Desde o início da quarentena, imposta pela chegada ao Brasil do novo Covid-19, muitas famílias passaram a viver uma situação, na qual suas casas tornaram-se também o local do exercício profissional. Além disso, o isolamento social mudou a rotina das escolas e as aulas para todas as idades passaram a acontecer, também, em casa, de forma online. As creches fecharam e as mães e pais tiveram que cuidar de seus filhos ao mesmo tempo em que desenvolviam suas atividades profissionais.
Este cenário nos impôs que todos os papeis passassem a ser vividos em um único espaço físico, sem um tempo necessário para que uma transição psíquica entre um e outro ocorresse, o que normalmente acontecia antes da quarentena, quando havia o deslocamento das pessoas de um local para o outro. Sair do trabalho ou da escola e ir para casa ou ao encontro dos amigos permitia o deslocamento físico e ao mesmo tempo psíquico do ambiente profissional/social para o familiar/pessoal.
A economia obtida no longo tempo de locomoção devido ao trânsito caótico das grandes cidades foi uma consequência positiva neste novo cenário, mas não teve um efeito de melhora na qualidade de vida das pessoas, o que poderia ser esperado já que não era mais necessário o deslocamento entre casa e trabalho. Isso ocorreu pelo volume adicional de tarefas que foram impostas na quarentena para um grupo de pessoas que mantiveram suas atividades profissionais inalteradas, atuando de forma virtual, com filhos em idade escolar ou a necessidade de cuidar de parentes que se encontravam no grupo de risco. Acompanhar as aulas das crianças, cuidar da casa ou dos pais idosos, preparar as refeições mantendo um ritmo profissional intenso, aliado à pluralidade de preocupações desta nova realidade, tais como piora no cenário econômico, aumento de desemprego, o medo de contaminação pelo vírus, além do excesso e divergência de informações sobre a doença, que transitavam pelas mídias, trouxe para muitas pessoas, e em especial para as mulheres, uma sensação que pode ser descrita, de forma metafórica, como se elas estivessem carregando o mundo em suas costas. Destaco as mulheres em função do machismo estrutural que marca as relações de gênero em nosso país, onde as tarefas do cuidar, seja da casa ou da família, ainda são consideradas como essencialmente femininas, o que faz com que a imensa maioria das mulheres se sintam desconfortáveis em propor a participação equitativa dos companheiros para realização de tais tarefas, ou mesmo, que tanto elas como eles sequer tenham consciência de que isso não deve ser confundido com auxílio.
Esta sensação, que metaforicamente se traduz como a de carregar um peso excessivo nas costas, não é um fenômeno desconhecido, já foi abordado e discutido por diversos autores, como por Botsaris (2003), no livro “Complexo de Atlas”. Da constelação desse complexo advém uma sintomatologia relacionada à sobrecarga excessiva, decorrente do excesso de tarefas simultâneas e de preocupações que podem ser relacionadas ao estresse.
Recorrendo à mitologia para entender o que mais a metáfora do “carregar o peso do mundo” pode nos dizer, encontro na história de Atlas uma possibilidade de esclarecimento, que permite entender melhor o que este sintoma pode nos trazer de informação sobre o que, psiquicamente, está ocorrendo com este grupo de pessoas a que me referi anteriormente.
Na mitologia, Atlas era filho de Japeto e Climene. Era um dos titãs que representavam as forças do caos e da desordem e que atacaram o Monte Olimpo, combatendo Zeus e seus aliados, estes representavam energias do espírito, da ordem e do Cosmos. Ao final, Zeus saiu vencedor desta batalha e lançou seus inimigos, que eram tidos como escravos da matéria e dos sentidos, ao Tártaro. Para Atlas, porém, o castigo imposto foi o de sustentar para sempre em seus ombros o peso dos céus. Após a punição, ele passou a morar no país das Hespérides, suas filhas, que eram as três ninfas do Poente (BRANDÃO, 2014, p. 95 e p.310).
O mito de Atlas pode ser tomado como uma metáfora para o sofrimento psíquico causado pelo excesso de ocupação e preocupação, onde uma carga excessiva é metaforicamente levada nos ombros. É como se não houvesse permissão ou possibilidade para experimentar o descanso, como se não houvesse um intervalo para relaxar, para vivenciar momentos de prazer. Para aqueles que se encontram identificados com o mito de Atlas, a fantasia de sofrimento é uma constante sob este peso excessivo. Para Atlas, carregar a abóboda terrestre foi um castigo, uma punição imposta e como tal não trouxe a possibilidade de um momento de descanso sequer.
C. G. Jung explica que o não reconhecimento dos próprios limites pelos indivíduos poderia ser descrito como um estado de inflação psíquica do ego, relacionando tal estado com uma espécie de “semelhança a Deus”, expressão cunhada por Schopenhauer:
Esses dois tipos humanos são, ao mesmo tempo, grandes e pequenos em demasia; sua medida média individual, que nunca é muito segura, tende a tornar-se cada vez mais vacilante. Parece grotesco descrever tais estados como “semelhantes a Deus”. Mas como ambos, a seu modo, ultrapassam as proporções humanas, possuem algo de “sobre-humano”, podendo ser expressos figuradamente como “semelhantes a Deus”. Se quisermos evitar o emprego desta metáfora, poderíamos falar de inflação psíquica. Tal definição me parece correta, pois o estado a que nos referimos envolve uma “expansão da personalidade” além dos limites individuais ou, em outras palavras, uma presunção. JUNG (2008, p.28)
Atlas era um imortal. Podemos pensar, a partir da leitura do mito, que levar o mundo nas costas não é para qualquer ser humano, apenas um Titã pode dar conta desta tarefa e mesmo assim por um tempo limitado. Ser tomado pelo complexo de Atlas pode ser entendido como uma hybris ou alienação delirante, pelo fato de o indivíduo acreditar que é possível dar conta de toda e qualquer tarefa que apareça, independentemente das condições objetivas, quando na verdade ele se encontra psicológica e metaforicamente tomado por uma atitude titânica, que fala simbolicamente de um excesso de controle e de responsabilidades. Pode, também, falar de uma vaidade excessiva que leva o indivíduo à incapacidade de pedir ajuda ou dividir o fardo com o outro, ou seja, uma presunção que o faz sentir como se fosse um deus, baseado numa fantasia narcísica onipotente que pode lhe ser inconsciente, mas não menos prejudicial por isso.
Podemos traçar um paralelo entre a pandemia do Covid-19 com o castigo eterno imposto à Atlas por Zeus. Já estamos há nove meses em isolamento social e, até o momento que escrevo este artigo, o isolamento tem sido a melhor forma de prevenção contra o vírus, pois as vacinas ainda estão em fase de testes e de aprovação. Não há ainda uma data no horizonte de quando a pandemia irá acabar. Em alguns lugares do mundo onde houve o relaxamento do isolamento, uma segunda onda de infecção começou a aparecer, inclusive em nosso país, mostrando que, enquanto não houver uma vacina ou tratamento adequado, o isolamento ainda é necessário. A falta de um prazo definido em que as medidas de isolamento deixarão de ser necessárias, as mortes que continuam a ocorrer diariamente, o aumento dos casos de infecção na Europa, Estados Unidos e no Brasil, tudo isso nos passa a ideia de uma situação extremamente angustiante e estressante que parece não ter fim, como se fosse um castigo eterno. A falta de um horizonte para a retomada das atividades sociais sem a necessidade do isolamento, por si só, já aumenta a ansiedade em todos nós.
Falando apenas do grupo de profissionais sobre o qual mencionei no início deste artigo, a pressão psicológica tem se intensificado expressivamente, levando ao aumento no número de relatos de sintomas de transtorno de ansiedade entre estes profissionais. O jornal O Estado de São Paulo publicou em 10 de maio de 2020 o resultado de uma pesquisa realizada pela Startup Pulses, empresa especializada em pesquisas organizacionais (DAYRELL, Marina, 10/05/2020, 06h:05). A pesquisa foi realizada com 89 mil funcionários de 261 empresas e apontou que cerca de 54% dos entrevistados relataram níveis de ansiedade média e alta durante a pandemia. Segundo a pesquisa, entre os entrevistados, as mulheres apresentaram maior nível de ansiedade. Estes números, que se referem aos meses iniciais da pandemia, demostram o sofrimento psicológico a que estes profissionais estavam submetidos e me levam a pensar em como a continuidade do trabalho em home office nessas mesmas condições, ou seja, com a continuidade do isolamento social, tende a agravar estes sintomas ao longo do tempo. O aumento da ansiedade pode estar relacionado, em algum grau, com o fato destes profissionais estarem sendo tomados pelo mito de Atlas, em uma ilusão de normalidade, muitas vezes imposta pelas empresas (ou pelo governo atual de nosso país), na qual se sentem impelidos a continuar dando conta de seus afazeres pessoais e profissionais, apesar do cenário adverso imposto pela pandemia do COVID-19.
Para Atlas, o único momento em que houve um alívio, onde pôde entregar a outro sua carga, foi quando Hércules o procurou para ajudá-lo a colher os pomos de ouro do Jardim de Hera, em um de seus doze trabalhos. Após colher os frutos e entregá-los à Hercules, Atlas relutou, mas reassumiu seu posto e sua carga (BULFINCH, 2002, p. 181), como se estive resignado em carregar seu fardo para sempre. Torço fervorosamente para que não seja necessário acontecer isso conosco, e que possamos sair mais fortalecidos ao lidarmos com este, que já é possivelmente um dos desafios mais dramáticos deste século.
Leila Cristina Montanha – Analista Junguiana em Formação/IJEP
leilacm@uol.com.br
Referências:
BOTSARI, Alex O Complexo de Atlas, ed. Objetiva, 2003
BRANDÃO, Junito de Souza Mitologia Grega, 26ª Vol I. Petrópolis: Vozes, 2015
BRANDÃO, Junito de Souza Mitologia Grega, 26ª Vol III. Petrópolis: Vozes, 2015
BULFINCH, Thomas. O Livro de Ouro da Mitologia. 26ª ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002
DAYRELL, Marina. Saúde mental de profissionais é posta em evidência com pandemia. O Estado de São Paulo, São Paulo, 10 de maio de 2020 | 06h05. Disponível em https://economia.estadao.com.br/blogs/radar-do-emprego/saude-mental-de-profissionais-e-posta-em-evidencia-com-pandemia/.
JUNG, Carl Gustav. O eu e o Inconsciente. 21ª ed. Petrópolis: Ed. Vozes, 2008
JUNG, Carl Gustav. Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo. 6ª ed. Petrópolis: Vozes, 2008