E depois das memórias vem o tempo trazer novo sortimento de memórias, até que, fatigado, te recuses e não saibas se a vida é ou foi. – Carlos Drumond de Andrade em “Versos à boca da noite”
Recentemente os brasileiros incorporaram ao seu vocabulário uma palavra de origem grega, antes desconhecida de uma vasta proporção da população: Alethéia.
O termo Alétheia (em grego antigo, ?λ?θεια) significa a verdade e ao mesmo tempo, a realidade, no sentido de desvelamento, ou seja, de descobrir o que estava encoberto (a= negação, e lethe = esquecimento)1, oculto. Martin Heidegger retomou o termo para definir a tentativa de compreensão da verdade. Para Heidegger, alethéia é distinta do conceito comum de “verdade” – esta considerada como um estado descritivo objetivo1. Assim sendo, Alethéia traz consigo a revelação imediata da realidade, no sentido de onisciência e de memória, significando o equivalente a Mnemosÿne (Memória). A única potencia que se opõe a Alethéia, mas que todavia a complementa é Lethe (em grego ΛÇθh = Esquecimento).
Para BRANDÃO (1986, V. 1, pg. 202)2, Mnemósina (em grego MnηoσÚnη = Mnemosýne), prende-se ao verbo μιμnÇsχein (mimnéskein) “lembrar-se de”, donde Mnemósina é a personificação da Memória. Segundo a mitologia, Mnemósina foi amada por Zeus e com ele gerou as nove Musas. (ibidem, pg. 233)2, Já Léthe(Esquecimento) é filha de Éris (Discórdia). Era também, na mitologia grega, a fonte de um dos rios do Hades, reino dos mortos. As almas que se dirigiam ao Hades bebiam das águas do rio Lete, a fim de esquecer suas existências terrenas. Mas também era o único rio que se atravessava no retorno a esta vida. (ibidem, pg. 320 v. 1)2.
No entanto, aqueles que bebessem ou até mesmo tocassem nas águas de do rio Lete experimentariam o completo esquecimento. Segundo o mesmo autor, ao beber da fonte do rio Lete (idem, 1987, V. 2, pag. 165-166) 3 , entrava-se no ciclo de reencarnação.
Os órficos, todavia, na esperança de escapar da reencarnação, evitavam o Lete e buscavam a fonte da Memória. Evitando beber das águas do rio Lete, o rio do esquecimento, penhor de reencarnações, a alma estava apressando e forçando sua entrada definitiva no “seio de Perséfone”. Mas, se a alma tiver que regressar a novo corpo, terá forçosamente que tomar das águas do rio Lete, para apagar as lembranças do além.
Assim, podemos observar que, pela mitologia, no mundo subterrâneo, o Hades, havia duas importantes fontes – a da Memória e a do Esquecimento. O esquecimento das tristezas e cessação dos cuidados eram governados pela personificação de Lethe ou Lesmosyne – a deusa do esquecimento e Mnemósine ou Alethéia – a deusa do conhecimento passado, da revelação, da realidade atemporal.
Para Macieira, (2012)4 a Psicologia Integrativa Transpessoal, estamos sempre morrendo e renascendo. Morremos para a vida intrauterina para ganharmos mais espaço, mais cores, novos sabores e nascemos como bebê. Morremos a criança, para nascermos o adolescente, onde a vida explode como um caleidoscópico de sonhos e novas aventuras. Morremos o adolescente para viver em nós o adulto. E assim, um homem novo e mais sábio vai surgindo a cada morte e renascimento. Todas estas passagens necessárias trazem perdas, lutos, memórias e esquecimentos.
Continuando esta reflexão, se esquecemos, como o nosso cérebro aprende e memoriza? Embora nós estejamos muito longe de ter uma teoria única que dê conta de todos os dados da aprendizagem e memória, imaginamos que todo projeto de memória traz consigo um projeto de esquecimento, já que mesmo vivendo esta época onde podemos ampliar a capacidade de memória dos aparelhos eletrônicos, ainda não fomos capazes de inventar um chip que amplie a memória do nosso cérebro. Assim, temos aí um aparente paradoxo: só aprendemos porque esquecemos. Como assim? Ora, a memória é sempre e necessariamente seletiva. Privilegiamos certos trechos no nosso passado em detrimento de outros. Aquilo que esquecemos abre espaço para novos aprendizados. E também, condensamos algumas memórias.
Alguns neurocientistas afirmam que na verdade, a memória nunca é mantida intacta. Estaríamos sempre reconstruindo nossas memórias. O fato lembrado não é exatamente aquilo que foi experienciado.
Mas como fazemos a escolha entre o que reter e o que esquecer, entre Lethe e Alethéia ou Mnemósina? Através a ação do sistema límbico. Assim, são as nossas emoções – positivas ou negativas – que funcionam como cola na guarda de algumas memórias.
E isto tem tudo a ver a terapia. Toda terapia é regressiva na medida em que traz fatos e vivencias passadas para serem reconstruídos na sessão terapêutica. E se trazidos é porque foram selecionados, vêm ocupando a memória, atrapalhando a vida e precisam ser atualizados por um novo olhar, mais amplo, mais compreensivo. Muitas vezes, talvez na maioria delas, estas vivencias estão impregnadas por emoções e padrões negativos que necessitam ser mudados.
Ainda nesta divagação, podemos lembrar o preceito bíblico de que “o perdão é o esquecimento da ofensa”. E a prática psicoterápica está lotada de situações de mágoas e rancores. Do ponto de vista psicossomático, quanto estas constantes revivencias do sofrimento impacta a saúde física, mental e espiritual? Então é preciso esquecer e perdoar. Mas esquecer e perdoar o quê, exatamente? Como perdoar e esquecer aquilo que feriu profundamente?
Penso sempre no perdão como um processo que inicia-se pela compreensão ampliada e racional do fato e de quem o praticou. Talvez isto elicie o começo de um perdão intelectual. A terapia também pode conseguir auxiliar a retirar a carga emocional relacionada à vivencia. Ainda assim, o corpo fala e reage. Afinal, ao esquecer o individuo pode se colocar novamente na situação de perigo. Então o que precisa ser esquecido é a ofensa – ou seja, aquilo que dói em mim, que me faz mal, a injúria, o dano e não o fato em si. E aprender com isto. Lethe e Alethéia, os pares que se contrapõe e se complementam. Esquecer o sofrimento, mas lembrar, manter a verdade, a consciência e aprender. Como a cicatriz de uma ferida muito grande, que pode nos falar dos cuidados que precisamos ter, mas que já não dói mais.
E perdoar… não ao outro – o que o outro fez é de responsabilidade dele, mas perdoar a vida vivida, fazer as pazes consigo mesmo e renascer para o novo.
Referências:
1. Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Al%C3%A9theia Acesso em 14/04/2016.
2. BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia grega. Vol. I. Petrópolis, RJ: Ed. Vozes, 1986.
3. BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia grega. Vol. II. Petrópolis, RJ: Ed. Vozes, 1987.
4. MACIEIRA, Rita de Cassia. O sentido da vida na experiência de morte. 3a. Ed. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2012.