acontecimentos da vida, pelo menos da vida desperta, consciente – se bem que já exista quem tente controlar também os sonhos. Brincadeiras a parte, há a ideia por parte de algumas vertentes da psicologia que a consciência é senhora e gestora de nossa vida. Porém sabemos que isso não poderia estar mais errado.
Ledo engano quem acha que a consciência pode dar conta de tudo, que estamos o tempo todo na gestão das nossas ideias e sentimentos.
Que gerimos tudo independentemente do que nos cerca, independentemente da história de nossos antepassados, e não falo aqui só de laços consanguíneos, mas de laços humanos. De tudo que nos liga enquanto humanidade.
Podemos dizer que viemos todos do mesmo substrato. Não existe nada que seja só “meu”, tudo é compartilhado com a humanidade. Eu só reconheço o que é “meu” porque tenho uma referência disso. Por exemplo: eu só sei que sou corajoso porque sei reconhecer a coragem em outras pessoas, e também o seu oposto – a covardia – e sei reconhecer isso porque durante incontáveis eras esses conceitos foram se formando a partir das vivências desses antepassados.
Figuras como o herói, o inocente, o velho sábio, o mago, a heroína, a guerreira, a donzela, etc. sempre chamaram a atenção e despertaram um certo fascínio nos indivíduos, mas claro que a tendência é ficar fascinado pelo lado “positivo”, “bonito” e “romantizado” dessas figuras.
Retomando a ideia de Jung sobre arquétipos devemos lembrar que o arquétipo guarda a totalidade das experiências humanas, portanto não é nem positivo nem negativo, ele simplesmente é.
Isso significa que o arquétipo do herói será tudo aquilo que o herói pode ser – isso parece muito bom, não é mesmo? – mas se olharmos mais de perto poderemos perceber que o herói, muitas vezes, realiza coisas que não são boas para ele mesmo, ele não se coloca como indivíduo, ele está a serviço da humanidade, muitas vezes se colocando em grande perigo em função de um bem maior.
Quando um herói tem que enfrentar um dragão, ele não pensa que o dragão poderá devorá-lo, ele simplesmente partirá numa aventura para enfrentar o dragão e salvar sua aldeia, porque isso é o certo a fazer. Um ser humano, em sã consciência fugiria o mais longe possível para preservar a si próprio. Um herói enfrentará um incêndio sem calcular o perigo que pode estar correndo, sem levar em conta que pode morrer. Um indivíduo pensará nos riscos que isso possa representar para sua integridade física. O herói está a serviço do Self.
Uma guerreira – muitas mulheres são chamadas de guerreiras – você já deve ter ouvido umas tantas vezes a frase: “Nossa, como ela é guerreira”! Num olhar mais atento, numa escuta mais afiada, veremos que isso não é tão bom quanto parece.
Examinemos de perto esta frase: uma mulher guerreira está sempre pronta para a batalha, disposta a matar e morrer para realizar o que precisa, não descansa nunca, não precisa de ajuda, não solicita ajuda, afinal ela é “guerreira”.
E um guerreiro luta pelo que?
Um guerreiro está sempre disposto a lutar incansavelmente pela sua nação, um guerreiro não foge a luta porque percebe que está correndo perigo, não descansa, não dorme, não chora, não esmorece, um guerreiro não é humano. Longe de ser elogio e de ser um lugar que uma mulher deseja estar, mas a sociedade vende isso como se fosse lindo. Mulheres que dão conta de tudo, mulheres multitarefa, e ainda com cabelos e unhas feitas – mas que no fundo estão exaustas. Exaustas porque estão sempre tentando ser sobre-humanas, realizar o irrealizável – o arquétipo – ou melhor – a imagem arquetípica.
Nos dois exemplos podemos perceber que não estamos falando de comportamentos humanos, estamos falando de potencialidades humanas, mas que são grandes demais, potentes demais para que um ser humano possa dar conta. Mas se é tão grande assim, se enquanto seres humanos não conseguimos dar conta dessa grandeza, de onde vem a ideia de que podemos acionar essa força do arquétipo para nos beneficiar? De que podemos controlar essa força ao nosso bel prazer?
Pois bem, as empresas de marketing começaram a entender que certas características poderiam fortalecer uma marca, e que não só produtos e serviços, mas também estrelas de cinema, figuras públicas, cantores, poderiam passar imagens que despertassem nos consumidores o desejo de ser ou ter o mesmo que eles. Por exemplo: uma atriz famosa usando um determinado perfume passa a ideia de que fica mais sensual e interessante por causa daquela fragrância, e imediatamente as vendas disparam porque as mulheres desejam ser como ela – desejam ser atraentes e sensuais como a atriz, e que, para que isso aconteça devem usar o mesmo perfume que ela. Vejam, a potência da sensualidade, da atração, da feminilidade está em toda mulher, faz parte dela, porém não há como “ativar” essa potência imitando um comportamento qualquer – nesse caso, usar o mesmo perfume que a atriz.
Longe de ser uma novidade, as pessoas sempre desejaram ser como alguém que admiram, ter coisas que acham importantes porque viram em alguém, anseiam por algo que não tem e que sentem que precisam. As propagandas sempre foram o veículo para despertar tais desejos, mas isso acontecia de uma forma quase que intuitiva.
Em seu livro O herói e o fora da lei a escritora Carol Pearson, juntamente com Margaret Mark traçam uma rota para entendermos como as empresas de marketing foram mudando sua maneira de trabalhar na medida que foram entendendo o que elas chamam de território arquetípico. Elas explicam que no mundo do marketing não existia nenhum conceito que se assemelhasse ao conceito de arquétipo.
No mundo do marketing, nunca tivemos conceito ou vocabulário comparável. Mas as marcas estão, na verdade, entre as mais vibrantes expressões contemporâneas desses padrões profundos e permanentes. Seja por meio da intenção consciente ou por um acaso feliz, as marcas – sejam candidatos políticos, super estrelas, produtos ou empresas – alcançam diferenciação e relevância profundas e duradouras quando incorporam um significado arquetípico atemporal. Com efeito, as marcas mais bem sucedidas sempre fizeram isso.
Tanto Mark quanto Pearson tem uma vasta experiência em organizações e empresas de marketing. Carol Pearson desenvolveu durante 30 anos um referencial psicológico sólido, integrando a psicologia junguiana e outros sistemas, aplicando-os em liderança organizacional e ao marketing. Margaret Mark tem a mesma experiência utilizando as percepções e motivações humanas ao marketing com o cliente.
Ambas já tinham entendido o valor do arquétipo e sua importância para as marcas, seja de produtos ou de pessoas.
Estudando as grandes marcas, elas perceberam que o significado delas era qualitativamente superior ao de marcas comuns, justamente porque o significado de tais empresas expressava arquétipos universais e atemporais. Embora essa conclusão parecesse indiscutível, elas precisavam de comprovação, de testes objetivos. Na época a empresa Young & Rubicam tinha o mesmo interesse e um banco de dados enorme, que permitiria desenvolver um sistema algorítmico para determinar o valor arquetípico da marca.
Mark foi vice-presidente executiva e depois consultora da Young & Rubicam, o que lhe permitia ter acesso ao BrandAsset Valuator (BAV) da empresa, que é um estudo de marcas do mundo todo, profundo e bastante abrangente. São pesquisas feitas em 33 países que permitem analisar as atitudes dos consumidores diante de 13000 marcas. O livro traz toda a pesquisa e como funciona esse teste.
A questão que nos interessa aqui, é que a partir desse sistema algorítmico elas categorizaram 12 principais arquétipos, a saber – o inocente, o explorador, o sábio, o herói, o fora da lei, o mago, o cara comum, o amante, o bobo da corte, o prestativo, o criador e o governante – através dos quais uma empresa conseguiria atrair seu consumidor, aliando significado ao produto para despertar o interesse e fidelidade desse consumidor pela marca.
Elas ressaltam que administrar bem a imagem de uma marca de sucesso se tornou tão importante quanto uma administração financeira correta, isso porque nos dias atuais a oferta excede a demanda, dessa maneira a teoria dos arquétipos funcionaria como uma bússola para os profissionais de marketing, possibilitando alavancar produtos e marcas. Somos capturados pelo significado.
Nossa colaboração começou com a percepção de que a psicologia arquetípica poderia oferecer uma fonte mais substantiva para a ciência da criação de publicidade eficaz.
O que encontramos foi uma verdade muito mais profunda: a psicologia arquetípica ajuda-nos a compreender o significado intrínseco das categorias de produto e, consequentemente, ajuda os profissionais de marketing a criar identidades de marcas duradouras que estabelecem o domínio do mercado, evocam nos consumidores o significado e o fixam, e inspiram a lealdade do consumidor – tudo isso, potencialmente, de maneira socialmente responsável.
As autoras falam da necessidade das empresas de marketing se tornarem fluentes na linguagem visual e verbal dos arquétipos e ressalta que criadores de marcas icônicas intuíram essa verdade simples, mas alertam – e isso é o mais importante para nós – que se deve ter cuidado com o uso da teoria dos arquétipos. De acordo com elas a imagem a ser passada precisa trazer a verdade da empresa, sem isso o consumidor percebe a fragilidade da marca. É como se o consumidor percebesse que há uma “mentira” por traz daquela mensagem.
As próprias autoras ressaltam a importância de que um produto ou uma marca seja realmente arquetípica, para elas não basta “fraudar” uma identidade arquetípica, é necessário que essa marca ou produto atenda e incorpore as necessidades humanas fundamentais. Que pode haver grandes desastres se se utilizar o significado arquetípico de forma ingênua ou inescrupulosa.
O que fica bem claro – pelo menos eu espero – é que essa ideia de 12 arquétipos principais, que podemos acionar quando bem entendermos, é uma ideia de marketing, é uma tentativa de capturar o consumidor para atender uma necessidade. Não deixa de ser aqui um movimento de massa, porque determinados produtos, determinadas marcas vão sim ressoar alguma necessidade e “acionar” um complexo – porque não temos acesso ao arquétipo – lembra? Aliás as autoras deveriam falar em imagens arquetípicas e não em arquétipo, mas a ideia fica clara.
Minha intenção ao tentar entender sobre esse fenômeno dos 12 arquétipos se deve ao fato de que cada vez mais e mais nos deparamos com a promessa de que podemos acionar e controlar conscientemente um arquétipo, e sabemos que isso não é possível.
Ao me deparar com o estudo de Mark e Pearson entendi que a intenção das autoras foi sistematizar um caminho que já era percebido de forma intuitiva, para facilitar a vida dos profissionais de marketing – e não há nada de errado nisso – o que está errado, são pessoas e instituições que deturpam o sistema criado por elas para passar a ideia de que podemos controlar a ação de um arquétipo.
Os arquétipos contam a história da humanidade, portanto, tudo tem narrativa arquetípica.
Podemos ser, e somos permeados por vivências e experiências arquetípicas, mas elas “transitam” de forma livre pela nossa psique, sem que possam ser controladas pelo Ego. Somos meros expectadores. Expectadores que podem ficar atentos para perceber o que nos afeta, o que nos comove, o que nos sensibiliza. E a partir daí ter uma vaga ideia de que uma pequena parte do arquétipo está presente, e apenas uma pequenina parte, parte essa que irá despertar no indivíduo algum sentimento, algum desejo – bom ou ruim, porque o arquétipo traz toda a potência em si. Então lembre-se, somos acionados e não acionamos, estamos a serviço dos arquétipos e não eles a nosso serviço. Eles são muito maiores que a consciência individual. Eles fazem parte da psique coletiva, com toda sua grandeza e seu mistério.
Analista Didata em Formação – Keller Villela
Analista Didata – Ercília Simone Magaldi
Referências:
JUNG, Carl Gustav. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Petrópolis: Vozes, 2012.
JUNG, Carl Gustav. Símbolos da transformação. Petrópolis: Vozes, 2011.
JUNG, Carl Gustav. A natureza da psique. Petrópolis: Vozes, 2011.
SILVEIRA, Nise da. Jung: vida e obra. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.
MARK, Margaret; PEARSON, Carol S. O herói e o fora-da-lei. São Paulo: Pensamento-Cultrix, 2003.
PEARSON, Carol S. O herói interior. São Paulo: Pensamento-Cultrix, 2023.