Infelizmente, ainda vemos muitos analistas junguianos tomados pelo medo da transferência no contexto psicoterapêutico, empoleirados em suas gaiolas douradas, defendidos com títulos e teorias, apesar de estarem sofrendo, por serem incapazes para o encontro entre almas, que é libertador e curador. Acredito que a razão para isso deve ser a tentativa de institucionalização do fazer da alma, onde os conselhos de classe ou entidades de formação tentam formalizar, regular e limitar essa relação única, que deveria ser livre, expressiva e criativa, num ambiente seguro e amoroso. Outra possibilidade para esse desastre relacional, que replica o atual momento de vazio e liquidez, deve ser pela influência da psicanálise freudiana, ainda presente no universo da Psicologia, que patologiza a transferência e/ou do atual modelo desta medicina da sociedade de consumo, que mercantilizou e expropriou a saúde da vida cotidiana, impondo padrões de controle e segurança, com protocolos e registros para a relação humana entre médico e paciente.
As projeções, a transferência e a contratransferência, são realidades que acontecem em qualquer relação, porque não existe evento livre da influência de um mero observador. Até a mecânica quântica confirma isso nesta citação de Niels Bohr (1885-1962) e colaboradores: “É impossível alcançar um conhecimento totalmente objetivo da realidade. A subjetividade do observador e as condições observacionais influenciam o fenômeno observado”. Carl Jung, sabia e vivenciava isso, respaldado pelas correspondências que teve com Robert Oppenheimer, orientador de Bohr. As influências desses conhecimentos contribuíram para a consolidação das teorias do aspecto psicóide do inconsciente, da sincronicidade e do modelo de relação transferencial, bilateral, que acontece no setting analítico.
A meu ver, a CO-TRANSFERÊNCIA é a resultante do processo relacional que acontece no encontro analítico. Esse deveria ser o termo que Jung queria usar, ao afirmar que essas questões são inevitáveis e bidirecionais. Na realidade, o processo analítico depende desse campo de transformação (das projeções bilaterais com suas transferências e contratransferências), que acontecem dentro de um vaso alquímico contratual, com efeitos mutuamente transformadores, levando a ambos para a imagem arquetípica da coniunctio, o casamento alquímico. Na psicologia analítica o contato é cara a cara, as reações do analista são parte integrante e importante do processo. Por isso sempre afirmo que enquanto Freud trabalhava a transferência, Jung trabalhava NAtransferência!
Projeção e transferência são fenômenos naturais vividos em toda relação. As projeções são frequentemente os suportes de uma relação humana. Aprendi que é um perigo sério fechar-se dentro deste jogo. Só temos a ganhar com a desmistificação da relação analítica, porque ela escraviza tanto o analista como o analisando. […] quando o terapeuta se humaniza na relação com o outro, este tem a possibilidade de se abrir e de viver seu desenvolvimento (BONAVENTURE, 1985, p. 86).
Sabemos que Jung se debateu diante desse tema, mas também sabemos que ele teve uma relação absolutamente íntima com a maioria dos seus clientes que se tornaram analistas. Lembro que li um relato da Von Franz, a respeito da “pressão” que Jung fez para ela começar a escrever, sugerindo temas e depois revisando suas produções, até que ela se tornou, depois de Jung, a analista junguiana com maior produção escrita. Esse foi o caminho da formação dos primeiros junguianos, muita proximidade, intimidade, profundidade, exposição de sombra e, obviamente o grande encontro da alma! Como Jung escreveu na sua autobiografia, o anseio de tornarmo-nos completos é o mais forte impulso humano, e está oculto atrás da paixão mais profunda da transferência, na qual: “Eros, como um kosmogonos, criador e pai-mãe de toda a consciência, nos faz encontrar o maior e o menor, o mais remoto e o mais próximo, o mais elevado e o mais baixo, e não podemos discutir um lado sem discutir o outro, até conseguir baixar os braços e chamar o desconhecido pelo mais desconhecido, ou seja, pelo nome de Deus” (JUNG, in Memórias, Sonhos e Reflexões pp. 353-54). Por isso ele afirma o caráter paradoxal e ambivalente:
A transferência pode ser comparada a aqueles medicamentos que para uns são remédio e, para outros, puro veneno […] certos casos uma mudança para melhor, em outros, um entrave, um peso, ou coisa pior, e num terceiro caso, finalmente, pode ser relativamente irrelevante. Entretanto, é quase sempre um fenômeno crítico que brilha nas mais diversas cores, e a sua ocorrência é tão significativa quanto sua não ocorrência. (JUNG, CW 16/2 § 47).
Creio que, para o analisando, a experiência da transferência é muito importante, e não consigo visualizar em que poderia ser prejudicial o analista discutir sua produção, seu trabalho, sua identificação política e até religiosa, levando em conta o porquê, o para quê, o de onde e o para onde caminha sua vida e se está alinhada com o seu chamado ou servir existencial. Essa reflexão não tem caráter policialesco ou de patrulhamento ideológico, mas irá possibilitar que as crenças do analisado sejam revisitadas, porque são elas as portadoras do destino. O conjunto de crenças podem salvar e curar ou danar e adoecer. Por isso, o encontro do ego com o si mesmo é restaurador e desperta a ética, tão necessária na nossa atualidade.
O fato de o paciente transmitir ao médico um conteúdo ativado do inconsciente também constela neste último o material inconsciente correspondente, através da ação indutiva regularmente exercida em maior ou menor grau pelas projeções. Médico e paciente encontram-se assim numa relação fundada na inconsciência mútua. (JUNG, CW 16/2 § 59).
Jung, no final de sua vida, afirmou que a questão transferencial na análise exige que os conflitos pessoais de amor e ódio, de desejo e medo devem ser trabalhados redutiva e casualmente, de forma que o indivíduo possa ficar ciente das influências que o determinam, mas também incluir o valor prospectivo sintético ou objetivo nessa redução. Porque a transferência, que pode ser considerada negativa, geralmente representa tanto a projeção dos conflitos infantis do analisando, quanto a necessidade de libertar-se dos vínculos com as imagos parentais, e sua superação é o primeiro passo para o caminho de autonomia rumo a evolução individual. Quando são trabalhadas as etapas malsucedidas dos primeiros estágios da vida, surge a possibilidade da separação destas identificações inconscientes com os valores parentais, e o caminhar para a idade adulta. Com isso, a transferência predispõe à união do ego com a alma, porque essas projeções entre analista e analisando são arquetípicas.
Hillman traz a ideia do espaço necessário ao erro na análise, por ser impossível qualificar, neste contexto, o que seja certo ou errado. A imposição de sucesso, geralmente estimulando os analisandos a irem para fora e para frente nas suas conquistas materiais, não leva em conta que sucesso e fracasso podem não ser polos opostos de uma planilha cartesiana, porque toda análise é fracasso e sucesso ao mesmo tempo. O analista pode se permitir o erro, porque certo e errado coexistem compensatoriamente, assim como a transferência e a contratransferência, que orienta e desorienta, mas possibilita a expansão do ego, rumo à dimensão anímica e espiritual de ambos os envolvidos. Nessa dimensão, podemos aprender e ensinar que todo engano da vida, nossa fraqueza, nossos erros, incluindo o processo analítico, antes de serem reparados, racionalizados, interpretados, explicados, podem ser os caminhos para a experiencia do fracasso, o ressignificar das crenças e valores, na forma de mensagens do mundo das sombras, que nos impõe a falha para que possamos adentrar, conscientemente, no processo de individuação. Esse é o fluir da vida, por isso que Rubem Alves, no auge de sua sabedoria e idade, afirmou que a vida dele foi o resultado de tudo aquilo que ele planejou e fracassou. Desta forma, a possibilidade da falha do analista alivia o medo da falha do analisando, vivenciando seus descaminhos de maneira mais natural.
Por isso, os analistas que ainda alimentam a fantasia de sucesso e, obviamente, medo do fracasso, estão em contínuo mal-estar! É uma ilusão acreditar que alguém possa entender, saber, julgar e auxiliar o outro, separado e sem ser afetado por ele. Somente unido por um laço amoroso com o outro, pensando e sofrendo a situação que ele vivencia, é que podemos, empaticamente, ajudar e crescer junto com ele. Obviamente, para isso, o analista tem que descer do salto e de sua gaiola dourada, assumir sua sombra, desconstruir sua persona profissional baseada em normas, protocolos, burocracias e rotinas profanas, que servem apenas para protegê-lo e encobrir suas inseguranças, medos e incertezas, e construir consciente e consequentemente sua nova persona, que obviamente terá certa assimetria ascendente diante do seu analisando, mas completamente envolta de coragem, ação do amor, humildade, certeza e fé na potencialidade curativa do Self.
Estas são as razões que para a formação de membros analistas do IJEP, além do curso de especialização, exigimos horas de supervisão e de análise com membros didatas. E a supervisão deve ser exclusivamente de discussão de casos. Nas horas de supervisão não pode haver desvios como estudos de teoria, leitura de livros ou discussão da produção escrita dos supervisionados, porque a função do supervisor é a de um revisor do atendimento clínico do supervisionado, aquele que irá visitar novamente o atendimento do supervisionado, para ampliar a visão do caso, orientar e validar a prática clínica do supervisionado, de acordo com a teoria e práxis da psicologia analítica, por conta da sua experiência e superioridade hierárquica.
Por isso, o analista didata precisa estar consciente destas identificações projetivas e ter muito cuidado para não assumir papeis reativos e defensivos, sempre atento ao aspecto sombrio e aos complexos do analisando que podem estar sendo constelados ou projetados. O filho desperta o pai ou a mãe; a vítima o algoz; o aluno o professor; a criança o cuidador; o incompetente o arrogante; e assim por diante. É um desafio para ambos, manter a relação analítica sem tanta influência das contaminações, porque além da análise propriamente dita, como a proposta inclui o aspecto didático, dará espaço para o processo pedagógico da formação do novo analista, incluindo além das questões redutivas causais e prospectivas sintéticas, a capacitação do futuro analista, ajudando-o nas produções escritas e na sua evolução profissional.
BONAVENTURE, Leon. Entrevista. In: PORCHAT, Ieda. & BARROS, Paulo. Ser
HILLMAN, James. Estudos de psicologia arquetípica. Rio de Janeiro: Achiamé, 1981.
JUNG, Carl Gustav. (CW 16/2). Ab-reação, análise dos sonhos, transferência. Ed. Vozes
WALDEMAR MAGALDI FILHO. Psicólogo, especialista em Psicologia Junguiana, Psicossomática e Homeopatia. Mestre e doutor em Ciências da Religião. Autor do livro: “Dinheiro, Saúde e Sagrado”, Ed. Eleva Cultural, coordenador dos cursos de especialização em Psicologia Junguiana, Psicossomática, Arteterapia e Expressões Criativas do IJEP (www.ijep.com.br), oferecidos em Brasília, Rio de Janeiro e São Paulo.