Nos últimos dez anos, o Brasil tem registrado invernos com mais calor do que o habitual. Julho de 2022 foi o mais quente da história de que se tem registro, com temperatura média de 22,8 ºC, conforme dados do Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet), publicados pela Agência Brasil. A estação neste ano teve episódios denominados “veranicos”, uma combinação de calor, baixa umidade do ar e falta de chuvas, além das frentes frias já conhecidas para a época. Será que essa mudança no inverno pode afetar também a primavera?
Na mitologia grega, um mito que leva a olhar para as estações inverno e primavera é o de Deméter e Perséfone. Através dele, podemos considerar o ciclo da vida de uma maneira geral, em particular no ser humano, e a relação deste com a natureza. Em que medida o mito se torna uma interpelação atual às pessoas que, se separando da natureza e a agredindo por décadas, causam riscos à vida no planeta com o aquecimento global, do qual uma das características é exatamente essas mudanças no inverno?
O objetivo deste artigo é refletir simbolicamente sobre as consequências na primavera do enfraquecimento do inverno, traçando um paralelo com a curva da vida humana, na ótica da Psicologia Analítica e a partir do mito citado.
O inverno das mudanças climáticas e do mito
A despeito daqueles que negam o aquecimento global, estudos científicos de renomadas instituições por todo o mundo mostram que a temperatura subiu 1 grau Celsius no planeta nos últimos cem anos. Além da alta na temperatura global, escassez hídrica e aumento das secas; aquecimento dos oceanos, derretimento das geleiras e elevação do nível dos mares, ameaçando cidades litorâneas e a vida marinha, pela concentração do dióxido de carbono nas águas; eventos climáticos extremos comprometendo pesca, agricultura e pecuária, com a ameaça de escassez de alimentos e extinção de espécies são algumas das consequências das mudanças climáticas, atingindo a todos, sobretudo os mais pobres. Desde os anos 1980, dias com recorde máximo de temperatura são mais frequentes que aqueles com recorde mínimo, mesmo que continue havendo ondas de frio e nem por isso elas neguem o aquecimento global. Aliás, dias quentes nos polos podem inclusive fazer com que o ar frio se espalhe para regiões contíguas.
Uso em larga escala de combustíveis fósseis, na geração de energia, mineração e fabricação de produtos, emitindo gases de efeito estufa na atmosfera; emissão desses gases, sobretudo o dióxido de carbono, nos meios de transporte e produção de alimentos; desmatamento; excesso de consumo e geração de lixo são algumas das causas das mudanças climáticas. É o ser humano, com seu estilo de vida, gerando miséria, abismos sociais, catástrofes sem precedentes e comprometendo a vida no planeta.
Essa degradação vem de um humano que deixou de se ver como natureza e se desligou cada vez mais dela. É um olhar extremamente tecnicista que levou a manipular e submeter, e hoje o grito da terra clama por uma sabedoria que desaprendemos a buscar. Temos tantos estudos, estatísticas, monitoramento por satélite que contribuem para as explicações e previsões meteorológicas, mas isso não nos leva a agir; daí o descumprimento de tantos tratados, como o Acordo de Paris, de 2015. Necessitamos nos reconectar ao saber ancestral, e nisso a mitologia pode ajudar.
As narrativas míticas tanto estavam relacionadas com os pedidos dos suplicantes a respeito do clima como de um olhar para os fenômenos climáticos “por meio do mythos e não do logos” (ALVES; SOUZA, 2019, p. 729). Esse olhar simbólico conecta o sagrado ao cotidiano, o espírito à matéria, as explicações às súplicas, tirando do superficial e provocando um aprofundamento que toca a nossa humanidade e nos afeta existencialmente. Assim é que podemos avançar para uma real transformação. Segundo Carl Gustav Jung (2018b, §315), somente na vida subjetiva do indivíduo “acontecem em primeiro lugar as grandes transformações; todo o futuro e toda a história mundial brotam qual gigantesca soma dessas fontes ocultas do indivíduo.” E acrescenta algo ainda mais contundente: “Em nossa vida mais privada e mais subjetiva somos não apenas os objetos passivos mas os fautores de uma época. Nossa época somos nós!”
Os helenos, no culto de Deméter, uniam a súplica pela transformação do solo à da vida no sentido da fecundidade. Era um culto levado muito a sério por eles, de acordo com Junito de Souza Brandão (cf. 1986, p. 283). “Fundamentalmente agrário, o culto de Deméter está estreitamente vinculado ao ritmo das estações e ao ciclo da semeadura e colheita para produção do mais precioso dos cereais, o trigo.” (Ibidem, p. 286) Vários ritos eram ligados aos mistérios de Elêusis e se relacionavam à fecundidade (da terra e do útero) e aos vários trabalhos entre a semeadura e a colheita, como a lavra. Deusa da terra cultivada, ela teria ensinado o humano a cultivar os campos e era tida também como guardiã dos celeiros. Sempre ligada à sua filha, Core-Perséfone, às vezes a dupla era chamada de “As Deusas” (cf. ibidem, p. 290).
Deméter é, pois, a Terra-Mãe, a matriz universal e mais especificamente a mãe do grão, e sua filha Core o grão mesmo de trigo, alimento e semente, que, escondida por certo tempo no seio da Terra, dela novamente brota em novos rebentos, o que, em Elêusis, fará da espiga o símbolo da imortalidade. (Ibidem, p. 185)
A essência, pois, dos mistérios de Elêusis é exatamente a “morte simbólica”, projetada na morte e na ressurreição da semente. O suplicante pedia boas condições climáticas para uma bem-aventurada colheita e recebia a iluminação interior que tanto lhe servia para esta vida, cujo pilar era seu trabalho agrário, como para outra vida. As figuras de Demofonte, a quem a deusa frustradamente quis conceder a imortalidade, e Triptólemo, seu irmão mais velho, encarregado de difundir pelo mundo a cultura do trigo, nas quais não entraremos aqui, carregam esses aspectos.
Existem diferentes versões para o mito, mas seguindo o resumo de Junito de Souza Brandão (Ibidem, p. 290ss), que reuniu algumas variantes, Core, ou a Jovem, colhia flores, quando se aproximou de um narciso ou um lírio na beira de um abismo, colocado por Zeus, seu pai, para atraí-la, e foi raptada por Hades, que a conduziu para o mundo subterrâneo, de onde se tornou rainha, passando a se chamar Perséfone. A jovem deu um grito agudo, mas Deméter não chegou a tempo de vê-la ou entender o que acontecera. Por nove dias e nove noites, procurou desesperada a filha pelo mundo inteiro, sem beber, comer ou se banhar. No décimo dia Hécate revelou-lhe que a jovem fora raptada, mas ela não sabia por quem. Deméter foi a Elêusis sob a aparência de uma velha e sentou-se numa pedra, que passou a se chamar “Pedra sem Alegria”. Aí foi acolhida na casa do rei, onde ocorreram os eventos com Demofonte e Triptólemo, após os quais ordenou que lhe erguessem um grande templo e se recolheu em seu interior, consumada de saudade. Uma seca terrível abateu-se sobre a terra, provocada por ela. Zeus ordenou por mensageiros que a deusa voltasse ao Olimpo, mas ela disse que só o faria quando lhe devolvessem a filha, e só então permitiria que a vegetação crescesse sobre a terra. Zeus ordenou a Hades que devolvesse Perséfone, mas este, usando de astúcia, deu-lhe de comer uma romã, pois sabia que ninguém podia deixar “a outra vida” se lá tivesse tomado alimento. Chegou-se ao consenso de que Perséfone passaria quatro meses com o esposo e oito, com a mãe. “Reencontrada a filha, Deméter retornou ao Olimpo e a terra cobriu-se, instantaneamente, de verde.” (Ibidem, p. 292)
Pode-se ver aí a estação do inverno, na qual tudo aparentemente morre, sobretudo nos lugares de clima temperado, e o contraste com a explosão da vida na primavera, cuja fecundidade se estende às estações subsequentes. Curiosa é a proximidade das palavras inverno e inferno. Mesmo que o mundo subterrâneo grego não seja o inferno que temos em mente da tradição judaico-cristã, é um lugar terrível, odiado, cheio de podridão, mas também repleto de riquezas, “sendo estas mesmas a fonte profunda de toda produção vegetal.” (Ibidem, p. 311)
No inverno, com noites longas e dias curtos, temperaturas baixas e menor incidência de luz solar, as plantas (não só alguns animais) entram num metabolismo de hibernação (também essa palavra está ligada a inverno), o que é uma característica proposital na natureza, pois leva a poupar energia para voltar revigoradas, belas e fortes na primavera. É que o frio gera um estresse que obriga as plantas a passarem por uma adaptação, que promove a maturação de flores e frutos, incluindo a sua doçura, devido ao acúmulo de carboidrato.
Para sobreviver, as plantas se fortalecem. O inverno é importante para o seu desenvolvimento, assim como o inferno foi para a jovem virar mulher, Core se tornar Perséfone e voltar esplendorosa do submundo, para ficar com a mãe, mas não do mesmo jeito. Igualmente é importante o tempo de recolhimento, quando a energia psíquica se volta para o interior e são retomados alguns processos, não sem dor – parece mesmo uma descida ao inferno – para que se possa dar passos ou tomar uma direção mais fecunda na vida. Nesse “fundo de lodo”, expressão usada por Jung (2016, §63), “estão os germes de novas possibilidades de vida.” Quanta ligação entre o mito, a natureza e a vida humana! Qual a consequência, então, simbolicamente, da primavera sem inverno?
Imaturidade que compromete a vida
Na natureza, quando aquece de forma precoce (calor no inverno), são produzidas flores e frutos sem que a planta esteja madura o suficiente, ou seja, pronta para a reprodução. Isso prejudica a produtividade no campo, além de todas as já citadas consequências das mudanças climáticas.
A vida humana também tem estações, passa por fases de expansão e adaptação externa e fases introspectivas, de adaptação ao mundo interior, como dito anteriormente. E esse mundo interior, inconsciente, assim como o mundo subterrâneo do mito, é de uma riqueza imensa, mas também horripilante e amedrontador, cheio de imagens e conteúdos com os quais não é fácil se confrontar. Como diz Jung exatamente no texto intitulado “Aspectos psicológicos da Core” (2018c, §310), as figuras psíquicas “são bipolares e oscilam entre o seu significado positivo e negativo.” Descer ao inferno supõe dispor-se a encontrar em parte aquele aspecto interior do qual se passa a vida fugindo, negando ou projetando em outras pessoas. E estar disposto também a sacrificar algo do que se reconhece como “eu” ou que até então fez sentido para o “eu”, mas que, nesse processo de ampliação da consciência no confronto com o inconsciente, passa a não caber mais. Curioso que, segundo Jung (Ibidem, §355), o sacrifício faz parte da figura inconsciente que aparece na dupla mãe-jovem, assim como o mito Deméter-Core. “Essas figuras de meninas estão sempre consagradas à morte, uma vez que o seu domínio exclusivo sobre a psique feminina impede o processo de individuação, isto é, a maturação da personalidade.” E esse é o sentido da desconfortável descida, não apenas para as mulheres, com as quais esse mito relaciona-se mais diretamente, mas também aos homens, para os quais a menina corresponde à anima, ao seu contraponto feminino, nessa forma repleto de ilusões.
Além dessas “estações” ou ciclos que ocorrem com certa frequência, mesmo que sem uma regularidade determinada como na natureza, a vida humana como um todo pode ser comparada, como o fez Jung, a uma curva como a trajetória do Sol. “Há alguma coisa semelhante ao Sol dentro de nós, e falar em manhã de primavera, tarde de outono da vida não é mero palavrório sentimental, mas expressão de verdades psicológicas.” (JUNG, 2018a, §780)
Ele explica que essa trajetória poderia ser dividida em quatro partes, infância, juventude e início de vida adulta formando a primeira metade da vida, e vida adulta a partir de cerca de 40 anos com início do que hoje chamamos de terceira idade no terceiro quadrante, estando o que Jung chamou de “extrema velhice” no quarto, ambos correspondendo à segunda metade da vida. Seguindo o olhar para as estações, podemos até chamar a primeira metade de primavera e verão, e a segunda metade, de outono e inverno. A primeira caminha para o zênite do Sol, o meio-dia, a expansão na adaptação sobretudo externa, com a realização profissional e das relações; e a segunda, para o declínio, a morte, na adaptação sobretudo interna, na escuta e resposta ao chamado da alma, para a qual a espiritualidade é o principal guia. Ela leva a pensar na morte como uma transição para uma vida que vai além, o que contribui para a saúde psíquica, pois “um objetivo supramundano […] permite ao homem mortal viver a segunda metade da vida com o mesmo empenho que viveu a primeira.” (Ibidem, §790)
Não cabe neste artigo aprofundar a temática das etapas da vida humana, mas é importante perceber como se entregar intensamente ao fluxo natural da vida, inclusive ao inverno, na esperança de um renascimento, da possibilidade de uma nova forma de primavera, tem tudo a ver com o saber ancestral do mito que se conecta à necessidade profunda da alma.
Há também um pensamento nas imagens primordiais, nos símbolos, que são mais antigos do que o homem histórico e nascidos com ele desde os tempos mais antigos e, eternamente vivos, sobrevivem a todas as gerações e constituem os fundamentos da nossa alma. Só é possível viver a vida em plenitude quando estamos em harmonia com estes símbolos, e voltar a eles é sabedoria. […] E um destes pensamentos primordiais é a ideia de uma vida depois da morte. (Ibidem, §794)
O processo de individuação, amadurecimento humano voltado a se tornar cada vez mais quem se é, leva não ao egoísmo, mas à comunhão com os demais e com o cosmos, com toda a vida. Tão em sintonia com o mito de Deméter e Perséfone, no qual vemos a relação intrínseca entre a vida humana, divina e a natureza, matéria e espírito totalmente integrados, espiritualidade da natureza.
Deméter e Core, mãe e filha, […] juntam o mais velho e o mais novo, o mais forte e o mais fraco e ampliam assim a consciência individual estreita, limitada e presa a tempo e espaço rumo a um pressentimento de uma personalidade maior e mais abrangente. (JUNG, 2018c, §316)
Ao contrário, o mesmo humano moderno, que numa atitude infantil de buscar ser eternamente jovem e não se entregar à plenitude da vida em cada uma de suas estações, é aquele que vem degradando a natureza há anos. A primavera sem inverno, ou imaginar que se possa subtrair uma estação, tanto na natureza como em nós, na verdade não é possível – a imaturidade de seus frutos acaba por comprometer a vida.
Que ouçamos o grito da terra para nos reconectarmos à natureza e ao nosso ser-natureza, entregando-nos ao processo de amadurecimento, mesmo com a dureza do inv(f)erno, que permite a vida realmente florescer!
Tania Pulier — analista em formação/IJEP
Lilian Wurzba — analista didata/IJEP
Referências:
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ALVES, Lion Granier; SOUZA, Sergio Rodrigues de. A representação do mito de Perséfone mencionado na Teogonia Hesiódica e descrito no hino Homérico a Deméter na Ática Arcaica. Religare, v.16, n.2, dez. 2019, p. 714-734.
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