Ao imaginar a escrita desse artigo me ocorreu de o futuro leitor pensar: “mas quem é esse sujeito arrogante querendo escrever sobre a arrogância?”. E o mais interessante é que o simples fato de eu pensar isso é um ato arrogante, pois quem disse que meu texto será suficientemente atraente para despertar o interesse da leitura de alguém, mesmo que seja para falar mal? A arrogância! Então podemos afirmar de antemão que a arrogância está (quase) sempre presente.
Curiosamente, o primeiro artigo de minha autoria publicado no site do IJEP, em 2017, foi sobre Van Gogh, um sujeito que inspira naqueles que conhecem sua biografia uma ideia de humildade enquanto artista, quase que ignorante de sua genialidade, e meu segundo artigo foi sobre os preceitos umbandistas da fé, humildade e compreensão. Imagino a humildade como o par oposto à arrogância, então talvez esse artigo seja complementar a estes dois primeiros. Partindo disto, parece interessante problematizar a arrogância sob a ótica da psicologia junguiana, tanto no seu aspecto luz, como em seu aspecto sombrio.
Nossa questão é: como o pensamento junguiano pode nos ajudar a compreender a psicologia da arrogância no indivíduo?
Primeiro, digo que uso “pensamento junguiano” porque optei por uma escrita ensaística, com base nas ideias e preceitos de Jung, mas sem a rigorosidade de fundamentação teórica, apesar de utilizá-la indiretamente o tempo todo. Segundo, esclareço que o uso do termo “psicologia” no título do artigo é no sentido estrito da palavra, ou seja, qual seria a compreensão, o “logos” psíquico, das pessoas tidas como arrogantes? É isso que tentaremos responder nos parágrafos seguintes.
Um princípio que parece negligenciado no campo junguiano é o fato de a arrogância ser típica em pessoas que têm um padrão dominante de introversão na consciência, já que, inconscientemente, defendem uma superioridade do ego, não raro inflando este ego de forma a se identificar com Self (ego = algo menor e Self = algo maior, logo, um não pode ser igual o outro; Self > ego). Explica Jung em Tipos Psicológicos (OC 6), não exatamente com essas palavras, que o introvertido é o sujeito que prevalentemente é o mais “cheio de si” – eu sei que isso pode causar estranhamento, devido ao conhecimento baseado no senso comum do que seria a introversão, que à reduz a uma ideia de fragilidade, vulnerabilidade, timidez ou algo assim. Por ora, digo que a introversão é mais complexa que esse reducionismo teórico, mas vamos entender arrogância da introversão. Em seguida também falaremos da arrogância da timidez em específico, que parece ser algo importante de se explorar.
Aquelas falas típicas dos introvertidos de que “não gostam de sair de casa”, que “gostam do seu sofá”, que “não gostam de estar com pessoas”, “que pessoas lhe cansam”, apesar de serem parcialmente verdadeiras, são também um mecanismo de defesa.
Isso que se dá porque, na verdade, o que o sujeito da introversão demonstra com esse discurso é que ele quer evitar sua exposição a relações humanas, dado que isso o mantém em sua fantasia de poder, tal como brilhantemente Adler pontuou em sua Psicologia Individual (Adler, 1967). Em outros termos, o que sugerimos é uma espécie de inversão, pois é como se o sujeito (o ego) se sentisse tão importante que não lhe caberia se expor em situações que potencialmente confrontem sua posição já estabelecida, afinal, “desocupar” essa posição, revelaria que ele também tem vulnerabilidades, algo impensável de se expor!
No universo junguiano não é incomum escutar “não gosto de me expor, sou introvertido”. Considerando uma leitura mais autêntica de si, a pessoa deveria falar a verdade em vez de usar a introversão como defesa. Então a frase deveria ser assim “não gosto de me expor, dado que isso daria a chance de perceberem publicamente que sou uma pessoa desinteressante ou insegura, por isso prefiro me proteger, assim ninguém descobre algo sobre mim que não quero que descubram”. Outro dia testemunhei algo parecido com isso quando alguém expunha as qualidades de seu próprio livro a um potencial comprador. Uma pessoa do campo junguiano que não ia comprar o livro, e que presenciou a cena, comentou ao autor do livro “mas que autoexaltação toda é essa?”, eis que o outro retruca, num misto de ironia e seriedade, “você venderá meu livro por mim?”, prontamente ela disse com certo orgulho “nem as minhas qualidades eu exalto”, o autor retruca, “pois deveria…”.
É interessante notar que existe arrogância tanto no vendedor do próprio livro, que provavelmente estava inflando as qualidades de sua escrita – como qualquer vendedor faz com seus produtos de venda –, tanto naquela pessoa que vocifera contra a autoexaltação; se orgulhar de não proclamar as próprias virtudes como se isso fosse maior ou melhor do que quem as proclamam também contém aspectos arrogantes. São dinâmicas opostas na consciência, mas com núcleos de arrogância semelhantes. É como se a outra pessoa dissesse “olha como eu sou alguém especial, pois não preciso falar de minhas qualidades”.
Na extroversão a arrogância também se faz presente, dado que o excesso de exposição, mais típica nesta tipologia, é tão unilateral e arrogante quanto à não exposição, pois aquele que requer holofotes para si o tempo todo também é aquele que quer “provar” externamente que tem muito a dizer, que suas contribuições são muito importantes, já que no íntimo, inconscientemente, não considere suas observações tão relevantes assim. É aqui que o prepotente “entrega” que, na verdade, é um impotente internamente.
Outra expressão inconsciente da arrogância que tem alguma relação com a introversão, como introduzimos mais acima, é a timidez.
Diferenciemos constrangimento de timidez. Por exemplo, você levar um tombo em público, ter um lapso de fala numa palestra, ser desqualificado por um chefe, são situações potencialmente constrangedoras. Timidez é outra coisa, e muitas vezes é confundida com humildade. Ela se refere a uma pessoa que tem dificuldade de se expor em situações sociais que em tese não representam uma ameaça significativa, tais como, na condição de aluno, não conseguir fazer perguntas publicamente em sala de aula, na condição de terapeuta – para enviesar o texto para nosso público hegemônico – participar de supervisão em grupo, mas não conseguir levar casos ou fazer perguntas sobre os casos do colega, ter vergonha de chamar o garçom num restaurante para pedir a conta, pois “todos estão olhando” e por aí vai, pois os exemplos não cessam.
É esperado que ao longo do desenvolvimento da personalidade crianças e adolescentes tenham situações de timidez, especialmente no momento das descobertas amorosas, mas a manutenção exacerbada disso ao longo da vida é só uma faceta da arrogância na perspectiva do inconsciente. Expliquemos. Na dinâmica inconsciente do tímido a situação é a seguinte: eu sou tão perfeito, maravilhosamente intocável, que o mundo tem que me amar, me aceitar, me acolher, me abraçar rigorosamente do jeito que eu sou, do jeito que penso, do jeito que espero que ele me receba, pois do contrário, serei refratário a ele.
Na consciência fica um discurso mais estereotipado: “não consigo fazer isso, pois todo mundo está olhando pra mim” – será que “todo mundo olhar” não é um ato arrogante? Todo mundo é muita coisa! Se pararmos para pensar, é dever da coletividade se moldar para atender aos desejos do tímido? Parece que não. Por outro lado, é dever do tímido fazer tudo que se espera dele só para atender a um ideal coletivo? Também parece que não. Retomemos a ideia mítica do métron, a justa medida, que evoca um bom termo entre os diferentes e os opostos.
Que fique claro que essa antinomia, timidez consciente VS. arrogância inconsciente, não acontece simplesmente por vontade do sujeito, ela é fruto de um embate típico entre consciência e inconsciente. Portanto, podemos concluir que em todo tímido habita uma arrogância sombria ou inconsciente…, mas e a sombra do arrogante típico, qual é?
O que consideramos um arrogante típico é o sujeito do “beijinho no ombro”, cheio de si, que adora exaltar as próprias qualidades de forma a, inconscientemente, desqualificar o outro – para se qualificar?! Não sabemos. Não raro, não se dá ao trabalho de escutar outras pessoas, afinal suas ideias são sempre as melhores; se incomoda quando escuta elogios feitos a outras pessoas que não a ele; menospreza qualquer pessoa que julgue não estar à altura da sua envergadura social, financeira, política, intelectual, espiritual, moral, dentre outras. Na época de escrita deste artigo, no primeiro semestre de 2025, veio a público um entrevero entre uma passageira brasileira e um grupo de comissários de bordo dentro de um avião da American Airlines, de forma que a passageira vocifera no meio da discussão se direcionando aos comissários: “você não sabe com quem você está falando!”.
Não somos juízes do problema em questão, dado que isto é entre ela e a companhia aérea, mas existe pergunta (ou afirmação) tipicamente humana mais arrogante do que “você sabe com quem está falando”? Sabemos sim, com uma pessoa arrogante! E para não deixar de falar, uma frase que me parece cada vez mais comum é “na minha humilde opinião tal coisa deveria ser assim”. Troquemos. O certo deveria ser “na minha pretensa humilde opinião, que eu quero que você engula goela abaixo, tal coisa deveria ser assim…”. Parece-me deveras arrogante atribuir a si a condição de humilde.
Nesses casos que descrevemos a arrogância é evidente, patente, pública, e revela que na sombra desse sujeito habita alguém que é inseguro, que tem uma constante sensação de esvaziamento de si, de ilegitimidade, de ausência de potência; exacerba suas qualidades a fim de esconder de si seu próprio desvalor. O tímido é inseguro por fora e arrogante por dentro; o arrogante sugere segurança por fora, mas é inseguro por dentro. O tímido, por vezes, exalta sua – suposta – humildade, enquanto o arrogante muitas vezes é vaidoso.
Por falar em vaidade, ela também é uma das diversas expressões da arrogância.
Mas a olhemos de maneira mais abrangente. Vou usar um exemplo típico entre terapeutas já que, novamente, são os leitores predominantes deste blog. Com o advento das redes sociais muitos terapeutas passaram a utilizá-las para disseminar conhecimento e promover sua imagem via vídeos, às vezes de “dancinha” ou algo similar – não estamos discutindo a qualidade do conteúdo, só o fato em si. Tal ação, frequentemente, é repreendida por outros terapeutas dizendo que tais terapeutas só divulgam esses vídeos em função de suas vaidades. Talvez aqueles que repreendam os que gravam vídeos de “dancinha” estejam corretos sob determinados aspectos. Mas é preciso dizer que não gravar vídeo também é vaidade. É a vaidade daquele que entende que para conseguir clientes para seu consultório existem outras formas que não via vídeos. É como se a pessoa dissesse: “eu sou melhor que você, pois não cedo à vaidade de gravar vídeos para as redes sociais”, disse o vaidoso. Tudo é vaidade, tal como descreve o texto bíblico do Eclesiastes.
Por outro lado, também há o sujeito que grava vídeos e que atormenta a vida dos não fazedores de vídeos, defendendo a ideia de que eles perdem muito (não sei o que) em não usar esse recurso… Em Eclesiastes estaria “vaidade das vaidades”, mas eu diria “arrogância das arrogâncias”. Será que simplesmente não caberia deixar quem é do vídeo com o vídeo, e quem é do não vídeo sem vídeo?
Diversos outros exemplos poderiam ser mencionados aqui, tais como a arrogância do intelectual, que se pensa mais conhecedor e sábio do que outros, a do executivo empresarial, que se pensa superior às pessoas que lidera, a dos abastados financeiramente, que se sentem melhores do que aqueles que têm condições financeiras precárias etc.
Mas, como sempre, a recíproca é verdadeira, pois aquele que mal lê, só se informa pelo “grupo do zap” e vocifera contra os intelectuais, diz que não precisa ler um monte de livros para ser “uma pessoa melhor”. Já o funcionário “padrão” investe (gasta) um tempo enorme nos bate-papos “do café” dizendo quanto o seu chefe conduz mal seu trabalho e que só está lá “por QI”, desqualificando possíveis competências profissionais deste chefe. Na prática, ambos só retroalimentam sua própria arrogância, verbalizando para o mundo quanto sua perspectiva de vida é, em tese, maravilhosa – tipo aqueles sujeitos que dizem que “Paulo Freire é um energúmeno”.
Num livro de autoria de James Redfield, não lembro se em A décima profecia ou em O segredo de Shambhala, há uma passagem que diz que todas as pessoas pensam que a forma como elas lidam com a vida é sempre a melhor forma possível de se fazer isso. Eu diria que “todas” (assim como “todo mundo”) é muita coisa, mas ao mesmo tempo, a fala não me parece absurda.
E afinal, o que é arrogância? É o contrário de rogar.
Rogar é suplicar, pedir com humildade, implorar por algo. Logo, arrogar, é o contrário disso, ou seja, é trazer para si a responsabilidade de tudo, é a admissão de que apenas a própria existência é o suficiente, destituindo-se a necessidade do rogar e da necessidade de receber ajuda de alguém. O ponto é que apesar de o senso comum argumentar que a arrogância é algo ruim, do ponto de vista psicológico precisamos fazer contornos mais adequado e dar a César o que é de César.
A arrogância, no sentido que a conhecemos, que congrega em uma pessoa a antipatia, a deselegância e a autoexaltação, é um tanto chato mesmo. Mas existe um detalhe entre o arrogante e o rogante: a projeção. É típico que um rogante encontre sua arrogância no outro, projetada, ao passo que o arrogante encontre o seu rogar no outro, projetado. Em outras palavras, não podemos esquecer que existem pessoas que são genuinamente seguras de si, possuem convicções que encontram correspondência em situações plausíveis (experiência, conhecimento, ciência etc.), têm boa dicção, voz, postura e opiniões firmes, têm reconhecimento público em determinado tema (esporte, arte, cultura etc.), sabem expor suas ideias de maneira convincente, dentre uma série de adjetivos que poderiam colocá-las com a insígnia de arrogantes. Será?
Me recordo de uma passagem referente ao reconhecido profissional de TV José Bonifácio Sobrinho, ou Boni. Em certa entrevista ele contou que em algum momento Silvio Santos quis contratá-lo para o SBT (Boni era da Rede Globo), mas esse contrato limitaria seus poderes em relação aos que ele já tinha na Globo. Optou por ficar na Globo, alegando que sua experiência era suficientemente sólida e que conhecia muito bem os mecanismos da televisão, não cedendo aos limites que Silvio queria impor. Arrogância? Acho que não, é a experiência aliada à segurança. Gostemos ou não, a “cara” da televisão brasileira tem o “dedo” do Boni, hoje dono de sua própria televisão, a Rede Vanguarda.
Tomemos esse exemplo para outras áreas da vida. Em quantas situações investimos a nossa própria arrogância, projetada, para descrever quanto pessoa A ou B é arrogante? Ou ao contrário, quanto depositamos no outro o nosso rogar? Como saber em que momento houve um enredamento da arrogância sombria de um com a postura de segurança do outro? Naturalmente, se pensamos no processo de análise, uma pessoa que está realmente dedicada à experiência analítica, disponível para o exercício do contraditório, susceptível à reflexão genuína, potencialmente terá recursos para diferenciar o que é dela e o que é do outro. Mas se a vida da pessoa é pautada na busca pela legitimidade externa, já que intimamente se sente ilegítima, seja introvertida ou extrovertida, muito provavelmente ela se sentirá “preenchida” apenas quando vociferar contra aqueles que, em tese, atentam contra sua – insignificante? – existência.
Sei que comecei este texto num tom que parecia ir para o caminho de detratar o arrogante e chego ao fim dando a entender que o estou defendendo. Se você entendeu assim, acho que não consegui fazer a devida diferenciação. O desafio, na verdade, é justamente delinear qual é a justa medida entre sustentar saudavelmente as próprias convicções e viver de maneira plena tal situação, versus exacerbar as próprias posições, sendo para fora ou para dentro, como forma de se defender e paradoxalmente atacar o mundo. Em tese, uma atitude de buscar conhecimentos genuínos, experiências saudáveis, relações com pessoas que “provocam” criativamente (e não que bajulem), são situações que potencialmente ajudam a pessoa a discernir entre a arrogância e a segurança. Por outro lado, se fôssemos listar uma porção de regras de como “não ser arrogante”, seria também arrogante. Cabe-nos buscar esse espaço criativo entre o rogar e o arrogar, dado que a unilateralidade de um coloca o outro na sombra.
A arrogância repousa num terreno pantanoso, que a tudo engole e nada sustenta, seja esta numa expressão mais óbvia, evidente, ou numa expressão mais sombria, latente.
Mas o rogar unilateral, terceiriza a responsabilidade, sem assumir que é preciso se posicionar pessoalmente diante de determinadas situações, sem atribuir a algo ou a alguém as próprias decisões. Aquele que é arrogante talvez precise de um encontro com o seu rogar interior. Aquele que é tímido ou que se identifica como alguém “humilde”, talvez precise de um encontro com o seu arrogante interior. E aquele que tem segurança e recebe as projeções sombrias do rogante e do arrogante, e que ao mesmo tempo roga e arroga, nada há a fazer, a não ser seguir, sem se distanciar da insegurança interior.
Rafael Rodrigues de Souza – Analista Didata em formação IJEP
Waldemar Magaldi – Analista Didata IJEP
Referências:
ADLER, Alfred. A ciência da natureza humana. 6 ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1967.
JUNG, Carl Gustav. Tipos psicológicos (OC 6). 7 ed. Petrópolis: Vozes, 2013.