Resumo: O presente texto visa trazer um pouco de reflexão no que anda ocorrendo na psique coletiva, dentro do mercado das BETS, das últimas notícias e dos dados alarmantes que envolvem esse segmento no Brasil. O crescimento dos números e o aumento de problemas ocasionados pelas apostas online, seja em caráter social, psicológico ou financeiro, deixam essa questão em nítida evidência, trazendo um certo olhar de atenção para o que está por trás desse fenômeno que tem impactado negativamente a vida de muitas pessoas. Por isso, esse artigo busca ampliar essa questão através do olhar da psicologia analítica de Carl Gustav Jung e de uma breve releitura do mito de Prometeu, Epimeteu e Pandora. Numa tentativa de associar o que simbolicamente vem acontecendo dentro dos indivíduos, que estão sendo levados a gastar seus salários e economias, rompendo casamentos, perdendo empregos, caindo assim num grande conflito.
É notório como o número em apostas esportivas tem aumentado significativamente nos últimos anos.
É um mercado que já movimenta bilhões de reais, muitas dezenas e até milhares de pessoas estão engajadas nesse movimento coletivo, que não se dá somente nos dias de hoje, mas, que se iniciou desde a época da Roma e Grécia antiga, em corridas de bigas e gladiadores. Já na China antiga, esse tipo de dinâmica existe há mais de 2 mil anos, com jogos de dados e formas rudimentares de loteria.
O objetivo desse artigo é articular sobre diversas perspectivas, fazendo aproximações entre o mito de Prometeu, Epimeteu e Pandora. Além disso, iremos olhar a partir da teoria da psicologia analítica, de Carl Gustav Jung, no que pode estar por detrás desse tema que é observado há vários séculos e, que tem levado as pessoas a terem prejuízos, financeiros, sociais e psicológicos.
Segundo a empresa PWC, houve crescimento acelerado das apostas esportivas no Brasil, sendo que de 2020 a 2024 tivemos um aumento de 89%.
Já em termos financeiros, a indústria de apostas esportivas no Brasil, movimenta estimadamente, entre R$60 bilhões e R$100 bilhões em 2023. De acordo com essa pesquisa, os apostadores de esportes online são formados, em sua maioria, por homens jovens e de classe média baixa. 54% dos respondentes afirmam que a motivação deles para apostar é somente o desejo de ganhar dinheiro.
Segundo o CNC, em nota emitida em 23 de setembro, o Banco Central, apontou que são gastos entre R$20 bilhões e R$30 bilhões por mês no Brasil e, em agosto de 2024, foi realizado um estudo que identificou que cerca de R$3 bilhões foram pagos com o Bolsa Família.
No que diz respeito às questões de caráter social e psicológico, foi possível identificar através de um artigo publicado pela UNIFESP (Carneiro,2020), que 1,4 milhões de brasileiros apostadores já desenvolveram transtornos de jogo, com inúmero impacto em suas vidas.
Ainda falando nesse estudo e outros que estão ali presentes, foram levantados dados da AFIFI et al. (2010) que apontam que para mulheres o surgimento para o desejo dos jogos está associado com a meia idade, ter uma renda mensal baixa, ou mediana, baixo nível educacional, nunca terem se casado, terem uma vida estressante e terem uma baixa habilidade de lidar com os desafios da vida.
Já entre os homens, ter problemas associados ao jogo, estaria relacionado à serem divorciados, ou viúvos, além da falta de suporte social.
Outro apontamento que chama atenção nessa pesquisa é que o antes chamado Transtorno do Impulso no DSM IV recentemente está sendo nomeado como Jogo Patológico – que estava agrupado com patologias, como Oniomania, impulso sexual excessivo, automutilação recorrente, vídeo game compulsivos, entre outros, justamente por ter similaridades com a dependência química. Ficou assim associado, inicialmente, em modelos pré-existentes, sendo agora, considerado um formato a ser seguido, como parâmetro até para estudos, diagnósticos e tratamento de outras dependências, não consideradas químicas, ou seja, comportamentais.
Vale ressaltar que esse tipo de comportamento não é ainda levado com a devida seriedade, sendo a nossa própria estrutura social um grande problema dentro dessa questão. Fazendo com que a necessidade de criar estratégias e formas preventivas no ambiente escolar, bem como no social, destinados à infância e à adolescência, seja deixada em segundo plano (Frisone. et al, 2020).
Quantas propagandas são vistas das empresas que são responsáveis por esses tipos de jogos?
Elas utilizam diversos tipos de meios de veiculação em massa para atingir o público, seja nas camisas de time de futebol, anúncios na TV aberta, como à cabo, rádio, redes sociais. Aproveitam e utilizam celebridades no mundo esportivo, campeões olímpicos, blogueiras e influenciadores digitais, encenando como se fosse uma simples diversão, e até mesmo a possbilidade de ganhos financeiros aos espectadores.
O enredo de Prometeu, Epimeteu, Pandora e, as BETS
Como o próprio mito trás, Prometeu era um titã, que deu fogo aos homens, tido como o criador da humanidade, que como a narrativa diz, ele é aquele que vê antes, ou, tido como prudente. Seu irmão, Epimeteu, que vê depois, é tido como o inconsequente, já Pandora, a primeira humana criada por Zeus, com grandes qualidades, como graça, beleza, persuasão, inteligência, meiguice, paciência e, eloquência. Prometeu, desperta a ira de Zeus, onde após enganá-lo num ato de sacrifício, faz com que ele retire dos seres humanos o fogo, e assim os fazem sofrer com o frio, perdendo a capacidade de dominar a natureza e utilizá-lo ao seu favor.
Prometeu, então, se sente compadecido pelos seres humanos. Decide, assim, roubar o fogo divino e dá-lo aos seres humanos – fornecendo a capacidade do saber técnico, do conhecimento e o pensamento simbólico.
Todo esse ocorrido não é bem visto por Zeus, pois, isso faz com que ele se sinta desafiado em sua posição, já que deixa os seres humanos numa condição de independência e gera uma possível quebra na hierarquia. Como punição, Zeus o coloca sob uma rocha, onde uma águia come diariamente o seu fígado que se regenera para ser devorado pelo animal repetidamente. Dando uma possível conotação de como a sua arrogância, dos seus saberes e previsões, lhe concede a um repetido sofrimento.
Prometeu orgulha-se de ter passado o conhecimento aos seres humanos onde, num paradoxo, junto com essa qualidade vem uma dor que todos carregam.
Sendo este representado pelo homem que se diz visionário, premonitor do futuro e das sortes lançadas, contudo, punido por suas transgressões.
Num possível paralelismo, seres humanos, com seu ego inflado, podem vir a assemelhar-se a Prometeu nessa parte do mito que, num ato prometéico, rouba o fogo dos deuses, tentando até mesmo no caso das possíveis previsões e adivinhações, dominar o destino de suas vidas, acreditando fielmente serem senhores dos seus destinos (hybris).
As apostas esportivas podem ser vistas, aqui, como uma tentativa moderna de roubar o fogo dos deuses, controlar o acaso e prever o futuro.
Dessa maneira, desejam antever o que irá ocorrer, utilizando suas faculdades mentais e prometéicas para ganhos financeiros, em jogos de azar, como as BETS, numa empreitada vazia e sem sentido, de adivinhações de resultados, visando apenas o lucro financeiro, como que aplicando os saberes apenas em benefício próprio.
Aqui a técnica fica completamente desacompanhada do sagrado, onde, separado da alma, o conhecimento acaba trazendo a morte simbólica e até literal do indivíduo. Assim como alguns viciados em jogos que chegam a cometer suicídio, pois, é visto que pessoas que têm uma relação problemática com jogos de azar têm 2 a 3 vezes mais probabilidade de pensar em tirar a própria vida – conforme artigo publicado na revista Psychological Bulletin.
O ponto em que Prometeu é punido (fígado devorado) faz pensar se o sofrimento repetitivo, da compulsão, não seja o castigo dos seres humanos que, assim como nos jogos de azar, ficam num pesado ciclo, entre o arrependimento e a recaída, que só fazem eles se afundarem nos inúmeros prejuízos que as apostas levam.
Já Epimeteu comete um ato desmedido em sua tarefa, no momento que ele deve conceder aos seres vivos habilidades, dando diversos talentos aos animais, como força, velocidade, garras, defesas; gastando tudo o que tinha e sobrando quase nada aos seres humanos. Ato que foi corrigido por Prometeu que rouba o fogo e a técnica dos deuses para compensar a falta de habilidade física que lhes faltavam.
Epimeteu, o que age sem pensar, age imprudentemente, aproximando-se aqui dos apostadores patológicos que, sem refletir e impulsionados por sentimentos de gratificação e recompensa, acreditando que irão sempre ganhar dinheiro, ficam dessa forma presos nesse ato epimetéico desmedido.
Os epimeteus contenporâneos das BETS, são tomados por uma compulsão exacerbada, que até mesmo endividados, esses sujeitos continuam apostando.
É visto que, 58% das pessoas que gastaram com BETS, por meio de aplicativos ou sites na internet, estão nessas condições, conforme publicado num estudo realizado pela Agência Senado, em 2024. Os então epimetéicos de hoje, como o mitologema traz, continuam gastando tudo no “bicho” – coincidência ou não, um dos jogos mais famoso nos dias de hoje é chamado de “Tigre da Fortuna” , além do conhecido “Jogo do Bicho”.
Seres humanos que, como titãs das BETS, comportam-se como Prometeu e Epimeteu nos mitos.
De um lado, prevendo e utilizando suas capacidades de introverter sua energia psíquica: como que entrando em contato com seu íntimo, numa tentativa de sentir algo que está dentro de si, como que uma voz, buscam aproximar-se de uma sensação que os instiga a escolher determinados números, cores, resultados, animais e o momento certo para utilizá-los, nessas inúmeras rodadas de palpites e adivinhações; ou então colocando toda sua energia psíquica para fora: como que agindo com um certo fazer em direção ao meio, para ver depois o que foi assim feito.
Delineando o que a extroversão psíquica tem em sua característica, promovendo no sujeito o desejo de ser para o mundo o que ele acha que o mundo quer dele, num foco total aos objetos exteriores, visando impressioná-los, dominá-los e, até mesmo possuí-los, numa exagerada atitude externa, esse não prevê, mas, apenas vê, o montante de dinheiro, o prazer momentâneo, do jogar pelo jogar, até as últimas consequências, ou inconsequências.
Logo, “O perigo do extrovertido está em querer ser atrai-do para dentro do objeto e lá se perder completamente”(OC6, § 627-633).
O apostador parece que vive na dicotomia entre as duas instâncias, refém de dois irmãos que operam em sua psique, um que o faz querer adivinhar e o outro realizar.
A linha de vida que Prometeu escolhe é, sem dúvida, introvertida. Ele sacrifica toda ligação com o presente para, por meio da previsão, criar um futuro distante. Já com Epimeteu é bem diferente: ele percebe que seu objetivo é o mundo e aquilo que o mundo valoriza.
JUNG, 2020, §282
Pandora foi criada sob as ordens de Zeus que mandou Hefesto, um ser inventivo (deus do fogo e das habilidades técnicas), criar uma mulher com todas as perfeições. Assim feito, ele teria de levá-la à assembleia dos Deuses para apresentá-la.
Todos ficaram encantados com ela e cada deus então lhe deu um dom: Atena, o das artes, neste caso de tecer; Afrodite, o encanto; Cárites, que é deusa da persuasão e beleza, lhe deu colares ouro; Hermes, deus da comunicação ou mensageiro dos deuses, lhe deu a capacidade de persuadir ou a arte de seduzir os corações através de discursos insinuantes.
Após receber todos os presentes, Zeus dá a Pandora uma caixa bem fechada e ordenou-lhe que levasse como presente a Prometeu que, por sua vez, rejeitou e recomendou que Epimeteu fizesse o mesmo. Contudo, ao ver tal beleza, Epimeteu ficou encantado e a tomou como esposa. Em uma dada circunstância, Pandora abre a caixa que acaba espalhando para o mundo desgraça e desespero. Sobrando, dentro da caixa, somente a esperança.
As estratégias de marketing atuais das BETS refletem bem uma sedução pandóriana, donde o indivíduo voltado para fora, assim como Epimeteu, no mito, sem reflexão, se sentisse deslumbrado, com tanta resplandecência de tais atributos.
Trazendo uma possível associação entre os meios de publicidade utilizados hoje para atrair os apostadores e os dons de Pandora.
Os presentes dos deuses de Pandora, encontram-se em diversas atividades publicitárias das BETS, no caso, na arte de tecer dada por Atena, que produzem layouts, cores, fontes e as logomarcas dessas empresas, na aparente beleza de ganhos financeiros, em discursos cheios de promessas, que saem das gargantas dos influencers, envolvidas pelos colares de ouro de Cárites, sedução das narrativas dos vários slogans, com uma comunicação e fala insinuantes, concebidas por Hermes que, ousam dizer, que é possível até mesmo jogar de maneira contida, como a frase: “Não mete o loco, jogue responsável”, frase adotada por umas das BETs mais famosas do país.
Epimeteus da contemporaneidade que, quase hipnotizados, se lançam sem pensar nas ideias fabricadas pelas novas pandoras, ou a indústria de propagandas das BETs.
Iludidos em gerar riqueza financeira, prometendo a possibilidade de ganhos justos ou até mesmo de ter isso como uma possibilidade de renda fixa. Casando-os com essa fantasia imputada ou gerada em suas mentes, enamorando-se com a vaidade que esse tipo de união instável assim proporciona.
Todo sofrimento e angústia, despejados no mundo ao abrir a caixa de Pandora, fazem com que os Prometeus e Epimeteus busquem prazeres momentâneos, no intuito de atenuar esse mal estar, esquecer as mazelas, ou aliviar as suas angústias, vendo nos jogos a possibilidade de que isso se atenue.
Nesse contexto, as apostas são consideradas subterfúgios que, segundo Carneiro (2024), estão bastante presentes na sociedade moderna que se apresenta, cada vez mais, como uma grande fabricante de pessoas ávidas por anestesiamento.
Ainda relembrando a participação mítica de Pandora, não podemos deixar de citar que na caixa restou a tão famosa Esperança.
Considerada paradoxal por alguns filósofos, em sua ambiguidade também encontra-se no universos de apostas online, numa ilusão, envolvida pelo único e exclusivo desejo de possuir bens, alcançar fama e ter sucesso, mantendo os indivíduos no vício, mas que, ao mesmo tempo, poderia permitir que o indivíduo acreditasse também na sua transformação, desenvolvimento, evolução e transposição de padrões dominantes, regenerando-o.
A esperança aqui, que poderia ser força motriz do eterno vir a ser, fica enviesada na esperança de ganhar o que nunca se teve, para perder o que poderia ter sido, como que existindo nessa parcela da população somente a excitação do próximo ganho. Em um ciclo destrutivo que fica entre o quase ganhar e o perder, indo embora os seus trabalhos, finanças pessoais, relacionamentos e, por quê não, a si mesmo?
Gabriel Yamaya – Membro Analista em formação pelo IJEP
Dra. E. Simone Magaldi – Analista Didata do IJEP
Fontes:
CARNEIRO, Elizabeth – Jogo de aposta: um assunto de sáude pública ainda negligenciado e em franca expansão no Brasil e no mundo. 2024. Escola Paulista de Medicina, Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). https://repositorio.unifesp.br/items/d44157fb-bd00-45aa-9662-d600201d8c00. Acesso em: 12 de março de 2024.
Revista Pesquisa FAPESP. A proliferação de sites de apostas aumenta os gastos das famílias e o risco de problemas de jogos de azar. Brasileiros apostam R$ 20 bilhões por mês online e a demanda por tratamento de dependência está aumentando. 2024. https://revistapesquisa.fapesp.br/en/proliferation-of-betting-sites-increases-household-spending-and-risk-of-gambling-problems/. Acesso em: 14 de outubro de 2024.
Sala da Imprensa. PwC: parte do orçamento familiar no Brasil é transferido para apostas esportivas e setor de Varejo sente o impacto. https://www.pwc.com.br/pt/sala-de-imprensa/release/pwc-parte-do-orcamento-familiar-no-brasil-e-transferido-para-apostas-esportivas-e-setor-de-varejo-sente-o-impacto.html?. Acesso em: 26 de agosto de 2024.
Portal do Comércio. Galípolo diz à CPI que Banco Central não possui papel na regulamentação das bets. 2025. https://portaldocomercio.org.br/diario-legislativo/galipolo-diz-a-cpi-que-banco-central-nao-possui-papel-na-regulamentacao-das-bets/. Acesso em: 10 de abril de 2025.
Agência Senado. Mais de 22 milhões de pessoas apostaram nas ‘bets’ no último mês, revela DataSenado. 2024. https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2024/10/01/mais-de-22-milhoes-de-pessoas-apostaram-nas-bets-no-ultimo-mes-revela-datasenado?utm_source=chatgpt.com. Acesso em: 01 de outubro de 2024.
American Psychological Association. Suicídio em indivíduos com problemas de jogo. 2024. https://psycnet.apa.org/fulltext/2024-35228-001.html. Acesso em: 13 de maio de 2024.
JUNG, Carl Gustav. Tipos Psicológicos. Tradução de Álvaro Cabral. Petrópolis: Vozes, 2013. (Obras completas de C. G. Jung, v. 6).

