Resumo: O sharenting tornou-se uma prática comum na parentalidade contemporânea, transformando momentos íntimos da infância em conteúdo público e performático. Embora nasça do orgulho ou da vontade de partilhar, essa exposição revela tensões profundas entre privacidade, projeção parental e construção do ego infantil. Sob a ótica da psicologia analítica, o fenômeno ultrapassa o campo social e aponta para dinâmicas inconscientes que moldam a relação entre pais e filhos. Entre persona e sombra, visibilidade e vínculo, surge um retrato complexo da parentalidade atual. Este artigo busca iluminar essas camadas, refletindo sobre os riscos psíquicos e simbólicos que habitam por trás das postagens aparentemente inocentes.
Imagine uma mãe ou pai postando todas as etapas da vida do filho: primeiro sorriso, primeiros passos, brincadeiras, reclamações, conquistas escolares — tudo isso numa timeline pública, com amor, orgulho, mas também com expectativa.
Com o passar do tempo, esse perfil ganha centenas ou até milhares de seguidores que amam participar do crescimento daquela criança. Esse é um cenário cada vez mais comum: o fenômeno chamado sharenting — isto é, pais compartilhando excessivamente detalhes da vida de seus filhos nas redes sociais.
Embora muitos façam isso com boas intenções — desejo de partilha, orgulho, autopromoção leve — começam a surgir questionamentos: até onde vai o direito à privacidade da criança? Como essas exposições moldam o conceito de autoimagem da criança e o seu entendimento de pertencimento no mundo? Onde termina o cuidado e começa a projeção dos pais nos filhos?
Pesquisas realizadas em diversos países evidenciam que a prática de sharenting se tornou um comportamento do nosso tempo.
O artigo “Sharenting: características e nível de conhecimento dos pais que publicam conteúdo sensível de seus filhos em plataformas online” (tradução livre), publicado no site Italian Journal of Pediatrics (2024), detalha um estudo que buscou identificar o perfil e o grau de conscientização dos pais que compartilhavam conteúdos de seus filhos. Para isso, foram entrevistados duzentos e vinte e oito pais de crianças menores de 18 anos (82% mães, 18% pais); 98% dos respondentes utilizavam redes sociais e 75% deles publicavam conteúdo relacionado aos seus filhos online. Trinta e um por cento dos responsáveis pela publicação de conteúdo online começaram a praticar o “sharenting” nos primeiros 6 meses de vida de seus filhos.
No Brasil, estudos apontam a mesma realidade.
A exposição da vida dos filhos por seus responsáveis é uma prática cada vez mais presente: pesquisas recentes indicam que 75% das crianças e adolescentes brasileiros possuem perfis em redes sociais, eum terço deles têm contas totalmente abertas ao público (Instituto Locomotiva & Único, 2024). Além disso, 61% das postagens infantis revelam dados pessoais e familiares, como localização e rotina (TIC Kids Online Brasil, 2024).
No entanto, embora o sharenting seja uma prática amplamente disseminada, ainda são escassos os estudos que investigam seus efeitos psicológicos mais profundos — tanto sobre as crianças quanto sobre os próprios pais. Sob a ótica da psicologia analítica, ampliar essa discussão permite compreender o fenômeno não apenas como um comportamento social, mas como expressão simbólica de conteúdos psíquicos inconscientes.
A exposição constante dos filhos nas redes pode ser lida como uma manifestação do que denomino “Parentalidade Performática” — uma forma de relação entre pais e filhos mediada por ideais de sucesso, reconhecimento e validação externa.
Nesse contexto, o amor e o cuidado passam a ser filtrados por métricas de visibilidade — likes, seguidores e engajamento —, deslocando o eixo da parentalidade do vínculo afetivo para a imagem idealizada. Assim, o que deveria ser espaço de encontro genuíno, construção de vínculo afetivo, transforma-se em palco para a “persona parental”, onde a sombra da parentalidade se esconde sob o verniz da dedicação e do amor.
Sharenting e a Projeção Parental
Sob a perspectiva Junguiana, podemos analisar o fenômeno do sharenting como uma extensão contemporânea do conceito de persona, isto é, a máscara social que o indivíduo constrói para se adaptar e ser aceito. “… um compromisso entre indivíduo e a sociedade a cerca daquilo que ‘alguém parece ser’: nome, título, função e isto ou aquilo. […] apenas uma imagem ou compromisso” (JUNG, 2020b, p.151).
As redes sociais, nesse sentido, tornaram-se o novo palco onde essa persona é encenada — agora não apenas pelo adulto de forma individual, mas também através da imagem da “família perfeita”, que passa a representar um ideal de parentalidade. Nesse caso, o filho, então, é investido de um papel simbólico, refletindo o sucesso, a beleza e a harmonia que os pais desejam projetar ao mundo.
Os filhos são estimulados para aquelas realizações que os pais jamais conseguiram; a eles são impostas as ambições que os pais nunca realizaram.
JUNG, 2021, p.182
Entretanto, como todo movimento psíquico que privilegia a persona, há um preço: a sombra – aquilo que é reprimido, negado ou não reconhecido – que se acumula no inconsciente.
Nesse caso, manifesta-se na forma de ansiedade, comparação, culpa e um distanciamento silencioso do vínculo afetivo genuíno, substituído pela necessidade de validação constante.
[…] sombra, aquela personalidade oculta, recalcada, frequentemente inferior e carregadas de culpas, cujas ramificações se estendem até o reino de nossos ancestrais. A sombra não é constituída apenas de tendências moralmente repreensíveis, mas apresenta um certo número de boas qualidades: instintos normais, reações adequadas, impulsos criadores, e outros.
JUNG, 2020a, p. 312-13
Nesse contexto, os pais que passam a viver a vida e a “fama” dos filhos construída através desses perfis nas redes sociais, projetando seus desejos conscientes e inconscientes nas crianças e tentando aplacar seus anseios juvenis não realizados.
JACOBY traz a seguinte reflexão:
[…] a projeção inconsciente da criança simbólica na criança real, concreta, deve-se frequentemente ao fato de os pais, quer seja o pai ou a mãe, ou ambos juntos, não terem acesso à realização na vida a partir dos seus próprios recursos.
2019, p.28
À medida que a criança cresce imersa em uma realidade fabricada — um recorte de momentos esteticamente agradáveis, fofos e performáticos —, sua vivência emocional tende a se distanciar da experiência genuína da vida.
Essa infância construída sob a lógica da imagem e da aprovação pública pode comprometer o desenvolvimento da capacidade de lidar com a vida comum, imperfeita e sem aplausos: aquela que envolve erros, frustrações e limites. No entanto, é justamente no contato com essas adversidades que o ego vai encontrar um terreno fértil para se estruturar de forma saudável, resiliente e autêntica, reconhecendo sua própria força interior. Segundo Jung, “os problemas recalcados e os sofrimentos que foram deste modo poupados fraudulentamente na vida produzem um veneno secreto, que penetra na alma dos filhos”(2021, p.89).
Parentalidade Performática e a Fragilidade do Ego
Nesse sentido, retomo a importante reflexão de Jung sobre o desenvolvimento infantil: “É preciso que se tomem as crianças como elas são de verdade, e não como gostaríamos que fossem” (2021, p. 45). Amar uma criança, portanto, implica acolher sua realidade psíquica, suas limitações e potências, sem moldá-la à imagem dos nossos ideais.
Oferecer um amor verdadeiro é criar vínculos de afeto e confiança baseados na autenticidade do ser — não na performance. Isso também inclui ensiná-las, desde cedo, a distinguir o que pertence ao espaço íntimo e ao que pode ser partilhado no espaço público, favorecendo a formação de limites saudáveis.
Quando essa diferenciação se perde, o processo de desenvolvimento do ego — que depende do reconhecimento entre o eu interno e o mundo externo — fica comprometido, abrindo espaço para um ego fragilizado e dependente da aprovação alheia.
Ninguém pode educar para a personalidade se não tiver personalidade. E não a criança, mas sim o adulto quem pode atingir a personalidade como o fruto do amadurecido pelo esforço da vida orientada para esse fim. Atingir a personalidade não é tarefa insignificante, mas o melhor desenvolvimento possível da totalidade de um indivíduo determinado. Personalidade é a realização máxima da índole inata e específica de um ser vivo em particular. Personalidade é a obra a que se chega pela máxima coragem de viver, pela afirmação absoluta do ser individual, e pela adaptação, a mais perfeita possível, a tudo que existe de universal, e tudo isto aliado à máxima liberdade de decisão própria.
JUNG, 2021, p.82
Quando a experiência subjetiva da criança é substituída pela necessidade de manter uma imagem idealizada, corre-se o risco de formar um ego frágil, sustentado por validações externas.
A criança aprende, ainda muito cedo, que o valor está na aparência, no aplauso e na aprovação — e não na vivência autêntica de quem ela é. Esse movimento gera uma dissociação sutil entre o ser e o parecer, fragilizando o contato com o si-mesmo e com o próprio sentido interno de existência. Do ponto de vista simbólico, poderíamos dizer que a imagem virtual assume o lugar do que seria o prenúncio de uma identidade: em vez de seguir no caminho do desenvolvimento natural da personalidade, passa a distorcê-lo segundo as expectativas parentais e sociais.
O resultado é um ego que busca incessantemente confirmar sua existência pela visibilidade, mas que teme o anonimato e o erro — justamente as experiências que o tornariam mais humano e inteiro.
A personalidade já existe em germe na criança, mas só se desenvolverá aos poucos por meio da vida e no decurso da vida. Sem determinação, inteireza e maturidade não há personalidade.
JUNG, 2021, p. 182
Reconhecer a sombra presente na parentalidade performática é um passo essencial para restaurar a autenticidade dos vínculos e reequilibrar o lugar da infância em nossa sociedade. Quando pais e mães tomam consciência das motivações inconscientes que os levam a expor seus filhos — a necessidade de validação, o medo de não corresponder ao ideal social de “pais perfeitos” —, abre-se espaço para uma relação mais verdadeira e humana. A sombra, quando reconhecida se torna um guia: revela o que foi reprimido e aponta o caminho para a integração. Nesse movimento, a parentalidade deixa de ser espetáculo e volta a ser encontro — um espaço simbólico de crescimento mútuo, no qual tanto pais quanto filhos podem se tornar mais inteiros, mais reais e, sobretudo, mais humanos.
Romper esse ciclo de performance exige consciência e coragem para olhar o próprio desamparo sem projetá-lo no outro. Quando o pai ou a mãe reconhecem sua própria fragilidade e acolhem as partes feridas da psique — em vez de mascará-las sob a imagem idealizada da parentalidade perfeita —, algo se transforma profundamente no vínculo com o filho. A criança deixa de ser o espelho que reflete a falta dos pais e volta a ser o sujeito de sua própria jornada. Nesse momento, acredito que a rede social pode enfim deixar de ser o palco principal da vida e a intimidade da família passa a ter mais valor e sentido do que qualquer like ou novos seguidores.
Entendo que a rede social não é o mal em si, mas um espelho que revela a fragilidade egóica dos pais e as relações projetivas que permeiam a parentalidade contemporânea, especialmente diante do fenômeno do sharenting.
Compreender o vazio que as redes ocupam na vida e nos vínculos parentais pode ser o primeiro passo para transformar a forma como elas são utilizadas.
É preciso deslocar o holofote das crianças e iluminarmos aquilo que realmente sustenta uma relação saudável entre pais e filhos: o afeto, o cuidado, o amparo emocional e o amor. Somente assim o filho poderá tornar-se um ser único, autêntico e independente — não mais a imagem idealizada que alimenta a projeção de uma parentalidade perfeita, mas sim o sujeito de sua própria história.
Clarisse Grand Court – Membro Analista em formação pelo IJEP
Maria Cristina Mariante Guarnieri – Analista didata do IJEP
Referências:
Conti, MG, Del Parco, F., Pulcinelli, FM et al. (2024). Sharenting: características e consciência dos pais que publicam conteúdo sensível de seus filhos em plataformas online. Disponível emhttps://doi.org/10.1186/s13052-024-01704-y . Acesso em 06 de novembro de 2025.
Ferreira, Lucia Maria T. (2020). A superexposição dos dados e da imagem de crianças e adolescentes na Internet e a prática de Sharenting. Reflexões iniciais. Disponível em
https://www.mprj.mp.br/documents/20184/2026467/Lucia_Maria_Teixeira_Ferreira.pdf . Acesso em 06 de novembro de 2025.
JUNG, Carl Gustav. Aion: estudo sobre o simbolismo do si-mesmo. 10.ed. Petrópolis: Vozes, 2020a.
______, O desenvolvimento da personalidade. 14. Ed. Petrópolis: Vozes, 2021.
______, O eu e o Inconsciente. 27. Ed. Petrópolis: Vozes, 2020b.
Ferreira, Luiz Claudio. (2025). Uma a cada três crianças tem perfil aberto em redes, alerta pesquisa. Disponível em
https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2025-01/uma-cada-tres-criancas-tem-perfil-aberto-em-redes-alerta-pesquisa Acesso em 06 de novembro de 2025.
Tic Kids Online Brasil (2024). Pesquisa sobre o uso da internet por crianças e adolescentes no Brasil. Disponível em
https://cetic.br/media/docs/publicacoes/2/20250512154312/tic_kids_online_2024_livro_eletronico.pdf Acesso em 06 de novembro de 2025.

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