“A receita então é spiritus contra spiritum”, escrevia Jung, em uma carta a Bill, cofundador do AA, para dar contornos mais bem definidos à questão do alcoolismo.
“A história de AA e seu entrelaçamento com Jung”, artigo publicado neste mesmo site, é uma espécie de preambulo a este trabalho. Desta vez, iremos mergulhar na espiritualidade, em uma investigação de como ela se relaciona com a questão do alcoolismo. Que boas reflexões possam surgir a partir deste texto.
A criação do AA remonta à história da recuperação de um amigo alcoólico de Bill, Rowland Hazard, que havia se tratado com Jung, sem sucesso, para a questão do alcoolismo.
Resumidamente, ao final de quase um ano de tratamento, Rowland alcançaria a sobriedade alcoólica, que seria rapidamente perdida em sua volta aos EUA. Acreditando que Jung seria sua “tábua de salvação”, regressaria a Suíça sendo surpreendido pelas duras e honestas palavras de seu analista, que lhe afirmaria não ver “esperanças para ele em novos tratamentos, fossem eles médicos ou psiquiátricos”.
Ao ser indagado se haveria ou não alguma esperança para seu caso, Jung responderia “que poderia haver sim e que esta seria a de tornar-se o sujeito de uma genuína experiência espiritual ou religiosa – em resumo, de uma autêntica conversão”, recomendando, em seguida, “que se colocasse em uma atmosfera religiosa e que esperasse.” (Carta a Jung, ANEXO C).
Esta passagem nos dá uma ideia do que Jung pensava a respeito do alcoolismo, em sua essência, sendo este o tema central de nossa investigação.
Para isso, tomaremos como base sua carta em resposta a Bill[1] (ANEXOS A e B), que lhe escrevera, em agradecimento, relatando como ele havia sido importante no processo do nascimento e desenvolvimento do AA.
Sua carta pode ser sintetizada em alguns poucos pontos, como quando Jung inicia dizendo, em relação ao alcoolismo de Rowland, que, “o que eu realmente concluí sobre o seu caso foi o resultado das minhas inúmeras experiências com casos semelhantes ao dele”, indicando, assim, uma abordagem científica da questão em debate. Em seguida explica, ainda a respeito de Rowland, que “seu desejo por álcool equivalia, em um nível inferior, à sede espiritual de nosso ser pela totalidade, expressa em linguagem medieval: a união com Deus.”[2] E segue, complementando que “o único caminho correto e legítimo para tal experiência é que ela aconteça para você na realidade e ela só pode acontecer se você procurar um caminho que o leve a uma compreensão mais alta”, indicando que o indivíduo “poderá ser conduzido a esta meta pela ação da graça, pela convivência pessoal e honesta com os amigos ou através de uma educação superior da mente, para além dos limites do mero racionalismo.” Jung segue com franqueza, renunciando aos tão costumeiros cuidados com a crítica racionalista, declarando:
“Estou fortemente convencido de que o princípio do mal que prevalece neste mundo leva a necessidade espiritual não reconhecida à perdição, se não for neutralizada por uma visão religiosa real ou pela barreira protetora da comunidade humana. Um homem comum desligado dos planos superiores, isolado de sua comunidade, não pode resistir aos poderes do mal, muito propriamente chamados de Diabo. Mas o uso de tais palavras suscita tantos enganos que só podemos manter-nos afastados deles tanto quanto possível.”
(Carta a Bill, ANEXO B)
Jung encerra a correspondência dando contornos bem definidos à questão: “veja você, álcohol em latim significa “espírito”, e você, no entanto, usa a mesma palavra tanto para designar a mais alta experiência religiosa como para designar o mais depravador dos venenos. A receita então é spiritus contra spiritum.”
Em poucas e profundas palavras somos apresentados a uma compreensão acerca do alcoolismo.
Nesse sentido, vale observar que os aspectos fisiológicos da adicção por álcool também são considerados por Jung, em alguma medida, pelo entendimento de que “a alma humana vive unida ao corpo, numa unidade indissolúvel, por isto só artificialmente é que se pode separar a psicologia dos pressupostos básicos da biologia” (JUNG, 2014c, p.71), ressaltando ainda que “a alma é o ponto de partida de todas as experiências humanas, e todos os conhecimentos que adquirimos acabam por levar a ela. A alma é o começo e o fim de qualquer conhecimento.” (JUNG, 2014c, p.71). Como diz Jung:
É importante para a meta da individuação, isto é, da realização do si-mesmo, que o indivíduo aprenda a distinguir entre o que parece ser para si mesmo e o que é para os outros.
É igualmente necessário que conscientize seu invisível sistema de relações com o inconsciente, ou seja, com anima, a fim de poder diferenciar-se dela. No entanto, é impossível que alguém se diferencie de algo que não conheça. (JUNG, 2014a, p.87).
Conhecer a alma compreende reconhecer que ela “possui uma função religiosa natural” e que “a tarefa mais nobre de toda a educação (do adulto) é a de transpor para a consciência o arquétipo da imagem de Deus”, pois a alma é “naturaliter religiosa, isto é, dotada de uma função religiosa.” (JUNG, 2011, p.25).
Nesse sentido, Jung (2014c, p.315) aponta para a existência de complexos inconscientes, que normalmente estão ligados ao ego, e de complexos que não deveriam estar ligados ao ego.
“Os primeiros são os complexos das almas, e os segundos os complexos dos espíritos.” ou seja, “enquanto os conteúdos do inconsciente pessoal são sentidos como fazendo parte da própria alma do indivíduo, os conteúdos do inconsciente coletivo parecem estranhos e como que vindos de fora.”
(JUNG, 2014c, p.318)
O espírito não é um objeto de fácil delimitação conceitual, mas os múltiplos aspectos provenientes da quantidade de sentidos e nuances de significados atribuídos à sua palavra fornecem um quadro concreto desse fenômeno. Assim, Jung (2016, p.301)[3] define-o como “um complexo funcional, que originariamente era sentido, em nível primitivo, como uma presença invisível, a modo de um sopro.”
“A manifestação psíquica do espírito indica simplesmente que é de natureza arquetípica, isto é, o fenômeno que denominamos espírito depende da existência de uma imagem primordial autônoma, universalmente dada de modo pré-consciente na disposição da psique humana.”
(JUNG, 2016, p.307)
Este fenômeno, quando considerado em seu sentido religioso, é representado por um “espírito superior” que “tornou-se o princípio cósmico ordenador sobrenatural e supramundano e, como tal, foi designado por “Deus”” (JUNG, 2016, p.302). Enquanto complexo funcional, o espírito se apresenta como um fenômeno psíquico imediato, sem ligação direta com os eventos materiais, diferentemente da alma. Nesse sentido, ao fenômeno espiritual é atribuído uma imaterialidade maior que ao fenômeno anímico, pois, “devido à íntima conexão de certos processos psíquicos com fenômenos físicos paralelos não é possível aceitar uma total imaterialidade do anímico.” (JUNG, 2016, p.303).
“Assim como é preciso recordar os deuses da Antiguidade Clássica para poder apreciar devidamente o valor psicológico do tipo anima-animus, do mesmo modo Cristo[4] é para nós a analogia mais próxima do si-mesmo e de seu significado.”
(JUNG, 1982, p.67)
O espírito age a modo instintivo (JUNG, 2014b), no mais profundo do ser, por uma ordem dinâmica, de maneira que:
“Esta última circunstância nos recorda a primeira e importante frase do Fundamentum (fundamento) de Inácio de Loyola: “Homo creatus est [ad hunc finem], ut laudet Deum Dominum nostrum, ei reverentiam exhibeat, eique serviat et per haec salvet animam suam”.”
(JUNG, 1982, p.264, 265)
“[…] A consciência foi produzida com a finalidade de reconhecer (laudet) que sua existência provém de uma unidade superior (Deum); de considerar atentamente esta fonte (reverentiam), cujas determinações ela deve executar de modo inteligente e responsável (serviat), proporcionando deste modo um grau ótimo de vida e de possibilidade de desenvolvimento à psique em sua totalidade (salvet animam suam).”
É preciso, no entanto, ter claro que o si-mesmo, enquanto arquétipo da totalidade, pelo princípio dos opostos complementares (JUNG, 2013a), compreende tanto o bem quanto o mal.
Em crítica à doutrina de um Deus Summum Bonum (Sumo Bom), Jung esclarece que Cristo “corresponde apenas a uma das metades do arquétipo em consideração. A outra metade se manifesta no Anticristo. Este último ilustra igualmente o si-mesmo, mas é constituído pelo seu aspecto tenebroso.” (JUNG, 1982, p.67). Nesse sentido, Jung (1982, p.76) alerta que “hoje, como em todas as épocas, é necessário que o homem não feche os olhos para o perigo do mal que está à espreita dentro dele mesmo”, mal que em sua carta a Bill, sem meias palavras, referenciou como sendo o Diabo.
É nessa perspectiva que, quando Jung nos fala da tarefa da educação do adulto, de transpor para a consciência o arquétipo da imagem de Deus, está se referindo à espiritual(idade): o processo de apreensão do instintivo pela via espiritual, que é a conquista da consciência de si.
A espiritualidade é simples mas não é fácil, pois refere-se à aceitação e à submissão a uma presença invisível, percebida, quiçá, “a modo de um sopro”. Aceitação e submissão que, em realidade, não são objetos de escolha para o ego. Essa ilusão de escolha é muito confundida, na compreensão comum, com o conceito do livre arbítrio que é, naturalmente, limitado ao campo da consciência (JUNG, 1982). Trata-se, portanto, de um sentimento subjetivo de liberdade, cujos limites se encontram no mundo subjetivo interior que entra em conflito com os fatos do si-mesmo. Nesse sentido, é possível que muitos dos tropeços evolutivos do ser humano, incluindo o alcoolismo, possam ser atribuídos a uma interpretação inadequada desse conceito.
No Tratado alquímico Aurora consurgens, “O surgir da aurora”, existe a “casa do tesouro que a sabedoria construiu sobre pedra” (JUNG, 1997, p.260), trazendo orientações, em princípio Superiores, à consciência.
Nessa casa existem 14 pedras angulares em que a 13a é a pedra da “inteligência espiritual”, spiritualis intellectus, que “é a compreensão “sutil”, tal como exigem frequentemente os textos alquímicos, a fim de que o adepto não seja arrastado à sua perda, tomando os textos simbólicos num sentido concretista”. A 14a é “a última pedra, a obediência”, que “significa uma submissão à vontade de Deus – psicologicamente, uma renúncia à atitude do ser eu e uma subordinação ao si-mesmo.” (JUNG, 1997, p.281).
Compreendendo que “sem a vivência dos opostos não há experiência da totalidade e, portanto, também não há acesso interior às formas sagradas” (JUNG, 2011, p.33), o livre arbítrio apresenta-se como a concessão Superior ao direito de integralidade do ser, que se traduz, em última instância, na liberdade de escolher a quem iremos obedecer, e não se iremos obedecer, pois o espiritual não é a interrogação, tampouco o si-mesmo, a questão é: “Deus” e o “Diabo”.
Certamente uma pergunta que se fará a este respeito é se não haveria indivíduos para os quais o próprio livre-arbítrio constituiria o supremo princípio do agir, de modo que todas as suas atitudes seriam intencionalmente escolhidas por eles próprios. Não acredito que alguém haja atingido ou venha atingir esta semelhança com Deus, mas sei que há muitos que almejam este ideal, porque estão dominados pela ideia heroica da liberdade absoluta. De um modo ou de outro, todos os homens são dependentes; todos são determináveis de alguma forma, pois não são deuses. (JUNG, 2014c, p.348, grifo nosso).
A liberdade de escolher a “quem” seguir, para o alcoólico na ativa, já não existe, sendo essa, portanto, a própria definição da adicção alcoólica, uma vez que o espírito do álcool – percebido como o espírito do Diabo – “tomou” o indivíduo. É importante ressaltar que cada pessoa é única, assim como sua história, no sentido mais amplo possível. No entanto, em termos gerais, para o alcoólico, podemos compreender que o processo de guiança do si-mesmo, enquanto arquétipo da ordem dinâmica, em algum momento ganhou contornos atípicos.
Sanford (1988, p.146), a respeito da lenda de Lúcifer, traz que o âmago do arquétipo do mal é a busca do poder, pois “o pecado de Lúcifer foi tentar tomar o lugar de Deus no trono do céu.”
A nível psicológico, esse poder destrutivo pode ser visto como uma qualidade arquetípica do ego humano que quer se impor ao si-mesmo. Trata-se da tendência obscura formada em nossa estrutura de ego para tentar estabelecer a dominação deste sobre toda a psique, ao invés de permitir que o centro divino da psique dite as leis. (SANFORD, 1988, p.146).
Através da perspectiva de Sanford, podemos estabelecer uma correlação entre o alcoolismo e o mal, entre o indivíduo alcoólico e o Diabo, por meio da vontade de poder.
Essa vontade está presente desde o nível do complexo do ego, ou seja, da consciência, até a esfera mais profunda da realidade arquetípica “funcional”, ou seja, a nível espiritual. Com isso, por inferência, também encontraríamos a vontade de poder a nível anímico, em uma eventual investigação das etapas do processo psíquico da adicção alcoólica, pois, certamente, muitos enfrentamentos na esfera da sombra precederam o momento derradeiro de dominação da alma pelo espírito maligno. Como Von Franz (PEACEFULNESS, 1983) afirma: “se você tivesse seu quarto e houvesse uma porta não fechada, lá o Diabo pode entrar. E se você conhece sua sombra pessoal, pode fechar todas as portas.”
O estado neurótico conduzido pela vontade de poder, que Adler (apud JUNG, 2014a, p.28) denominou de “semelhança a Deus”, “consiste em atribuir a si mesmo qualidades ou valores que evidentemente não lhe pertencem, pois ser semelhante a Deus é ser semelhante a um espírito superior ao espírito humano.” (JUNG, 2014a, p.143). O termo adleriano trata de semelhança, o que novamente nos remete à questão da interpretação do conceito de livre arbítrio, pois ambas as questões orbitam em torno desse núcleo comum, de coisas similares.
A semelhança a Deus, que surge em função de uma consciência obnubilada, atua como um artifício da própria malignidade, pois, pelo entendimento de que a coisa mais parecida com a realidade é a ilusão, esse estratagema se presta perfeitamente a desviar os desígnios Superiores.
Dessa maneira, podemos analisar os estágios preliminares do processo da adicção alcoólica no indivíduo, por sua postura “obstinada” em seu estado de semelhança a Deus, seu estado de inflação, como reflexo dessa condição ilusória. Tamanha “semelhança” com a realidade tende a convertê-lo em um ser sem dúvida, convicto, o que, por si só, já denuncia sua propensão à rigidez e, portanto, a uma patológica suscetibilidade neurótica. É como Mefistófeles escreveu no álbum do estudante, em Fausto de Goethe (apud JUNG, 2014a, p.142): “Eritis sicut Deus, scientes bonum et malum”, você será como Deus, conhecendo o bem e o mal.
Jung afirma que “onde impera o amor, não existe vontade de poder; e onde o poder tem precedência, aí falta o amor. Um é a sombra do outro.” (JUNG, 2013a, p.65).
Visto do ponto de vista unilateral da atitude consciente, a sombra é uma parte inferior da personalidade. Por isso, é reprimida, devido a uma intensa resistência. Mas o que é reprimido tem que se tornar consciente para que se produza a tensão entre os contrários, sem o que a continuação do movimento é impossível. A consciência está em cima, digamos assim, e a sombra embaixo, e como o que está em cima sempre tende para baixo, e o quente para o frio, assim todo consciente procura, talvez sem perceber, o seu oposto inconsciente, sem o qual está condenado à estagnação, à obstrução ou à petrificação. É no oposto que se acende a chama da vida. (JUNG, 2013a, p.65).
O drama do indivíduo alcoólico, do alcoolismo, é, como define Pedraza (2002, p.88), a tragédia de uma pessoa que busca a própria destruição. “O espírito penetra de tal modo o ser humano que este corre o maior perigo de acreditar-se seu criador e possuidor. […] quando na verdade aprisiona sua liberdade em mil laços, tornando-se uma ideia obsessiva.”
(JUNG, 2016, p.305)
A vida entregue ao espírito sombrio do Diabo é como que a formalização de um estado há muito cultivado pelo indivíduo; a ideia de liberdade absoluta, representada na vontade de poder, encontra no espírito das trevas sua validação e acolhimento. É como diz Efésios 2:1-2: “vocês estavam mortos em suas transgressões e pecados, nos quais costumavam viver, quando seguiam a presente ordem deste mundo e o príncipe do poder do ar, o espírito que agora está atuando nos que vivem na desobediência.”
Uma vez guiado pelo espírito do mal, o movimento entre opostos, que alimenta a chama da vida, tende à estagnação em um polo e, com ele, a própria vida.
Pedraza (2002, p.88) também nos diz que “gostaria que a psicologia da dependência fosse totalmente assumida como própria do âmbito arquetípico de Dioniso”, o que nos auxilia na construção de uma imagem para esse quadro, construído sobre o alicerce da ilusão, provenientes da inflação e eventual alienação do ego. Como apontado por Barcellos (2019, p.219), “essa é a loucura dionisíaca: borrar os limites entre homem e deus, entre mortal e imortal.” Em oposição à razão de uma disposição apolínea que, como diz Jung (2015, p.182), é “a imagem gloriosa e divina do princípio da individuação”, o dionisíaco se contrapõe pela “libertação do instinto sem limites, a irrupção da dynamis (força dinâmica) desenfreada de natureza animal e divina.”
O dionisíaco “é o horror à destruição do princípio da individuação e, ao mesmo tempo, o “feliz êxtase” de que seja destruído.” (JUNG, 2015, p.182). Assim, conforme temos analisado, a destituição de qualquer possibilidade de desidentificação do ego encontra seu ápice em Dioniso, onde “cada qual se sente ‘um’ com o próximo (‘não apenas unificado, reconciliado e fusionado’). Sua individualidade deve estar, então, completamente abolida.”
Ainda que o conceito de Deus seja um princípio espiritual por excelência, é uma necessidade coletiva vê-lo também como a causa primeira criativa, da qual provém toda aquela instintividade que se apresenta como repugnante à espiritualidade.
Assim sendo, Deus não seria apenas a essência da luz espiritual, que aparece como a última flor na árvore do desenvolvimento, nem a meta da salvação espiritual na qual culmina toda a criação, e nem o fim último e o supremo desígnio, mas também seria tudo o que há de mais escuro e a causa mais baixa de todas as tenebrosidades naturais. Este é um enorme paradoxo, que pelo visto corresponde a uma verdade psicológica profunda. Ou seja, representa nada mais do que a contraditoriedade dentro de um mesmo ser, de um ser cuja natureza mais íntima é uma tensão entre opostos. (JUNG, 2014b, p.71).
(EDINGER, 2020, P.68)
Nesse sentido, como é possível imaginar uma alma abandonada por Deus? Completamente entregue à sua sombra?
Como hipótese, tomemos a inflação como base no processo da adicção, estruturando-se e desenvolvendo-se pela vontade de poder, de modo que, como diz Jung, aí não haveria lugar para o amor. Considerando a máxima de João em sua primeira Epístola 4:8, de que “Deus é amor”, então, corroborando o que vimos anteriormente, Deus não estaria presente. Porém, temos que considerar que, “psicologicamente, a fixação ou encarnação de um conteúdo espiritual deve ser olhada como uma realização do arquétipo do si-mesmo” (JUNG, 1997, p.266), “por isso seria oportuno lembrar que não só as trevas se conhecem pela luz, como também, inversamente, a luz se conhece pelas trevas” (JUNG, 1982, p.74).
Assim sendo, a ideia que se apresenta é que “o grande Plano segundo o qual é construída a vida inconsciente da alma é tão inacessível à nossa compreensão que nunca podemos saber que mal é necessário para que se produza um bem por enantiodromia.” (JUNG, 2016, p.308).
Baseado nesse princípio, ao mal é concedido atuar na já delicada situação do alcoólico até que, por si só, já não haja mais como aprofundar a experiência das trevas, de maneira que o único movimento possível é o retorno; momento descrito em Lucas 15:18-19: “levantar-me-ei, irei ter com meu pai e dir-lhe-ei: Pai, pequei contra o céu e contra ti; já não sou digno de ser chamado teu filho; trata-me como um dos teus trabalhadores.”
O movimento de retorno é um despertar da consciência, uma superação do “nível inferior de sede espiritual”, representando a superação da unilateralidade dionisíaca. O dionisíaco em si não é um mal e isso deve ser observado. Seu aspecto extremo, de fusão e indiferenciação, é que é potencialmente perigoso: dosis sola facit venenum, “a dose que faz o veneno”, como observa Paracelso, pois:
“assim como o indivíduo não é apenas um ser singular e separado, mas também um ser social, do mesmo modo o espírito humano não é algo de isolado e totalmente individual, mas um fenômeno coletivo. E tal como certas funções sociais ou instintos se opõem aos interesses dos indivíduos particulares, da mesma maneira o espírito humano é dotado de certas funções ou tendências que, devido à sua natureza coletiva, se opõem aos conteúdos individuais.”
(JUNG, 2014a, p.143)
Assim, a adicção, enquanto estado acentuado de unilateralização da psique junto ao lado sombrio do si-mesmo, do espírito do Diabo, demanda e apresenta a oportunidade para a “força numinosa do si-mesmo, que dificilmente poderia ser experimentada de outra maneira” (JUNG, 1990, p.503), manifestar-se em toda sua grandeza.
No alcoolismo, como na vida, a dinâmica dos pares complementares se faz presente, noles volens, “querendo ou não”. Para o alcoólico, trata-se de uma questão de vida ou morte, onde a única força capaz de se opor é a face oposta do arquétipo do mal, que é Deus.
O alcoolismo nos ensina como consciente e inconsciente, matéria e espírito, são todas realidades de um mesmo ser que devem ser compreendidas na dinâmica da vida, da energia psíquica. Os estados de unilateralização significam o represamento dessa energia, que, em modo continuado e extremo, representa uma situação patológica e eventualmente perigosa; como a água parada que não permite a vida. A nada, nem ao espiritual, cabe a unilateralidade absoluta, posto que, “numa interiorização do si-mesmo de algum modo termina a oposição entre espiritual e físico, pois a psique é justamente o vinculum (vínculo) entre ambos.” (JUNG, 1997, p.256).
Assim, o mito de Jung (EDINGER, 1993) como resposta a nossa grande questão existencial, de que a ideia essencial do objetivo da vida seria a criação de consciência, parece corroborar tudo o que vimos, tanto no aspecto fenomenológico e psicológico, como também abre espaço para considerações que tangenciam o campo metafísico.
Dessa maneira, o alcoolismo se presta como um bom exemplo, uma situação extrema, é verdade, mas ainda assim um bom exemplo, de como podemos nos perder na busca pela totalidade. Nos apresenta um desvio de rota tão severo quanto natural, se considerarmos que, no dilema da natureza paradoxal do indivíduo psicológico, situa-se a grande questão do sentido da vida.
O que a Psicologia Junguiana nos ensina é que o caminho da individuação não é uma escolha, que pode haver, e é esperado que haja, resistência por parte do ego, mas que essa caminhada é uma condição inexorável da realidade do indivíduo.
“É presunção nossa poder dizer sempre o que é bom ou mau para o paciente. Pode ser que algo seja realmente mau para ele, mas assim mesmo o faz, ficando então com a consciência pesada. Em sentido terapêutico, portanto, empírico, isto pode ser muito bom para aquela pessoa. Talvez tenha que experimentar e sofrer o mal em toda a sua força, pois só assim abrirá mão de seu farisaísmo com relação aos outros. Talvez o destino, o inconsciente ou Deus – deem o nome que quiserem –precisem dar-lhe uma lição e deixá-lo cair na lama, pois só uma experiência drástica vai “funcionar”, vai tirá-lo um pouco de seu infantilismo e vai torná-lo um pouco mais maduro. Como experimentará alguém a necessidade de redenção se acha, em sua presunção, que não precisa ser redimido de nada?”
(JUNG, 2013b, p.224)
O ser humano nasce da totalidade e sua vida consiste em retornar para ela, em um nível superior de consciência. Voltar à totalidade sem perder o significado do indivíduo que somos, pelo contrário, regressar ao si-mesmo como forma potencializada deste sentido pessoal é, portanto, uma estrada para a aparente não existência, o lugar ideal. É um caminho que conduz seu caminhante à compreensão do que não se pode explicar pelas veredas da razão, revelando a coexistência entre o consciente e o inconsciente através de um Deus que habita em nós, e de onde tudo o que há nos é ofertado, inclusive o direito de escolher a que face sua iremos seguir.
A individuação é, nesse sentido, uma meta. Tudo que, porventura, exceder a essa ideia, buscando lhe materialidade ou o que quer que seja, escapará por entre nossas mãos tal qual tentássemos segurar o fluxo contínuo d´água na descida de um rio caudaloso.
O alcoolismo, enquanto busca pela totalidade num nível inferior, conforme descreveu Jung, ilustra o desafio que a dádiva da consciência representa na dinâmica da psique. Uma vez mais, a questão psicológica e a religiosa tendem à não separação, pois o bem e o mal, Deus e o Diabo, enquanto polaridades, são imagens que pertencem e definem essa totalidade. Podemos perceber o Diabo como um mal relativo, presente nos conteúdos rejeitados e negados pelo ego, os quais, nesse sentido, poderiam ser dissipados pela aceitação consciente de sua existência. Algo dessa parte dividida e expulsa da psique consciente, realmente age de maneira diabólica, e se mantida longe da luz, tende a uma escuridão cada vez mais profunda, aproximando-se de seu núcleo arquetípico como a própria representação do maligno em nós.
É nessa direção, do aprofundamento da situação de inconsciência da realidade do si-mesmo e todos os movimentos que daí advém, que a relação de um indivíduo com o álcool pode escalonar das questões a nível da sombra pessoal até o aprofundamento em uma conexão, por assim dizer, direta com o nível arquetípico desta mesma sombra. Uma vez determinado tal grau de vinculação com a psique inconsciente, está estabelecido o vício, que, em uma compreensão psicológica, é definido pela camada espiritual da psique.
Jung faz a distinção entre a alma e o espírito atribuindo uma maior imaterialidade ao espiritual, justamente comparando-o à proximidade que a alma guarda com o mundo fenomenológico pela conexão essencial de determinados processos psíquicos com fenômenos materiais paralelos.
Assim, na adicção alcoólica, o espírito apresenta-se como os ventos a soprar nas velas de um experimentado barco, que quando estão contrários ao bom porto, nem mesmo o velho marinheiro, com sua precisa bússola, é capaz de ajustar a embarcação no rumo correto. Ainda que a alma conheça todas as rotas possíveis e domine a arte da navegação, somente uma mudança na direção dos ventos pode restabelecer a rota. O embate spiritus contra spiritum trata disso, da oposição entre forças equivalentes, entre o espírito do Diabo e de Deus. Forças que, como o vento, são uma só e que podem nos guiar pela popa, pela proa ou por través.
O alcoolismo, portanto, pode ser compreendido como uma espécie de patologia resultante de uma unilateralização limite da psique, que ocorre devido à rígida condição de inflação de um ego inconsciente de si-mesmo. Trata-se de um estado que leva o si-mesmo a unilateralizar-se, ele próprio, em seu aspecto sombrio, como último recurso possível para o despertar da consciência, de maneira que a personalidade do eu possa abrir-se para uma personalidade maior, que sempre esteve presente, mas que era combatida em uma batalha invencível.
André Orioli – Membro Analista em Formação IJEP
Waldemar Magaldi – Analista Didata IJEP
REFERÊNCIAS:
ALCOÓLICOS Anônimos:a história de como milhares de homens e mulheres se recuperaram do alcoolismo. 4° Edição. São Paulo: Junta de Serviços Gerais de Alcóolicos Anônimos do Brasil – JUNAAB, 2001.
BARCELLOS, Gustavo. Mitologias Arquetípicas: figurações divinas e configurações humanas. São Paulo: Vozes, 2019.
EDINGER, Edward F. A criação da consciência: o mito de Jung para o homem moderno. 9° Edição. São Paulo: Cultrix, 1993.
EDINGER, Edward F. Ego e arquétipo: uma síntese fascinante dos conceitos psicológicos fundamentais de Jung. 2° Edição. São Paulo: Cultrix, 2020.
JUNG, Carl Gustav. Aion: estudo sobre o simbolismo do si-mesmo(OC 9/2). Petrópolis: Vozes, 1982.
______ Mysterium Coniunctionis: Rex e Regina; Adão e Eva; A conjunção (OC 14/2). Petrópolis: Vozes, 1990.
______ Mysterium Coniunctionis: Epílogo; Aurora Consurgens (OC 14/3). Petrópolis: Vozes, 1997.
______ Psicologia e alquimia (OC 12). Petrópolis: Vozes, 2011.
______ Civilização em transição (OC 10/3). Petrópolis: Vozes, 2013a.
______ Psicologia do inconsciente (OC 7/1). Petrópolis: Vozes, 2013b.
______ O eu e o inconsciente (OC 7/2). Petrópolis: Vozes, 2014a.
______ A energia psíquica (OC 8/1). Petrópolis: Vozes, 2014b.
______ A natureza da psique (OC 8/2). Petrópolis: Vozes, 2014c.
______ Tipos psicológicos (OC 6). Petrópolis: Vozes, 2015.
______ Os arquétipos e o inconsciente coletivo (OC 9/1). Petrópolis: Vozes, 2016.
PEACEFULNESS. MATTER OF HEART. You Tube, 1983. Disponível em:
< https://www.youtube.com/watch?v=Ed3vPb9bmcw>. Acesso em: 5 de abr. de 2024.
PEDRAZA, Rafael López. Dioniso no exílio: sobre a repressão da emoção e do corpo. São Paulo: Paulus, 2002.
SANFORD, John A. Mal: o lado sombrio da realidade. 1° edição, 6ª reimpressão, 2021. São Paulo: Paulus, 1988.
[1] Recomendamos que ambas as cartas sejam lidas na íntegra nos anexos B e C. Além disso, há uma versão original da carta de Jung no anexo A.
[2] Neste ponto, na versão original da carta, é possível ler que Jung assinalou uma menção ao salmo 42:1: “como o cervo brama pelos riachos das águas, assim minha alma por ti, ó Deus”.
[3] Nesta passagem, Jung (2016, p.301) comenta que “William James descreveu esse fenômeno primordial em suas Varieties of Religious Experiences.”
[4] É oportuno fazer a ressalva de que nossa abordagem, assim como as citações escolhidas neste trabalho, partem de uma perspectiva do mundo ocidental e sua herança religiosa predominante judaico-cristã. Como ampliação, Jung (2011, p.27) cita que: “ninguém pode evitar a fé em aceitar como causa primeira Deus, Purusha, Atman ou Tao, eliminando assim a inquietude última do homem.”
ANEXOS:
ANEXO A – Carta de Carl Jung para Bill W. (original)
Disponível em: <https://i0.wp.com/www.psicologiamsn.com/wpcontent/uploads/2015/05/jung_letter.jpg?ssl=1>.Acesso em: 16 de ago. de 2023.

ANEXO B – Tradução da Carta de Carl Jung a Bill W.
Disponível em: < https://passeamensagem.wordpress.com/2013/03/29/carta-de-bill-w-a-carl-jung/>. Acesso em: 12 de ago. de 2023.
“Janeiro 30, 1961.
Caro Sr. Wilson,
A sua carta foi-me realmente bem-vinda.
Não tive mais notícias de Rowland H. e muitas vezes desejei conhecer o seu destino.
O diálogo que mantivemos, ele e eu, e que ele muito fielmente lhe transmitiu teve um aspecto que ele mesmo desconheceu. A razão pela qual não pude dizer-lhe tudo foi que naquela época eu tinha que ser excessivamente cuidadoso com tudo o que dizia. Eu havia descoberto que estava sendo de todas as maneiras mal interpretado.
Portanto, tive que ser muito cuidadoso ao conversar com Rowland H. Mas o que eu realmente concluí sobre o seu caso foi o resultado das minhas inúmeras experiências com casos semelhantes ao dele.
Seu desejo por álcool equivalia, em um nível inferior, à sede espiritual de nosso ser pela totalidade, expressa na linguagem medieval: a união com Deus.
Como poderia alguém expor tal pensamento sem ser mal interpretado em nossos dias?
O único caminho correto e legítimo para tal experiência é que ela aconteça para você na realidade e ela só pode acontecer se você procurar um caminho que o leve a uma compreensão mais alta. E você poderá ser conduzido a esta meta pela ação da graça, pela convivência pessoal honesta com os amigos ou através de uma educação superior da mente, para além dos limites do mero racionalismo. Vi pela sua carta que Rowland H. escolheu a segunda opção que, nas suas circunstâncias era, sem dúvida, a melhor.
Estou fortemente convencido de que o princípio do mal que prevalece neste mundo leva a necessidade espiritual não reconhecida à perdição, se não for neutralizada por uma visão religiosa real ou pela barreira protetora da comunidade humana. Um homem comum desligado dos planos superiores, isolado de sua comunidade, não pode resistir aos poderes do mal, muito propriamente chamados de Diabo. Mas o uso de tais palavras suscita tantos enganos que só podemos manter-nos afastados deles tanto quanto possível.
Eis as razões por que não pude dar a Rowland H. plena e suficiente explicação. Estou arriscando-me a dá-las a você por ter concluído pela sua carta decente e honesta, que você já adquiriu uma visão superior do problema do alcoolismo, bem acima dos lugares comuns que, via de regra, se ouvem sobre ele.
Veja você, “álcohol” em latim significa “espírito”, e você, no entanto, usa a mesma palavra tanto para designar a mais alta experiência religiosa como para designar o mais depravador dos venenos.
A receita então é “spiritus” contra “spiritum”.
Agradecemos você novamente por sua amável carta, eu me reafirmo.
Seu sinceramente,
C. G. Jung.”
ANEXO C – Carta de Bill W. a Carl Jung. (traduzida)
Disponível em: < https://passeamensagem.wordpress.com/2013/03/29/carta-de-bill-w-a-carl-jung/>. Acesso em: 12 de ago. de 2023.
Janeiro 23, 1961. Meu Caro Dr. Jung,
Esta carta há muito lhe deveria ter sido enviada.
Devo primeiramente apresentar-me ao Senhor como Bill W. um dos co-fundadores das sociedades dos Alcoólicos Anônimos. Embora seja provável que o Sr. Já tenha ouvido falar de nós, com certeza ignora que uma conversa que manteve com um de seus pacientes, Mr. Rowland, nos idos de 1930, tornou-se uma das regras fundamentais da nossa Sociedade.
Embora Mr. Rowland tenha nos deixados há muito tempo, o registro de sua inesquecível experiência, enquanto sob os seus cuidados, passou definitivamente para a nossa história e é a que passo a lhe relatar: Tendo Mr. Rowland esgotado todos os recursos para livrar-se do alcoolismo, tornou-se em 1931 seu paciente, permanecendo em tratamento, se não me engano durante mais ou menos um ano; após este tempo deixou-o cheio de confiança e com a mais irrestrita admiração pelo Senhor. Contudo para a sua enorme consternação, retornou ao velho hábito.
Convencido de que o senhor era a sua “tábua de salvação”, voltou ao tratamento. O relato do diálogo entre ambos veio a tornar-se o primeiro elo de uma corrente de acontecimentos, que terminaram por induzir a fundação de nossa Sociedade.
A minha lembrança deste relato do encontro entre ambos é que se segue: primeiramente disse-lhe o Senhor francamente que não via esperanças para ele em novos tratamentos, fossem eles médicos ou psiquiátricos. Esta sua posição sincera e humilde foi, sem dúvida, a primeira pedra em que fundamentamos a nossa Sociedade.
Tal afirmação, vinda de quem ele tanto confiava e admirava produziu sobre ele o mais violento impacto.
Quanto ele lhe perguntou se então não haveria para ele alguma esperança, o Senhor lhe respondeu que poderia haver sim e que esta seria a de tornar-se o sujeito de uma genuína experiência espiritual ou religiosa – em resumo, de uma autêntica conversão. Tal experiência poderia motivá-lo mais que outra qualquer, disse-lhe o Senhor. Mas preveniu-o de que conquanto tais experiências tivessem acontecido a alguns alcoólicos, elas eram comparativamente raras. E recomendou-lhe que se colocasse em uma atmosfera religiosa e que esperasse. Esta foi a substância do seu conselho.
Prontamente Mr. Rowland juntou-se ao Oxford Group, um movimento evangélico de grande sucesso na Europa, movimento este que lhe deve ter sido familiar.
Certamente o Senhor se lembrara da grande ênfase que davam aos princípios de autovigilância, da confissão, da reparação e da doação pessoal ao serviço dos outros. Eles também praticavam a meditação e a prece intensivamente. E foi nesta prática que Mr. Rowland encontrou a experiência de conversão, que o libertou, finalmente, da compulsão de beber.
Voltando à Nova York tornou-se membro ativo do Oxford Group, entidade então conduzida pelo Dr. Samuel Shoemaker. Dr. Shoemaker havia sido um dos fundadores daquele movimento e a sua poderosa personalidade era carregada de imensa sinceridade e convicção.
Neste tempo (1932-34) o O. G. já havia recuperado um número de alcoólicos e Rowland, sentindo que poderia identificar-se com aqueles sofredores lançou-se, ele mesmo, no auxílio de outros. Um desses eram um velho companheiro de colégio meu, chamado Edwin T. (Ebby). Ele havia sido tratado por outra instituição, mas Mr. H. e um outro ex-alcoólico do O. G. contataram-se com ele e convenceram a retornar à sobriedade.
Enquanto isto, eu percorria os caminhos do alcoolismo, tentando curar-me por mim mesmo.
Felizmente, acabei sendo cliente do Dr. William D. Silkworth, que era maravilhosamente capaz de entender os problemas alcoólicos. E assim como o Sr. resgatou Rowland, assim também ele me resgatou do álcool.
Sua teoria era a de que o alcoolismo tinha dois componentes: por um lado uma obsessão que compelia o sofredor a beber, contra seu desejo e, por outro lado, uma espécie de dificuldade metabólica que ele chamava de alergia. A compulsão ao álcool garantia que o hábito de beber prosseguiria e a alergia fazia com que o sofredor entrasse em decadência, enlouquecesse ou morresse. Embora eu fosse um dos que havia julgado ser possível ajudar, acabou sendo obrigado a me confessar que já não via mais esperança para o meu caso. Eu deveria considerar o meu tratamento encerrado. Para mim isto foi uma bofetada. Assim como Rowland foi preparado pelo Senhor para a sua experiência de conversão, meu maravilhoso amigo também me preparou para semelhante experiência ao dar-me tal terrível veredicto.
Ouvindo falar sobre a minha recaída, meu amigo Edwin T. veio ver-me em minha casa, onde eu estava bebendo. Era novembro de 1934 e já fazia muito tempo que eu registrara meu amigo Edwin como um caso incurável. No entanto, ali estava ele, no mais evidente estado de sobriedade. Este estado de sobriedade certamente estava relacionado ao curto período em que ele esteve ligado ao Oxford Group e era naquele momento tão evidente, tão distinto de sua usual depressão que me foi tremendamente convincente. Por ser ele um irmão-sofredor comunicou-se comigo em tal profundidade que eu imediatamente senti que deveria buscar uma experiência igual a sua ou então morrer.
Voltei então aos cuidados do Dr. Silkworth; onde pude tornar-me novamente sóbrio, ganhando assim nova visão sobre a experiência da libertação do meu amigo e novo enfoque no caso de Howland H.
Livre mais uma vez do uso do álcool passei a me sentir terrivelmente deprimido, o que me pareceu ser devido a minha inabilidade de adquirir qualquer tipo de fé. Edwin T. visitou-me novamente nesse período, repetindo as mesmas fórmulas do tratamento do O. G. Quando ele me deixou, recaí na mais profunda depressão.
Desesperado, então gritei: – “Se existir um deus, que ele se mostre para mim”. Imediatamente, uma iluminação de enorme impacto e dimensão envolveu-me, uma coisa extraordinária que tentei descrever no meu livro Alcoholics Anonymous, bem como em “A.A. Come of Age”, textos básicos que lhe estou enviando agora.
Meu desligamento da obsessão pelo álcool foi imediato. Senti que me havia tornado um homem livre.
Logo em seguida a esta minha experiência recebi no hospital, das mãos de Edwin o livro de William James, “Varieties of Religious Experience”, livro este que veio me conscientizar que a maior parte das experiências religiosas, as mais variadas têm um denominador comum que é o colapso do ego, a sua queda no maior desespero. O indivíduo tem que se encontrar em uma situação extrema, frente a um dilema insolúvel. No meu caso esta situação, este dilema insolúvel nasceu da minha compulsão à bebida e um profundo sentimento de desespero mais ainda tomou conta de mim quando o meu amigo alcoólico comunicou–me o seu veredicto de incurável, dado a Rowland H.
Durante a minha experiência religiosa tive a inspiração de uma sociedade de alcoólicos em que cada um se identificasse com o outro e lhe transmitisse a sua experiência, em uma espécie de cadeia. Se cada sofredor tinha que dar a notícia do veredicto de incurável que a ciência médica conferia ao ingresso no tratamento, deveria também lhe colocar a possibilidade de uma abertura a uma experiência de transformação espiritual. Este conceito provou ter sido a base de posteriores conquistas dos Alcoólicos Anônimos. Isto fez com que as experiências da conversão, quase tão múltiplas quanto as citadas por W. James se tornassem disponíveis em larga escala.
Nossos associados somavam no último quarto de século o número de 300.000. Na América e através de todo o mundo eles chegam a formar 8.000 grupos de A. A.
Assim sendo, nós do A. A. fomos extremamente beneficiados pelo Senhor, pelo Dr. Shoemaker do Oxford Group, por William James e pelo nosso amigo, o médico Dr. Silkworth.
Como vê o Senhor claramente agora, esta espantosa cadeia de acontecimentos realmente começou há muitos anos, na sala do seu consultório e foi desencadeada pela sua humildade e profunda percepção.
Muitos elementos do A. A. são estudiosos de sua obra. O Senhor endereçou-se especialmente em sua direção devido a sua convicção de que o homem é mais que o intelecto, as emoções e dois dólares de medicamentos.
Os panfletos e outros materiais que lhe envio mostrar-lhe-ão o quanto a nossa sociedade vem crescendo, desenvolvendo o seu espírito de unidade e como ela vem estruturando as suas bases.
O Senhor gostará provavelmente de saber que além da experiência espiritual, muitos A. A. vêm ingressando em outras experiências psíquicas, com considerável força cumulativa.
Outros membros, depois de recuperados nos A. A. têm sido muito ajudados pelos seus assistentes e alguns são estudiosos do I Ching e do admirável prefácio que o senhor fez para este livro.
Esteja certo de que como ninguém mais o senhor ocupa destacada posição no afeto e na história de nossa sociedade.
Muito grato ao Senhor,
William G. W.