Criando intimidade com a sombra. Reflexões sobre como a persona moldada para se adequar ao coletivo pode se distanciar do verdadeiro eu.
Dentro de nós, existe uma parte que não gostamos de olhar, que negamos, que contradiz o que gostaríamos de reconhecer em nós. Esta parte é chamada de sombra. Muitas vezes ela é um problema de ordem moral, pois vai contra o ego e a persona. Ou seja, vai contra o modo que conseguimos nos enxergar. Segundo Jung “nesta tomada de consciência da sombra trata-se de reconhecer os aspectos obscuros da personalidade, tais como existem na realidade. Este ato é a base indispensável para qualquer tipo de autoconhecimento” (Jung, 2012, p19).
Imaginar que também somos o que não queremos, que aquilo que repudiamos no outro também pode pertencer a nós, que podemos fazer aquilo que não gostaríamos de assumir nem para nós mesmos, é assustador. Mas a verdade é que nós somos imperfeitos e conhecer esse estranho que habita em nós é essencial para a busca da nossa totalidade.
Sabemos que a sombra não é apenas aquilo que desconheço totalmente em mim, mas também, aquilo que minha consciência considerou contrária à atitude ideal.
Como o ego é de natureza unilateral, qualquer coisa que se diferencie dele – assuntos negligenciados, inaceitáveis, reprimidos – vai se acumulando no inconsciente e se torna parte de uma personalidade inferior, ou seja, uma sombra pessoal.
A sombra é parte da psique inconsciente que interage com a consciência. Traz forte carga de afeto para ações e reações e que nos provoca desconfortos sempre que entramos em contato com ela. Esta sensação se dá porque lapidamos nossa personalidade e nosso modo de ver o mundo de forma que esses conteúdos fiquem reprimidos e distantes de nós. Ressaltando esta ideia, encontramos no livro ‘Ao encontro da Sombra’ um trecho que explica esta dinâmica:
“Por ser contrária à atitude consciente que escolhemos, não permitimos que a sombra encontre expressão na nossa vida; assim ela se organiza em uma personalidade relativamente autônoma no inconsciente, onde fica protegida e oculta” (Zweig, et al., 2012, p.28).
Antes de prosseguirmos, gostaria de complementar esta parte conceitual de sombra com dois recortes feitos por Edward Whitmont, apresentados no capítulo “A evolução da sombra”:
“O termo sombra refere-se àquela parte da personalidade que foi reprimida em benefício do ego ideal. (…) Assim como as figuras oníricas ou fantasias, a sombra representa o inconsciente pessoal. Ela é como que um composto das couraças pessoais dos nossos complexos e, portanto, o portal de acesso a todas as experiências transpessoais mais profundas.” (Zweig, et al., 2012, p.36)
Whitmont pontua a tendência arquetípica de projetarmos os conteúdos sombrios nos outros, replicando a dinâmica do bode expiatório. Como se todo o mal ou erro estivesse presente apenas no mundo exterior do outro e este deveria ser eliminado.
“A sombra é a experiência arquetípica do ‘outro’, aquele que, por ser-nos estranho, é sempre suspeito. A sombra é o impulso arquetípico de buscar o bode expiatório, de buscar alguém para censurar e atacar a fim de nos vingarmos e nos justificarmos; ela é a experiência arquetípica do inimigo, a experiência da culpabilidade que sempre recai sobre o outro, pois estamos sob a ilusão de que conhecemos a nós mesmos e já trabalhamos adequadamente nossos próprios problemas. Em outras palavras, na medida em que é preciso que eu seja bom e justo, ele, ela ou eles tornam-se os receptáculos de todo o mal que deixo de reconhecer dentro de mim mesmo”. (Zweig, et al., 2012, p.39)
O incômodo da sombra
Apesar de a sombra conter pontos positivos e negativos em sua essência, geralmente seus conteúdos nos incomodam. Justamente porque os achamos inadequados e prejudiciais à lapidação da nossa personalidade. Na tentativa de compreender o porquê tais assuntos nos incomodam, costumamos tomar uma certa distância. Olhando para a característica atuante no outro e, só depois disto, abrimo-nos para a possibilidade de nos questionar sobre o motivo daquilo nos afetar tanto. Dificilmente aceitamos com facilidade que aquilo pode ser também uma condição nossa.
Faz parte do processo de desenvolvimento da personalidade a busca por pertencimento e aprovação do outro. Ao mesmo tempo que vamos nos identificando como indivíduo, começamos a lapidar nossas características de forma a potencializar aquilo que nos agrada e que também agrade o outro, enquanto vamos encontrando meios de esconder ou transformar os aspectos que achamos feios e inapropriados. Desta forma, conseguimos também encontrar recursos de adaptação às diversas situações, dando vida às versões de nós mesmos de acordo com o que nos é exigido.
Este recurso de adaptação do ego para o mundo exterior é chamado de persona – a qual pode ser positiva ou negativa. É a máscara que usamos para nos relacionarmos com os outros, para confrontar o mundo e as pessoas.
“A persona é a primeira parte de nós que as outras pessoas veem, e a nossa parte que queremos que elas vejam” (Sanford, 1988, p.88)
Por conceito, a persona é positiva, pois nos ajuda a adequar ao coletivo. Contudo, ela pode se tornar negativa quando esta adaptação se transforma em uma mudança quase que total do que somos e como nos reconhecemos, visando uma adequação total com o coletivo mesmo que este modo não reflita a nossa própria essência. Podemos assumir que quando isso acontece, essa versão transformada se distancia de quem ela é de verdade, ou seja, do Self e da identificação egóica. O risco do indivíduo não saber mais diferenciar quem ele é da pessoa que ele quer parecer se torna cada vez mais concreto.
Por mais que façamos manobras para nos tornar melhores, ‘limpando’ tudo que julgamos como ruim, não somos blindados do contato com a sombra. Ela irá aparecer no nosso cotidiano, assombrando nossa persona, tirando-nos da nossa zona de conforto. Pela própria definição do termo, todo receio extremo, todo incomodo que nos afeta além do que podemos lidar faz parte da nossa sombra. Tudo o que nos impacta fortemente e não é considerado, também alimenta nossa sombra.
Persona x Anima/Animus – Sombra x Ego
Antes de prosseguir, é importante ressaltar que a persona não faz polaridade com a sombra (como muitos confundem conceitualmente). Persona é uma estrutura psíquica que faz oposição à anima/animus, uma vez que ambos são recursos relacionais. Enquanto a persona se relaciona com o mundo exterior, anima/animus são recursos de relação com o mundo interior.
A sombra, por sua vez, se apresenta em oposição ao ego, conforme explicado no início deste artigo. Não vou me aprofundar nesta questão pois isso seria tema para um próximo artigo, mas essa explicação se faz necessária para entendermos o recorte feito neste texto.
Não importa o quanto nossa persona esteja trabalhada ou o quanto adaptada ao coletivo ela esteja. O próprio meio, e não somente nossas questões pessoais, vão continuar nos proporcionando meios de contato com esses conteúdos sombrios a fim de reconhecermos o que tanto nos afeta e de qual forma podemos lidar com eles. Porém, é nítido que quando isso acontece, buscamos a saída que parece ser mais garantida: nos blindamos desses conteúdos devolvendo para o outro a responsabilidade de transformação do conteúdo.
Neste cenário, como proteção, buscamos recursos para fortalecer nossa persona, melhorando aquilo que achamos que contrapõem o que nos denuncia, nos sentindo superior ao que nos incomoda. Encontramos ferramentas que eliminam o que não deve vir à tona, fazemos tudo como forma de controlar a ação desses conteúdos em nossas vidas.
Achamos que quanto mais ajustados à polaridade contrária da sombra, mais estaremos seguros. Contudo, acontece justamente o oposto.
E é neste momento que o ‘ponto cego’ aparece. Se tento compreender meus conteúdos sombrios e adequá-los ao manejo da persona posso, como efeito contrário, alimentá-la, pois vou ‘resolver’ essa falta fortalecendo uma conduta que irá me afastar ainda mais dela; que vai provar para mim e para os outros que aquilo não me pertence.
Para lidar com a sombra não basta ter conhecimento sobre ela, é preciso se apropriar da questão e entender sua real motivação de existir.
“A integração da sombra sempre coincide a dissolução da falsa persona. A pessoa torna-se muito mais realista a respeito de si mesma; ver a verdade sobre a nossa própria natureza sempre tem efeitos muito salutares. (…) Parar de mentir para nós mesmos a respeito de nós mesmos, essa é a maior proteção que podemos ter contra o mal”. (Sanford, p. 47)
Agora que chegamos ao ponto de entender que mesmo diante de um trabalho de adaptação ao meio exterior, nossa persona não dará conta de esconder ou de se blindar diante da sombra, quero voltar um pouco no início deste artigo. Se toda sombra, antes de ser jogada ao inconsciente passa pelo filtro do ego ideal, não seria uma alternativa para lidar com esses conteúdos, voltar para nossa essência e investigar qual foi a motivação inicial do ego ter desconsiderado a integração desta característica?
A sombra nunca é formada de modo aleatório.
Por isso falamos que a sombra também guarda um potencial enorme de transformação em nossas vidas. Se nós queremos nos conhecer verdadeiramente, temos que ir em busca da nossa totalidade, reconhecendo os aspectos de luz e sombra. Logo, sabendo mais sobre as nossas sombras, conseguimos entender também quais partes a consciência de cada um rejeita, quais partes ela não quer lidar e o porquê o ego decidiu que aqueles pontos deveriam ser filtrados da consciência.
Não paramos para pensar que em muitos casos acabamos vivendo características unilaterais só para não deixar esta sombra ter expressão, mas ela sempre dará um jeito de se apresentar para nós – seja através do comportamento do outro, seja através daquilo que nos afeta. Entrar em contato com a sombra não é ter que transformar todos os conteúdos; algumas características serão trabalhadas, outras deverão ser apenas suportadas. Mas, a partir do momento que nós nos apropriamos do que até então desconhecemos, deixamos de ficar totalmente vulneráveis aos seus conteúdos, pois saberemos também quais são nossos limites, o que podemos fazer e, assim, criamos oportunidades de nos conhecermos dentro da nossa unicidade e inteireza.
Tiramos do outro a responsabilidade de se tornar impecável dentro do nosso julgamento, permitimos que o coletivo e a nós mesmos sejam diferentes, as vezes conflitantes, mas dentro da verdade de cada um. Isto é parte da cura dos relacionamentos.
Tentar entender a sombra pela persona pode ser uma manobra falsa que vai nos colocar apenas como superior a esses conteúdos.
Se, depois deste primeiro reconhecimento, pararmos para investigar em qual momento da vida nosso ego ideal – parafraseando Whitmont – fantasiou que seriamos melhores se não tivéssemos tais características; se o julgamento como errado e feio veio de nós mesmos ou se nos foi ensinado pelo núcleo mais próximo, talvez, de fato, conseguiremos entender o sentido desta sombra ter se tornado sombra e reavaliar, se nas condições atuais, tais características devem ainda ser julgadas como inapropriadas por nós ou se já estamos prontos para lapidá-las ao nosso favor.
Quando mudamos a pergunta “o que eu tenho a ver com ela?” por “em qual momento eu a considerei como conflitante a mim?” conseguimos compreender o sentido desses conteúdos nos perturbar e decidimos como reagir à eles. Enquanto a sombra é inconsciente, nossa reação vem proporcional ao desconhecido que se tornou em mim. Quando trazemos para perto da consciência, tiramos um pouco da carga afetiva desta energia autônoma e buscamos recursos para lidar com ela ou transformá-la.
Assim, o que é nosso trabalhará ao nosso favor, mesmo que a princípio se pareça negativo. Este é o caminho para a nossa totalidade.
Marcella Helena Ferreira – Analista em Formação IJEP
Cristina Guarnieri – Analista Didata IJEP
Referências Bibliográficas:
JUNG, Carl Gustav. 2012a. Aion – Estudo sobre o simbolismo do si-mesmo. 8°. Petrópolis: Vozes, 2012a.Vol.9/2
__. 2012b. O Eu e o Inconsciente. 24°. Petrópolis: Vozes, 2012b.Vol.7/2
ZWEIG, Connie e ABRAMS, Jeremiah. 1994. Ao encontro da sombra. 1°. São Paulo: Cultrix, 1994.
SANFORD, John A. 1998. Mal o lado sombrio da realidade. 1°. São Paulo: Paulus, 1988.
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