“Cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é”. Este é o segundo verso da canção Dom de iludir, de Caetano Veloso. Em contraponto ao título, carrega uma grande verdade: querendo ou não, cada pessoa sente, ao longo da vida, a dor e a delícia do que é e de assim ser. Neste sentido do saber — provar o sabor pela experiência —, é certo que “cada um sabe”. Tomar consciência do que se é, no entanto, envolve um processo árduo e difícil do qual muitos — talvez a maioria — fogem, acabando de fato por ficar com ilusões de si mesmos.
O saber com sabor que a canção evoca, gerado pela ampliação de consciência, é próprio do programa da segunda metade da vida, na linguagem da Psicologia Analítica de Carl Gustav Jung. O objetivo deste artigo é discorrer um pouco sobre o caminho que leva a crescer em sabedoria, tornando-se quem de fato se é.
A vida humana, na concepção de Jung, é como a trajetória do sol.
A primeira metade, da qual fazem parte a infância, a adolescência e juventude e o início da idade adulta, caracteriza-se pelo desenvolvimento e estruturação do ego, que precisa chegar à sua autonomia. Para isso é suposta sobretudo a adaptação externa, em resposta às exigências da vida e à necessidade de ampliar seus horizontes para fincar raízes no mundo, simbolizada principalmente pela saída da casa dos pais.
Tem importância crucial aqui os papéis que se exerce na sociedade, cuja escolha pode até ter um fundo individual, mas o conteúdo é geral e coletivo. Jung dá a eles o nome de personas, remetendo às máscaras usadas pelos atores no teatro grego. Trata-se de “um recorte mais ou menos arbitrário e acidental da psique coletiva, […] máscara que aparenta uma individualidade […], quando, na realidade, não passa de um papel” (JUNG, 2018b, §246, grifos do autor). Apesar de se tentar convencer aos outros e a si mesmo de que se trata de uma individualidade, representa algo de secundário em relação a ela. Pouco da essência aparece aqui, sendo mais um necessário “compromisso entre o indivíduo e a sociedade”, ainda que a verdadeira individualidade, que Jung chama de “si-mesmo inconsciente”, esteja sempre presente e se faça “sentir de forma indireta.” (Ibid., §247)
Já a segunda metade da vida, formada pela fase adulta a partir mais ou menos dos 40 anos, isto é, a maturidade, e a velhice, caminha para o declínio da vida e o horizonte da morte, o que não necessariamente significa decadência e menos-valia.
Ao contrário, o grande motor é a pergunta pelo sentido e significado de tudo o que foi desenvolvido até aqui. Entra-se sobretudo na adaptação interna, com a necessidade de escutar o chamado da alma para trilhar o caminho de descobrir e se tornar cada vez mais quem de fato se é, resgatando o que ficou para trás e deixando emergir muitos dos conteúdos que foram renegados por sua incompatibilidade com as personas. A eles Jung (2016, §63) chama de sombra, na qual se pode “vislumbrar não só restos incompatíveis — e por isso rejeitados — da vida cotidiana, ou tendências condenáveis do homem animalesco primitivo, mas […] também os germes de novas possibilidades de vida”. Para esta integração mais ampla e profunda, é preciso estar à escuta do Self, ao mesmo tempo centro e totalidade da vida psíquica.
Jung (2018a, §784), no entanto, lamenta o despreparo com o qual a maioria das pessoas atravessa a metanoia, a transformação da primeira para a segunda metade da vida:
O pior é que pessoas inteligentes e cultas vivem sua vida sem conhecerem a possibilidade de tais mudanças. Entram inteiramente despreparadas na segunda metade de suas vidas. […] E, pior do que isto, damos este passo, sob a falsa suposição de que nossas verdades e nossos ideais continuarão como dantes. Não podemos viver a tarde de nossas vidas segundo o programa da manhã, porque aquilo que era muito na manhã, será pouco na tarde, e o que era verdadeiro na manhã, será falso no entardecer.
Ao lado do despreparo, de não ser comum tratar dessas transformações e educar para elas, há também uma negação, por medo, da mudança que levará cada vez mais à individualidade.
Afinal, os papéis sociais não deixam de ser um refúgio na multidão. Corre-se o risco, então, de se enrijecer nas personas, e estas se tornarem, mais do que máscaras que se pode colocar e tirar, verdadeiras armaduras, das quais não se sai mais, como é retratado no conto O cavaleiro preso na armadura, de Robert Fisher (1987).
O cavaleiro “pensava ser bondoso, gentil e amoroso. Ele fazia tudo que um cavaleiro bondoso, gentil e amoroso faz.” (p. 3) Na primeira frase, o conto já mostra como ele estava tomado pela consciência coletiva, cujos conteúdos “se apresentam como verdades universalmente aceitas” (JUNG, 2018a, §423). Vive, assim, em uma “identificação incondicional com uma ‘verdade’ necessariamente unilateral” (Ibid., §425). O cavaleiro tem tanta certeza de saber quem é, e de que a armadura o representa, que não percebe que ela na verdade esconde seu verdadeiro eu, impedindo-o “de sentir muita coisa” (FISHER, 1987, p. 7), até que tenta tirá-la e já não consegue.
O tempo atual também carrega muitas verdades sobre o que se deve ser. Verdades essas acreditadas e buscadas pela maioria: um indivíduo alegre, autodeterminado, empoderado, fitness, rico, conectado, com muitos seguidores, influenciador, que esbanja bens, viagens e procedimentos estéticos. Mas quem é esta pessoa? Qual a sua singularidade?
A trilha do saber com sabor
Sair da armadura supõe para o cavaleiro um longo caminho e muita ajuda para trilhá-lo. A psicoterapia significa o acompanhamento nesta direção, visando apoiar no processo de descobrir e se tornar quem se é, chamado na Psicologia Analítica de individuação; caminho de toda a vida, mas fundamental na segunda metade dela.
De fato, segundo Jung (2020, §289), determinação, inteireza e maturidade são os três fatores importantes para o adulto atingir a personalidade, “a realização máxima da índole inata e específica de um ser vivo em particular”. Isso seria, portanto, “o melhor desenvolvimento possível da totalidade de um indivíduo determinado”, para o que se requer “a vida inteira de uma pessoa, em todos os seus aspectos biológicos, sociais e psíquicos.” É a trilha da busca de sentido e significado, para a qual vale a pena se entregar; caminho de sabedoria, do saber com sabor.
Para isso é preciso, no ensinamento de Jung, “fidelidade à sua própria lei” (Ibid., §295, grifos do autor).
A palavra que melhor a representa é pistis, “lealdade repleta de confiança”. Para ser fiel à própria lei torna-se necessário confiar nela, “perseverar com lealdade e esperar com confiança; enfim, é a mesma atitude que uma pessoa religiosa deve ter para com Deus” (Ibid., §296).
A infidelidade à lei interior, ao contrário, leva à perda do sentido da sua própria vida. Jung acredita, no entanto, que a maioria das pessoas não faz a pergunta “fatal” por este sentido, o que considera até uma proteção e indulgência da natureza (Cf. Ibid., §314).
A voz interior chega a ser chamada por ele de demônio, tal risco representa o caminho de formação da personalidade. Essa voz significa “simultaneamente o perigo máximo e o auxílio indispensável” (Ibid., §321). Isso acontece porque geralmente nela se encontram misturados “o mais baixo e o mais alto, o melhor e o pior, o mais verdadeiro e o mais fictício, o que produz um abismo de confusão, ilusão e desespero” (Ibid., §319). Para que escolher dar ouvidos a ela, então? O próprio Jung, que alerta para os perigos, oferece o porquê. É que “a voz interior é a voz de uma vida mais plena e de uma consciência mais ampla e abrangente” (Ibid., §318, grifo do autor).
O cavaleiro preso na armadura entrou nesta trilha não por vontade própria, mas pelo ultimato que recebeu da esposa de sair da armadura, o que tentou inutilmente sozinho. Entrou na floresta à procura do mago Merlin, sobre quem lhe foi dito que era alguém que poderia lhe ajudar a “trazer seu verdadeiro eu para diante do olhar” (FISHER, 1987, p. 9). Para conseguir sair da armadura, Merlin alertou-o sobre a importância do processo: “faz muito tempo que você a usa. Não dá para se livrar dela da noite para o dia” (Ibid., p. 14). Mais uma vez, a semelhança com a psicoterapia e o seu tempo não são mera coincidência.
Não daria para detalhar aqui todo o caminho que foi necessário ao cavaleiro trilhar no processo de procura de seu verdadeiro eu.
Em breves palavras, no entanto, ele teve que percorrer primeiro o Caminho da Verdade, tomando consciência de seus passos dentro da armadura e o efeito deles em si, nos demais e no mundo ao seu redor. Nele, teve que adentrar o Castelo do Silêncio, ficando tempo suficiente em contato com a própria solidão até ouvir a voz do seu verdadeiro eu; o Castelo do Conhecimento, crescendo na consciência de si, dos aspectos que escondia por medo de não ser amado, e do chamado da alma, a “ambição do coração” (p. 50), servindo à qual se beneficia a todos; e o Castelo da Vontade e da Ousadia, no qual deveria enfrentar “o Dragão do Medo e da Dúvida” (p. 54).
Chegando ao Vértice da Verdade, o cavaleiro encontrou a seguinte inscrição em uma rocha: “não posso conhecer o desconhecido, se ao conhecido me agarro” (p. 59). E precisou corajosamente se soltar do que pensava ser, suas crenças e julgamentos.
Esta fábula tem muita semelhança com o processo da individuação, que não é meta, mas caminho.
A diferença é que não se encontra em um determinado momento dele o verdadeiro eu, mas, ao se dar ouvidos mais e mais à voz interior e atender na vida os seus chamados, vai se descobrindo continuamente as próprias singularidades e se tornando cada vez mais quem se é. Trata-se da trilha da sabedoria, do saber com sabor, como revela a tradição judaica: “Começo da Sabedoria é o genuíno desejo de ser por ela educado” (Sb 6,17).
Percorrê-la, no ensinamento de Jung, apesar de não ser fácil, é passo a passo de autorrealização:
O caminho por descobrir é como algo psiquicamente vivo, que a filosofia clássica chinesa denomina Tao, e comparando-o a um curso de água que se movimenta inexoravelmente para a meta final. Estar dentro do Tao significa perfeição, totalidade, desígnio cumprido, começo e fim, e a realização completa do sentido inato da existência. Personalidade é Tao. (2020, §323, grifos do autor)
Se investir apenas na adaptação externa é o verdadeiro “dom de iludir” — ao outro e sobretudo a si próprio —, deixar-se iniciar na sabedoria, para experimentar e tomar consciência da “dor e da delícia de ser o que é”, pede um outro dom. Trata-se do dom de se desnudar, de confiar na voz interior mais profunda, a do Self e, seguindo seu chamado, trilhar os caminhos que levam a tirar a armadura e ir se tornando cada vez mais quem se é.
Tania Pulier — Analista em formação – IJEP
Lilian Wurzba — Analista didata – IJEP
Referências:
A BÍBLIA. Tradução ecumênica. São Paulo: Loyola; Paulinas, 2002.
FISHER, Robert. O cavaleiro preso na armadura. Balneário Camboriú: Nova Era, 1987.
JUNG, Carl Gustav. A energia psíquica.14. ed. Petrópolis: Vozes, 2016.
___. A natureza da psique. 10.ed. Petrópolis: Vozes, 2018a.
___. O eu e o inconsciente. 27.ed. Petrópolis: Vozes, 2018b.
___. O desenvolvimento da personalidade. 14. ed. Petrópolis: Vozes, 2020.

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