Como é belo observar o pulsar da terra com os seres vivos que nela habitam! Opostos que se integram e se harmonizam com a sabedoria de Gaia, considerada a grande mãe na mitologia grega, em forma de mulher, terra ou natureza, que representa a vida cíclica da morte e do renascimento em diferentes dimensões. No amanhecer os pássaros cantam alegres e anunciam mais um dia. No anoitecer, a natureza se silencia e nos transmite a mensagem que é hora de descansar. Sapos, corujas, morcegos, vagalumes, lobos, e outros animais, que com seus diferentes hábitos, iniciam sua jornada noturna, envolvendo os seus sentidos aguçados. Hora de nos recolhermos e nos recompormos. No campo algumas máquinas ainda trabalhando, na cidade o barulho de carros ressoando, pessoas comemorando e moradores de rua se aglomerando. Para alguns, as madrugadas frias acompanham a solidão e para outros a inspiração. Enquanto uns seres dormem, outros acordam. E nossas cidades barulhentas, em nome da modernidade, alteram o nosso relógio biológico, interferindo no ciclo do sono e dos sonhos. Em O Mar Me Quer, o escritor e biólogo moçambicano Mia Couto, reproduziu em seus versos essas sensações: “Digo-lhe dona: quando ficamos calados igual a uma pedra, acabamos por escutar os sotaques da terra”.
Sábia é a natureza, que entre um dia e outro tudo integra e transforma. Pensarmos na imensidão da terra e em tudo que a envolve é muito significativo. Permite-nos mergulhar na infância e percorrer uma vida, possibilita abraçarmos o simbolismo e nos encontrarmos com o mais sagrado, com o berço gerador da natureza e os elementos que dela fazem parte. Jung, sabiamente buscou refúgio na natureza para ampliar os fenômenos da psique humana e, com o sentimento de “parentesco com todas as coisas”, identificou nela os fundamentos lógicos que o ajudaram a compreender melhor essa dimensão. Diante das angústias e de inquietações, dizia: “Mesmo assim há muita coisa que me preenche: plantas, animais, nuvens, o dia e a noite, e o eterno que há no homem. Quanto mais acentua a incerteza em relação a mim mesmo, mais aumenta meu sentimento de parentesco com todas as coisas”. (1987, p. 310).
E qual é a origem da terra? Controvérsias nos acompanham, principalmente quando envolvem as crenças religiosas e o universo científico, delineando sobre o criacionismo e a evolução. De forma idêntica, a história nos mostra que os povos antigos acreditavam nos eventos da natureza como criados por deuses e lhes atribuíam magia, criando mitos para seu entendimento. Gaia, a Mãe-Terra na mitologia grega, considerada como potencialidade geradora e deusa da fertilidade, representada pelos símbolos das frutas e grãos, remete-nos à terra como origem de todas as coisas vivas. Ela contém todos os opostos, representando a capacidade de morrer e de renascer constantemente, sendo ao mesmo tempo jovem e velha, a que alimenta e a que guerreia. Analogicamente, essa potencialidade nos remete a representação do feminino em forma Lilith/Eva (que ensina o masculino a lidar com a polaridade e a transgressão), Maria (a santa que inspira segurança), Helena (que transmite fortaleza e vai para a batalha) e Sofia (a sábia que integra as três mulheres anteriores, harmonizando o bom, o belo e o verdadeiro), contribuição significativa de Magaldi Filho sobre a mulher e o princípio feminino (2014, p. 186-188). Ou quem sabe é a conexão das deusas gregas Afrodite (deusa do amor, da beleza e da sensualidade), Deméter (deusa da nutrição e da maternidade), Atena (deusa da sabedoria, da guerra, da arte, da estratégia e da justiça) e também Perséfone (deusa das ervas, flores, frutos e perfumes). Vindo ao encontro, Neumann escreveu sobre as funções básicas do feminino de proteger e de nutrir, como segue: “O feminino parece ter essa grandeza porque aquilo que é contido, protegido e nutrido, que recebe calor e amparo, é sempre pequenino, o desemparado e o dependente, completamente à mercê do Grande Feminino” (1974, p. 49). De forma idêntica, a escritora Cora Coralina, reproduziu em O Cântico da Terra (2000) essa admiração: “Eu sou a grande Mãe Universal. Tua filha, tua noiva e desposada. A mulher e o ventre que fecundas. Sou a gleba, a gestação, eu sou o amor”.
A composição da terra possui vários elementos químicos naturais na sua crosta terrestre. Entre eles, podemos citar o magnésio, o alumínio, o cálcio, o oxigênio, o silício, o ferro, o titânio, o sódio e o potássio. Quanta riqueza natural e essencial para os seres vivos! Essa mistura de elementos da terra transforma a vida e nos conduz ao campo simbólico da alquimia, representando a materialização, a firmeza e a resistência, que nos permite realizar mudanças significativas, com o objetivo de gerar estados de alma. Segundo Jung, “ao tentar explorar a prima matéria, o alquimista projetava sobre esta o seu inconsciente” (1994, p. 256). O processo alquímico é metafórico, é símbolo transformador de energia que cura, em contínuo movimento de dissolver e coagular, ciclo evolutivo da ampliação da consciência, promovendo a morte e o renascimento. Neste sentido, os principais componentes da transformação alquímica envolvem sete principais operações: calcinatio, solutio, coagulatio, sublimatio, mortificatio, separatio e coniunctio.
A coagulatio é considerada a operação que pertence à terra, que transforma as coisas em sólido pelo resfriamento e envolve a incorporação do ego com a relação do si-mesmo. Em outras palavras e de forma simbólica, nesta operação ocorrem transformações, assim como ocorrem nos consultórios de psicoterapia. As demandas dos clientes, em forma de problemas, angústias e dores, precisam ser purificadas, ou seja, ressignificadas. Neste sentido, envolvem-se os quatro elementos – água, ar, fogo e terra – colocando primeiro fogo para secar as emoções e depois promove-se o distanciamento delas, favorecendo a visão do problema com outro olhar, num estágio mais elevado, com o elemento ar. Ainda, é necessário ajudar o cliente a voltar para a realidade e colocar água, possibilitando o surgimento de ideias criativas. Assim, separa-se o que é viável para transformar em terra, em atitude e concretude, permitindo que o inconsciente se realize e se aproxime do Self.
A palavra terra é pequena, porém uma imensidão envolve seus diferentes sentidos e significados. “Terra à vista”, dizia a expedição portuguesa ao avistar um monte de terra, denominado Monte Pascoal, que hoje é o sul da Bahia. O encontro com a terra nos proporciona uma sensação de segurança. Será que realmente estamos seguros em algum lugar? É interessante observarmos também a sensação de liberdade que temos ao pisarmos na terra depois de um voo longo, de um passeio de barco e de outros meios de transportes. Mesmo em momentos de recreação e lazer que um voo de asa delta ou um mergulho nas profundezas do mar nos proporciona, sentimo-nos aliviados quando somos devolvidos para a terra, que nos permite fantasiar sobre a sensação de controle, que é mera ilusão. Quanto mais controle, menos amor! São emoções que podem ser dissolvidas e coaguladas, misturando a água e a terra.
Pisar no chão é um ato que envolve firmeza, equilíbrio e alegria, que a criança vivencia nos seus primeiros passos. Caminha a criança guiada pelos pais, o adolescente com suas descobertas no grupo, o adulto com a realidade do mundo e o idoso cada vez mais curvado, voltando à terra. Pisar na terra ao mesmo tempo é desafiador, como interpreta Gilberto Gil com a música Não Chores Mais: “Quentar o frio, requentar o pão e comer com você. Os pés, de manhã, pisar o chão, eu sei a barra de viver…”. Pisar o chão envolve os pés, que no simbolismo do corpo, representam as nossas raízes e a nossa identidade. É a origem, o princípio e o começo. Também indica o fim, a meta e o destino. Para a acupuntura chinesa representam a totalidade do corpo. Ao mesmo tempo evocam uma unidade simbólica, como o feminino e masculino, o consciente e o inconsciente, o divino e o humano. Na mitologia, o deus manco é representado por Hefesto, mutilado nos pés pelo seu pai Zeus. Os pés feridos nos permitem refletir sobre a dolorosa realidade humana, com a expressão “sem eira nem beira”, representando o ser no relento, destituído do mínimo para sobreviver. Utilizamos também a expressão “perdi o chão”, diante de surpresas negativas.
As pisadas, as marcas na terra e a demarcação de território, são comuns entre os animais e também entre os humanos. Guerras, disputas pelo espaço, egos inflados, quando a caminhada poderia ser para o Self. Quanto simbolismo, enquanto alguns pisam na terra, pisam também nos outros. E quantos sonham com um “palmo de terra”, um pedaço de chão. Constroem-se estruturas debaixo da terra, da mesma forma que se edificam alicerces para a vida. Neste contexto, o papel da família é fundamental, representando as nossas raízes e a nossa transgeracionalidade. Afirma-se que o ser humano com uma boa base não se perde nos caminhos da vida, porém perder-se nos caminhos da vida pode representar o alicerce para a concretude de novos e desafiadores sonhos.
Terra querida, geralmente compreendido como lugar onde nascemos e crescemos. “Voltar para nossa terra” é uma expressão que envolve emoção, que possibilita ampliar marcas e acessar o nosso inconsciente pessoal e coletivo. Remete-nos à infância e à adolescência, com doces ou amargas lembranças. Da mesma forma, nossa pátria Brasil faz o nosso coração vibrar ao ouvirmos o hino nacional, principalmente quando cantado à capela. Ao mesmo tempo, ficamos perplexos diante das injustiças, das tragédias e das corrupções, que nos permitem pensar que “em terra de cego, quem tem um olho é rei”. Enxergar além das circunstâncias e agir com eficácia pode saciar a fome e a sede do saber e, transformar a realidade.
Terra também é possibilidade de locomoção e de ligação. Constroem-se diferentes caminhos, unem-se cidades e povos e, de forma semelhante erguem-se muros. Os segredos debaixo da terra, assim como as riquezas encontradas pelos garimpeiros e geólogos, podem ser comparadas com as pedras no nosso caminho, que lapidamos em busca da essência. Cavar o subterrâneo é buscar sentido e significado, trazendo o inconsciente à luz da consciência, semelhante ao que ocorre no processo de psicoterapia, momento em que os psicoterapeutas, simbolicamente ajudam a lapidar almas.
Mitos, rituais, diferentes estudos e diversas crenças envolvem a terra. Para a astrologia, ciência que decifra a influência dos astros nos acontecimentos da terra e na vida das pessoas, o elemento terra é encontrado nos signos de touro, de virgem e de capricórnio, os que criam raízes e mantém a segurança e a estabilidade. Por outro lado, locomovem-se com resiliência, praticidade e persistência em diferentes ambientes, escalando montanhas, caminhando em campos, pisando em roças ou percorrendo florestas. Metaforicamente esses aspectos representam colocar a mão na terra fértil para extrair seu sustento.
De forma similar, na Bíblia encontramos várias passagens enfatizando que tudo vem da terra e a ela retorna, como escrito em Gênesis 3, 19: “Com o suor do teu rosto comerás teu pão, até que te tornes ao solo. Pois dele foste tirado. Pois tu és pó e ao pó tornarás.” Enterramos pessoas e enterramos sementes. Assim como as plantas, nascemos, crescemos, reproduzimos e morremos. Mesmo na cremação, as cinzas geralmente voltam para a terra. No contexto da poesia, Cora Coralina (2000), em O Cântico da Terra nos deixou uma ponderação: “E um dia bem distante a mim tu voltarás. E no canteiro materno de meu seio tranquilo dormirás”.
Terra é sinônimo de produção, de alimento e de nutrição, resultante de um espaço que permite o plantio e a colheita. Na música sertaneja, Chitãozinho e Xororó cantam a música Terra Tombada, enaltecendo a terra como “solo sagrado, chão quente, esperando que a semente, venha lhe cobrir de flor”. Terra molhada é solo fértil. A terra tombada lembra a seca, que pode gerar a sede e a fome. No campo, tratores, roçadeiras e colheitadeiras são envolvidas do plantio até a colheita. O trabalho com a terra fascina muitos profissionais, em diversas áreas. Os agrônomos se aperfeiçoam para trabalhar o solo e aumentar a produção. Os sertanejos, os camponeses, os pantaneiros, os lavradores e os agricultores, falam da terra com apropriação, assim como os engenheiros, os ecologistas e os biólogos que conhecem cada detalhe da natureza. O jardineiro, por sua vez, sabe como preparar o florir, sensibilizando e alegrando almas. Em contrapartida, “quem semeia vento, colhe tempestade”. Com a terra acorre o mesmo: todas as ações que envolvem a sua preservação ou a sua destruição, refletem em nós. A natureza devolve o que fazemos com ela!
A terra nos permite afirmação! Quanto sofrimento é gerado ao nos compararmos com os outros, neste mundo acelerado e descartável em que estamos inseridos. Isso nos faz lembrar do poeta Alberto Caeiro (1993), que com linguagem simples e familiar nos presenteou com suas palavras: “Da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver no Universo… Por isso a minha aldeia é tão grande como outra terra qualquer porque eu sou do tamanho do que vejo”. Podemos ver muito ou o suficiente para elevarmos a nossa autoestima e darmos um novo sentido e significado ao que é improdutivo em nossas vidas. Manoel de Barros, outro poeta famoso, há muitos anos dizia que devemos estabelecer uma sintonia com a terra: “Eu queria aprender o idioma das árvores. Saber as canções do vento nas folhas da tarde. Eu queria apalpar os perfumes do sol”. Em outras palavras, a sintonia com a terra nos propicia a paz.
Podemos aprender muito com os ensinamentos da terra, integrando-nos com a natureza, observando ciclos e florescendo em qualquer estação. Precisamos plantar e colher em solo fértil para vivermos com plenitude e para integrarmos os opostos que estão presentes na caminhada. Neste sentido, Magaldi Filho nos traz uma reflexão sobre o processo de enantiodromia, que envolve o princípio de que todas as coisas se transformam: “Do ponto de vista da Psicologia Analítica, pode-se afirmar que tudo que é negado ou reprimido volta de forma obscura e com poderes muito mais elevados que outrora (…) Ou seja, na visão junguiana os opostos devem ser discriminados, diferenciados e integrados (2014, p. 160). Em resumo, podemos nos tornar seres menos fragmentados e estabelecer maior harmonia com a nossa alma ao unirmos os polos opostos.
Para encerrar minhas ampliações, enalteço a terra como uma potencialidade, pelos inúmeros elementos que nos oferece, contribuindo com o nosso propósito de vida e a nossa realização. Da mesma forma, louvo a terra pela possibilidade de ampliar os silêncios, harmonizar os ruídos e integrar os antagonismos, contribuindo com a nossa evolução.
Claci Maria Strieder, Pedagoga, Psicóloga, Especialista em Psicossomática e Psicologia Junguiana, Analista em formação pelo IJEP. – Brasília/DF – Contato: (61) 99951-0003 – e-mail: clacims@gmail.com
Leituras de apoio:
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