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Uma reflexão sobre a psicologia masculina: zeus, poseidon, família corleone e dramas do homem contemporâneo

masculinidade e jung

Como é sabido, na mitologia grega, em uma das versões aceitas, após vencer os Titãs, os deuses Zeus, Poseidon e Hades sortearam qual seria o reino destinado aos cuidados de cada um, sendo Zeus o sorteado para ser o responsável pelos céus, Poseidon pelos mares e Hades pelo submundo (Bolen, 2002). Também é sabido que toda a mitologia grega pode ser compreendida como uma representação arquetípica dos dramas humanos atemporais, em suas virtudes e vicissitudes (Jung, OC 9/1, 2012).

Uma olhada rápida para as glórias e infortúnios dos deuses mencionados acima nos abre um leque de análise importante para a psicologia masculina (Brandão, 2015). Outros deuses e suas aventuras também poderiam ser considerados nesta análise, mas quero me concentrar especialmente na visão do Zeus e Poseidon constelados no homem contemporâneo.

Não é objetivo do texto propor um aprofundamento nas aventuras dos dois deuses, uma vez que se parte do pressuposto que podemos conhecê-las em livros especializados como, por exemplo, a trilogia de Junito de Souza Brandão (Mitologia I, II e III) ou os estudos da Jean Shinoda Bolen (Os deuses e os homens / As deusas e a mulher).

Uma consideração a se fazer é que, como representação simbólica da psique, cada deus encerra em si uma totalidade em que estão contidos aspectos polares, ou seja, há um conflito de opostos dentro de cada deus mítico. Podemos compreender Zeus em sua dimensão sagrada, de justiça, solicitude e estratégia, assim como em sua dimensão profana, de crueldade, vingança e autoritarismo. O mesmo vale para Poseidon. 

Por outro lado, em termos de ampliação simbólica e para fins didáticos, também é possível compreender dinâmicas da psique em que, contextualmente, um deus represente o oposto do outro, tal como sugere Nietzsche quando ele estabelece a polarização entre Apolo e Dionísio (in Jung, OC, 2013), na qual estes deuses representam simbolicamente, dentro da mesma unidade psíquica, um par de opostos.

Ainda que não haja um aprofundamento na dinâmica Zeus e Poseidon neste artigo, é importante fazermos ao menos uma pequena contextualização de suas características para embasar a reflexão proposta.

Zeus, apesar da designação de deus dos céus, acabava por ter uma liderança geral perante todos os deuses, até mesmo no Olimpo, território, supostamente, livre para todos os imortais. Ele se caracterizava por ser um deus estratégico, sábio e, na maioria das vezes, justo em seus acordos. 

Em outra perspectiva, era extremamente furioso e com uma relação instável com o universo feminino. Diversas vezes se disfarçou para conquistar suas parceiras, e quando estas o recusavam, ele as tomava à força. 

Poseidon, por sua vez, era o irmão de Zeus, tendo sido sorteado para ficar com os mares. Guardava em si uma certa gana de um dia tornar-se líder dos deuses, posição informalmente ocupada por Zeus, na visão exposta especialmente por Bolen (2002).

Era um deus extremamente emocional e quando rejeitado se enchia de ira, normalmente expressando isso por maremotos e afins. Em seu outro aspecto, ele procurou diversas vezes ajudar outros deuses (ou mortais) em situação de risco ou perigo, usando de sua força e reinado sobre os mares para resolver as situações, sendo este um aspecto positivo de sua divindade. Também não tinha um bom termo com as mulheres, sendo rejeitado por elas em diversas ocasiões.

Se fizermos uma aproximação com a tipologia junguiana, poderíamos dizer que Zeus era regido pelo mundo do pensamento, ao passo que Poseidon era regido pelo mundo do sentimento. Mas como seriam esses deuses expressos arquetipicamente na psicologia masculina?

Uma comparação que me parece interessante é a do filme “O poderoso chefão – I”, em que Don Vito Corleone expressa em seu perfil aspectos da imagem arquetípica de Zeus. Ele é líder soberano da máfia ítalo-americana, um homem articulador, poderoso, respeitado, que preza pela justiça e contrapartidas, fazendo também o uso de seus capangas para acertar as contas com aqueles que não tiveram “respeito” pelas suas negociações. 

Don Corleone tinha três filhos e uma filha. Como podemos prever, nesse contexto patriarcal, a filha pouco valor tinha nesse mundo de “deuses” encabeçado por seu pai. Contudo, foi justamente a personagem dela que teve um papel crucial num acontecimento trágico, mostrado numa cena chocante: o assassinato de seu irmão Santino, também chamado Sonny – e essa cena nos ajudará na compreensão deste texto.

Os três filhos homens de Don Corleone eram Michael, Fredo e Santino. Michael era o filho predileto, que ao meu ver é possível aproximar sua imagem ao deus Apolo, um dos filhos prediletos de Zeus (mas não embarcarei na discussão do perfil de Michael, que no contexto do filme foi exatamente quem sucedeu o pai no “trono”). 

Fredo era o rejeitado, absorvendo para si toda a sombra de fracasso e deslealdade que rondava a família Corleone. Tinha em si algo de Dionísio, que em sua passagem mitológica guarda um histórico a rejeição familiar, tal como Fredo, que também era sutilmente rejeitado por sua família, além de ter uma personalidade com baixa expressividade. Não seria errado vermos características de Hefesto em Fredo também.

Santino era, antes da chegada de Michael (que estava ausente da família para cumprir serviços militares), o suposto sucessor de seu pai. Simbolicamente seria o Poseidon que queria tornar-se Zeus. Santino era ávido por assumir a liderança dos negócios (ilícitos) da família. Era um rapaz altamente emocional e explosivo, nada conciliador e pouco estrategista. Procurava se impor pelos gritos e impaciência para com seus apadrinhados. Mas não media esforços para garantir a honra da “famiglia”.

A filha de Don Corleone, Connie Corleone, casou-se com um rapaz que se mostrará altamente violento para com ela e misógino (o que não chega a ser uma surpresa, dada a referência de masculino que Connie tinha na família).

Ao saber de uma das diversas agressões sofridas pela irmã, Santino sai em disparada em seu carro, sozinho, sem a devida proteção de seus seguranças, e é surpreendido por uma rajada de metralhadoras que destrói seu carro, uma cena épica para a história do cinema. Ele não resistiu aos ferimentos, assim como não resistiu à possessão emocional de seus complexos.

Em nossa sociedade patriarcal existem muitos homens com o arquétipo de Zeus constelado, tanto em seu aspecto luz, quanto em seu aspecto sombra, sejam eles líderes políticos, institucionais ou organizacionais. Normalmente são homens com frieza emocional, mas com ótima capacidade de articulação política a estratégica, e que, em seu aspecto sombra, não estabelecem um bom termo com suas animas, aspectos do simbólico feminino presente nos homens, mas que ainda assim são venerados e respeitados em seus respectivos “tronos”. 

Emma Jung (2006) nos explica que a anima “representa o componente feminino da personalidade do homem, mas ao mesmo tempo a imagem do ser feminino que de modo geral traz em si; em outras palavras, o arquétipo do feminino” (pág. 57).

Um dos caminhos para o desenvolvimento do homem-Zeus, é justamente trazer à tona o universo do sentimento, abrindo espaço para que outros aspectos de sua personalidade emerjam, a fim de evitar o sofrimento emocional que a ausência do amor altruísta e o auto amor podem trazer, expressados na infinita busca por poder. Esse é o caminho sugerido para que se integre na psique os aspectos positivos da anima.

Já Poseidon, ocupa em nossa sociedade um espaço que me parece até mais perigoso do que o de Zeus. São homens que em seu íntimo queriam ser Zeus, e que não medem esforços para atingir esta meta psíquica. Porém, na maioria das vezes, são tomados por seus complexos de inferioridade, e se expressam como crianças mimadas, querendo ganhar “no grito” ou “na força” o poder que não lhes foi outorgado. Faltam-lhes a capacidade estratégica de Zeus. 

Assim como Santino foi tomado de ira, sem ponderar os riscos de uma ação intempestiva, Poseidon não hesita em expressar sua fúria como deus dos mares. Mas vale lembrar que, dentre muitas representações simbólicas, o mar (ou oceano) pode ser visto como o inconsciente. Um homem-Poseidon que não consegue estabelecer um bom termo com a força do inconsciente, buscará incansavelmente o trono de Zeus, mas de maneira intempestiva, passional e desajustada.

Não raro, vemos políticos se estapeando publicamente, muitas vezes tomados pela ira de Poseidon, deixando escapar pelos tabefes de suas mãos seus complexos de inferioridade perante a soberania de um Zeus qualquer.

O caminho para o desenvolvimento do homem-Poseidon é justamente buscar a integração com a sabedoria e a capacidade analítica que o habita, tal como o pensamento de Zeus. Isso só pode ser feito se houver uma aceitação de que ele não é, a priori, um homem-Zeus. Ele deve entrar em contato com seu inconsciente, a fim de evitar que seja tomado de assalto pelos seus complexos, reconhecendo-os e lidando com eles, fazendo isto especialmente no processo de Análise Pessoal.

Santino Corleone (homem-Poseidon) foi assassinado quando teve de resolver um problema da sua irmã (imagem de sua anima), deixando correr pelo seu corpo uma ira incontrolável. Simbolicamente, se ele tivesse chamado para si a sabedoria de Zeus e não a intempestividade de Poseidon, talvez tivesse ocupado o lugar que tanto almejava, evitando sua morte prematura. Neste contexto, a morte prematura de um homem-Poseidon, é justamente não conseguir sair de seu imbróglio emocional, não conseguir transitar para o universo da sabedoria, ficando refém de seus próprios complexos.

No filme, a irmã de Santino o chama para salvá-la das mãos do marido violento. Foi um chamado da anima, que em seu aspecto psicopompo na psicologia masculina, o colocou em contato com uma situação de crise, e com isso abriu a possibilidade para que o conflito fosse enfrentado de maneira sábia e que, para a desgraça da família Corleone, não foi compreendido dessa forma por Santino.

Na psicologia masculina, a anima vai sempre fazer um chamado, colocando o homem diretamente em contato com os seus complexos. Cabe a este decidir como lidar com eles, pelo caminho do desenvolvimento que, por exemplo, a Análise Junguiana propõe ou pelo caminho da dor, em que os complexos não compreendidos, e supostamente abafados pela consciência, podem causar.

Em tempos de polaridades políticas e anseios por poder nas organizações e instituições, geradas pelos aspectos negativos do patriarcado, é imperativa a necessidade dos homens se aprofundarem nos mistérios de suas almas (animas) a fim de enfrentar seus complexos (maternos, paternos, de inferioridade, de insegurança, dentre outros) e, em que por meio do seu processo de desenvolvimento individual, ele contribua para a melhoria de toda coletividade. Reciprocamente, as mulheres também precisam fazer esta mesma jornada na direção de seus animus.

Zeus e Poseidons são necessários, mas viver somente na sombra de suas deidades, faz dos homens reféns de si mesmos, de seus complexos. Isto é o inverso do potencial criativo, da justiça, da estratégia e da temperança que estes deuses podem proporcionar.

Rafael Rodrigues de Souza é Psicólogo e Analista Junguiano em formação pelo IJEP. Atende em seu consultório particular na Vila Mariana em São Paulo.

Referências:

BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia grega, vol. I. 25ª ed. Petrópolis: Vozes, 2015.

BOLEN, Jean Shinoda. Os deuses e o homem: uma nova psicologia da vida e dos amores masculinos. São Paulo: Paulos, 2002.

JUNG, Carl Gustav. Os arquétipos e o inconsciente coletivo (v. 9/1). 8ª ed. Petrópolis: Vozes, 2012.

JUNG, Carl Gustav. Tipos Psicológicos (v. 6). 7ª ed. Petrópolis: Vozes, 2013.

JUNG, Emma. Animus e anima. Cultrix: São Paulo, 2006.

O PODEROSO CHEFÃO I (filme). Direção: Francis Ford Coppola, Produção: Albert. S. Ruddy. Estados Unidos da América, DVD, 1972.

Rafael Rodrigues de Souza 

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