Como reflexo do mundo e do homem, a alma é de tal complexidade que pode ser observada e analisada a partir de um sem-número de ângulos. (§283)
Só uma vida vivida dentro de um determinado espírito é digna de ser vivida. É um fato estranho que uma vida vivida apenas pelo ego em geral é uma vida sombria, não só para a pessoa em si, como para aquelas que a cercam. (§645)
O diálogo entre consciente e inconsciente foi o principal foco da preocupação do psiquiatra e psicólogo suíço Carl Gustav Jung. Para ele, os processos inconscientes se encontram em uma relação compensatória à consciência, uma complementação mútua, formando uma totalidade que ele denominou Self. Essa relação compensatória visa especificamente a auto-regulação da psique como um todo. Nesse sentido, teríamos no próprio inconsciente um impulso criativo em direção à nossa saúde psíquica.
O termo psique, cuja etimologia se confunde entre espírito, alma e, mais recentemente, mente, possui em seu próprio significado a tensão de sentidos, que ora se complementam, ora se divergem, indicando a própria complexidade da condição humana. A psicologia teria, dessa forma, um compromisso com a fisiologia do nosso agir e, do mesmo modo, com a transcendência implicada nesse existir. Entre aquilo que somos, que desejamos ser e que podemos nos tornar há uma regente poderosa, que atende pelo nome de psique e cuja definição parece indicar uma fidelidade à própria lei do Self.
Nosso intuito nessa pequena reflexão é discutir o modo como Jung utilizava os conceitos de alma e espírito e sua importância para a dinâmica psíquica. Aliás, a característica dinâmica da psique no modelo junguiano é o que acarreta a dificuldade de compreensão para uma mente acostumada a certa linearidade no pensamento.
A história da investigação da alma se confunde com aquela do ser humano e a busca de saber mais sobre ele próprio. Assim, a vida era explicada por uma realidade invisível, onde tudo era integrado por um espírito de totalidade. Sabemos que a perda da dimensão espiritual na compreensão da physis deve-se, muito provavelmente, à nossa herança grega, pois esses foram os primeiros a dissociar a categoria espiritual da material, natureza e espírito. Na busca de objetividade no conhecimento, fomos distanciando o espiritual do material até um ponto onde o próprio sistema psíquico torna-se algo menor diante do rigor científico intelectual imposto pela evidência.
Enquanto a Idade Média, a Antiguidade clássica e mesmo a humanidade inteira desde os seus primórdios acreditavam na existência de uma alma substancial, a segunda metade do século XIX, viu surgir uma psicologia “sem alma”. (JUNG, 1984, §649)
Com a influência do materialismo cientifico, Jung nos alerta que tudo o que não for evidência, que “não podia ser visto com os olhos, nem apalpado com as mãos” (Ibid.) está sob suspeita e é considerado metafísico e, portanto, sem valor. Nesse sentido, podemos dizer que a consciência se desenvolveu muito em um sentido horizontal e perdeu sua natural verticalidade, isto é, ela fica presa à imanência das coisas, algo que pertence unilateralmente à materialidade e tudo aquilo que está em dependência total da matéria. Espírito e alma, conceitos complicados de serem definidos, tornaram-se, assim, dependentes da materialidade e de causas materiais. As complicações advindas de tal compreensão e visão de mundo não tardaram a chegar, principalmente, naquilo que nos interessa: uma aproximação e uma compreensão da condição humana.
Cientes que Jerusalém e Atenas formam uma tensão que é a base do pensamento ocidental, atravessaremos rápida e sinteticamente a história dos conceitos de alma e espírito, na tentativa de compreensão da condição humana, que segue, em um primeiro momento, a necessidade humana de compreender a sua própria physis. Aliás, Jung sempre apontou para o limite que, aparentemente, poderia ser considerado a nossa grande riqueza: nossa capacidade de pensar a própria existência. Buscando conhecer o que somos, só podemos fazê-lo a partir de nossa consciência, possuímos a insuficiência determinada por nossa própria condição, pois “para a psique falta um ponto de apoio, porque só a psique pode observar a psique”. (JUNG,2008, § 384)
Os termos espírito e alma escapam das categorias da razão. Para o filósofo judeu Abraham Joshua Heschel (1907-1972), o homem moderno tende a ver o mundo de forma desencantada, sem a capacidade para perceber o sublime, o misterioso e o maravilhoso. O sagrado é coisificado, tanto quanto o homem e, assim, ambos são esvaziados do seu sentido. E esse método de apreensão do mundo e do ser humano acabou acarretando uma obscuridade no conhecimento do ser humano. Crescemos muito em conhecimento tecnológico, mas muito pouco sabemos sobre quem somos ou quem podemos ser. (Cf. HESCHEL, 2006)
Da mesma maneira, Jung afirma que a metafísica do espírito precisou ceder à metafísica da matéria no século XIX. Na realidade, ele sabia que intelectualmente isso não passa de um jogo de palavras, mas psicologicamente essa acabaria sendo uma revolução na visão de mundo. Tudo passa a ter como referência a realidade empírica, toda a interioridade obscura se torna exterioridade visível. Se tomarmos uma definição qualquer do comportamento humano, seja intelectual ou espiritual, que possua uma explicação fisiológica, essa será amplamente aceita. Já se tentássemos explicar esse mesmo comportamento humano como emanação do espírito criador ou como o mistério que envolve a criação ou condição humana, não teríamos o mesmo sucesso. Para Jung, “no entanto, ambas as explicações são igualmente lógicas, igualmente metafísicas, igualmente arbitrárias e igualmente simbólicas” (JUNG, 1984, § 652).
Na realidade, quando discutimos a questão do conhecimento, observamos que houve uma transformação do pensamento, especificamente no que tange à religião que, de fonte produtora de conhecimento, acabou se transformado em objeto. Essa transformação, que podemos compreender como as raízes da modernidade, já é observada a partir do séc.XIII, em que pensadores preocupados em proteger Deus, isto é, o conhecimento que tinha nessa premissa de validade universal, começam a experimentar um afastamento dessa fonte criadora até o ponto que teremos, no século XIX, a famosa citação da “morte de Deus”, expressão que revela o surgimento de outro pressuposto, igualmente universal, das causas materiais. Há, com essa transformação, uma inversão do pensamento, de um pensar diante de Deus para um pensar que estaria fundado na autonomia do sujeito. Na religião, essa mudança será percebida como o afastamento da ideia de pathos para uma religião compreendida, no máximo, como ethos (Cf. GUARNIERI,2011, p.50-6).
A diminuição e o afastamento do pathos resulta em uma ignorância da força do aspecto afetivo de nossas experiências humanas. Para Jung, a religião seria importante para nos lembrar o caráter primordial do espírito. Sua crítica de nossa desespiritualização e, consequentemente, da nossa prática de compreendermos tudo pela materialidade que entendemos evidente, nos levaria a concluir que “hoje não é a força da alma que constrói para si um corpo; ao contrário, é a matéria que, com seu quimismo, engendra uma alma” (JUNG, 1984, §653). Essa constatação se desdobrará em uma psicologia sem alma, uma psicologia onde o psíquico seria, em última análise, um efeito bioquímico: “a consciência, portanto, é considerada a condição sine qua non da vida psíquica; é a própria alma. Por isso, todas as ‘psicologias sem alma modernas são psicologias da consciência para as quais não existe vida inconsciente.” (Ibid., § 658)
Para Jung, o desconhecimento do espírito da época é que nos leva a dificuldade de perceber nossa tendência a encontrar explicações que atendem a unilateralidade da consciência que hoje privilegia as explicações no âmbito físico, da mesma forma que no passado recorreu-se ao espírito como fonte para tais explicações.
Na verdade, é muito comum identificarmos a psique com o que chamamos de consciência. Mas é só nos debruçarmos um pouco mais na misteriosa condição humana que observaremos que muito pouco sabemos sobre a psique, tanto quanto da própria consciência ou da natureza humana. E mais, “a matéria nos é tão desconhecida quanto o espírito” (JUNG, 1984, §657), o que levará Jung a refletir sobre a correlação entre espírito e vida, ciente que ambos guardam mistérios, mas que possuem uma interdependência no meio da qual está colocado o ser humano.
O inconsciente, desse modo, torna-se uma hipótese bastante razoável em qualquer modelo teórico que tente abarcar o que compreendemos como psique. Para Jung, esse medo natural do desconhecido em nós está justamente no receio, desde a Antiguidade, da “perda da alma” o que, como veremos mais adiante, está relacionado especificamente com os conteúdos sombrios e com o que Jung denominou por complexo.
Porém, a proposta junguiana é voltarmos a considerar uma “psicologia com alma”, o que significa dizer que estaremos sustentados em uma teoria da alma fundamentada em um postulado de um Espírito autônomo, partindo do pressuposto que uma hipótese do Espírito não é nada diferente do que uma hipótese da matéria.
Etimologicamente, psique significa alma e espírito. Mas, tratado como um termo religioso, foi desvalorizado tanto quanto o pensamento religioso. Jung trouxe esse conceito para a psicologia, obtendo com isso uma revalorização de um termo que é desconsiderado pela ciência moderna. Ele não só usa o termo como afirma que a psique possui uma afinidade com Deus:
(…) a alma deve possuir em si mesma uma faculdade de relação, isto é, uma correspondência com a essência de Deus; senão, como seria possível o estabelecimento de uma relação? Essa correspondência em termos psicológicos é o arquétipo da imagem de Deus. (JUNG,1991, §11, grifo do autor)
Falar em afinidade não significa que Jung defina alma como a filosofia ou a teologia o fazem, mas sim que pretende um lugar para esse termo circunscrito à psicologia, dado que toda intuição filosófica e teológica sobre o significado da alma, e principalmente sobre sua imortalidade, só pode ser compreendido como uma atividade psíquica que está além dos limites da consciência. (Cf. JUNG, 1982, §302)
Muitas das ideias de Jung sobre a alma podem ser encontradas nas imagens das tradições hebraica e cristã. No hebraico, o termo alma – Nèfèsh – abrange muitas significações que indicam diferentes sentidos: garganta, boca, goela são traduções possíveis; um órgão das necessidades, do apetite, da sede e da fome, que exige satisfação e, por isso, acaba resultando na necessidade de experimentar do humano. E mais, com nossa nèfèsh sentimos o gosto e, portanto, somos capazes de experimentar e julgar o que experimentamos. (Cf DCT,2004,p.94-107)
Nèfèsh é também o órgão da respiração, com o sentido de sopro, cuja ausência é sinal de morte. Respirar e soprar são também necessidades. Os semitas consideravam a sede das necessidades elementares da vida, pois comer, beber e respirar são atividades realizadas pela garganta. E, ainda nessa esteira, nèfèsh pode ser compreendida como pescoço, parte do corpo que pode ser adornada, mas também presa e ameaçada. Pescoço e garganta indicam tanto a necessidade do alimento como a de conservação da vida. Uma ânsia e um desejo que se confundem com a própria necessidade. Nèfèsh, nesse sentido, está ligada ao desejo, a tudo que move o ser humano, tanto em direção à realidade, ao bem e ao mal, ou a Deus e, por isso, dependente de sentimentos e estados da alma, tanto quanto uma possível nèfèsh de Deus, que também expressaria seus desejos e sentimentos.
Naturalmente, a partir do desejo e da necessidade, mergulhamos em uma série de sentimentos e emoções como uma disposição da alma de sentir o gosto, a aflição, o terror, a amargura a tristeza, a paciência e a impaciência, a vida e, provavelmente, a morte. Digo, o cadáver, pois veremos que nèfèsh só se tornará viva se Deus soprar o fôlego em seu nariz, ruah. Nessa visão antropológica, partimos de nèfèsh, como algo que aponta as necessidades desse ser humano, para ruah – que veremos mais adiante – que autoriza o humano a ser para além de tudo que é efêmero e que lhe constitui, isto é, autoriza a ser como vivente que age com uma autoridade que não vem dele mesmo. (Cf.WOLFF,2007, p. 67-77)
Nèfèsh também está ligada à entidade de um indivíduo, pois de modo mais concreto, quando a necessidade se faz inexorável, ela será relacionada ao significado de vida, especificamente de vida individual (Cf. WOLFF,2007, p. 49-52). Nèfèsh é o que me faz eu. Mais do que vida pura e simples, estamos falando de vida do ser em particular. Assim, ao falarmos da alma não estaríamos falando de um ser vivo apenas, mas de um ser que possui nèfèsh – uma pessoa viva, um indivíduo – porque Deus assim o fez, soprou o fôlego da vida em suas narinas, fez desse ser uma nèfèshviva.
Todavia, é em seus sentidos que nèfèsh se evidencia como conceito. A alma aqui designada como viva é uma vida carente que ansia por aquele que a fez e, por meio dela, se reconhece como criatura de Deus e, por isso, louva e espera. E, como dissemos acima, o que autoriza este ser vivente é outro difuso conceito: Ruah – sopro, ar em movimento. O fôlego do ser humano, mas também palavra e força vital; palavras saem da boca com o ar e Deus sopra o ar nas narinas da criatura e com isso dá força e autoridade. (Cf. Ibid. p.67-77)
Diante do tenso encontro, citado acima, mas também profícuo, entre Grécia e Jerusalém, encontraremos na septuaginta a escolha do termo Psyché como a melhor aproximação de nèfèsh. Na versão latina encontraremos o termo anima, mas ambos não possuem os mesmos sentidos que tentamos nos aproximar acima. Mas, o que podemos observar é que no judaísmo helenístico psychè começa a ter um sentido de imortalidade que irá se transformar lentamente em uma compreensão de que a vida não se limita apenas ao que é vivido pelo corpo. Temos um início de distinção do corpo, embora essa “distinção não reflita exatamente o dualismo corpo mortal-alma imortal.” (DCT, p.95)
Conceito sempre repleto de controvérsias, a alma nunca foi totalmente explicada e, junto com ela, o termo espírito – citado acima como ruah – parece se encontrar na mesma obscura ambiguidade. A palavra espírito, do latim, “spiritus”, do grego “pneuma” , e no hebraico ruah, significa “respiração” ou “sopro” (Cf. DCT, 2004, p. 650-1). Para Jung (1984 e 2008), Geist pode ser traduzido como espírito e tem várias significações possíveis. Basicamente, é tudo aquilo que contrasta com a matéria, com o que é identificado com Deus, com o que poderíamos entender como processos psíquicos, tais como pensamento ou razão, intelecto, vontade, memória, fantasia, ideais ou mesmo uma atitude de consciência. Para Marie Louise Von Franz (2008, p.72), o termo Zeitgeist, espírito do tempo ou da época, aponta para ideias, juízos e motivações comuns a uma coletividade e Geist enfatiza a tendência à personificação.
Teologicamente, encontraremos no judaísmo as mesmas definições: o espírito é um dom, é inspirador e seu caráter imaterial e pessoal dá a ruah a propriedade de significar a circulação, a intimidade, a comunicação da intimidade. Desse modo se difunde o espirito, ele enche e faz viver, santifica (ou dignifica, como diria Jung) a vida humana. No Novo Testamento essa ideia se difundirá a tal ponto que teremos a expressão, tão importante para os cristãos, do Espírito Santo (Cf. DCT, 2004, p.650-53).
A literatura cristã apresenta o indivíduo composto de alma e de um corpo. Porém, as relações entre eles e o papel do espírito nessa relação serão matéria de debate dentro da própria teologia. Porém, é a própria teologia que também irá reconhecer que o conceito de alma cada vez mais está ligado a um princípio mundano, na mesma medida em que o ser se constitui cada vez mais como sujeito (Cf. DCT, 2004, p. 99-107).
Infelizmente, contudo, a teologia, que nos enriquece de definições e poderia nos ajudar a compreender tal termo, terá na sua expressão mais moderna um afastamento do sentido que o mesmo carrega. O que seria alma então? E o espírito? Os poetas parecem ainda se arriscar a usar tais expressão apenas para despertar aquilo que não é material em nós. Ou mesmo quando nos referimos ao espírito como algo que anima a mente ou dirige uma atitude. Talvez, seja essa a melhor definição que nos é concedida, a que nos é dada pela psicologia, especificamente aqui, a junguiana: a alma como uma facilitadora da ligação entre consciente e inconsciente ou, dito de outra forma, como uma ligação daquilo que é visível com o que está além; e o espírito como algo que confere sentido à vida humana.
Sabemos que a psicologia é mais naturalmente identificada e definida ainda como psicologia de um comportamento. Claro que essa forma de definir também repousa confortavelmente na segurança daquilo que é evidente. Embora, etimologicamente, psique signifique alma, nosso materialismo, que valoriza de modo significativo a evidência do comportamento de um sujeito, acabará por intensificar a primazia da physis sobre psyche, do corpo sobre a alma e, consequentemente, do corpo sobre o espírito. Essa divisão acaba resultando em uma visão do ser humano segmentado em diversos tipos de abordagem, levando a uma compreensão sempre limitada do sujeito.
A consciência é muito confundida ou aproximada daquilo que chamamos de alma. Mas ao usar esse termo, em muitos momentos de seu texto, Jung pretende nos lembrar que a psique é bem mais que a consciência. “A consciência é um rebento tardio da alma inconsciente” (JUNG, 1984, §.676). Portanto, o que temos consciência é apenas um ínfima parte de toda uma totalidade que ignoramos ou desconhecemos. Apesar disso, só possuímos a consciência e é através dela, com toda a insuficiência que lhe caracteriza, que temos acesso ao restante de nossa psique. Ela é unilateral, isto é, ela é apenas um lado da percepção. “Consciência significa acima de tudo estar ciente.” (EDINGER,2004, p.19)
O fato é que na unilateralidade da consciência nos sentimos mais seguros e, portanto, nos sentimos menos presa da angústia. Pois a consciência é ser ciente não só do outro-objeto, mas de si mesmo-sujeito. É uma consciência interna, uma percepção de si como algo separado, o que pode resultar em uma soberania que será experimentada pelo ego em relação à natureza e ao mundo. Diz Jung,
Na consciência somos nossos próprios senhores; aparentemente somos nossos próprios fatores [deuses]. Mas se ultrapassarmos o pórtico da sombra, perceberemos aterrorizados que somos objetos de fatores. Saber isso é decididamente desagradável, pois nada decepciona mais do que a descoberta de nossa insuficiência. (JUNG, 2008, § 49)
O que Jung está se referindo é que tudo o que somos é produzido por nossa psique. E que quando nos tornamos alerta, por meio da reflexão sobre a tendência unilateral da consciência, nos confrontamos com a percepção de que são os complexos que objetivam o que somos. O próprio ego é um complexo: uma multiplicidade de conteúdos que gravitam em torno do mesmo núcleo – o eu. Os conteúdos encontram-se frouxamente ligados entre si. Foi a partir da constatação de que a psique é um todo divisível que Jung trabalhou com essa fragmentação através da teoria dos complexos.
Podemos dizer que a definição primeira de complexo refere-se à força de sua autonomia na psique, pois Jung, considerando o complexo como o meio de acessar o inconsciente, o definiu como “agrupamentos de ideias de acento emocional inconsciente”. Para que o complexo deixe de exercer um efeito perturbador deve se tornar consciente, pois só assim pode ser corrigido e transformado. Se, ao contrário, esses conteúdos permanecerem inconscientes, continuarão, com sua autonomia, a exercer seu efeito perturbador.
A base dos complexos são os arquétipos. Jung fará uma distinção entre dois tipos de complexos. No inconsciente pessoal encontraremos complexos que foram reprimidos e que deveriam estar associados ao eu. Neste caso, o indivíduo sente uma sensação de perda e o processo psicoterapêutico tem a função de tornar consciente esses complexos, associando-os novamente ao eu. Mas há também complexos que nunca estiveram na consciência, eles emergem do inconsciente coletivo, e quando um de seus complexos se associa ao eu, tornando-se consciente, o indivíduo sente como algo estranho, misterioso e fascinante, porém alheio à sua vida. Em seu texto Os fundamentos psicológicos da crença nos espíritos (1919), Jung apresenta um paralelo da teoria dos complexos com a crença em almas e espíritos. Ao fundamentar psicologicamente a crença em espíritos, Jung considera que os primitivos reconheciam tanto a perda da alma, como a possessão por espíritos, como fonte de doenças. Isto porque:
Sob o ponto de vista psicológico, os espíritos são, portanto, complexos inconscientes autônomos que aparecem em forma de projeção, porque, em geral, não apresentam nenhuma associação direta com o eu. (JUNG, 1984, § 585, grifo do autor)
Para Jung, a crença em almas seria correlata à crença em espíritos. Mas no primeiro caso, quando algo afeta a alma, sentimos como algo que nos pertence, diferente dos espíritos, que experimentamos como algo estranho a nós. Essa constatação levará Jung a concluir que, em sentido psicológico, ambos, almas e espíritos, são complexos psíquicos. Para ele, as almas correspondem aos complexos autônomos do inconsciente pessoal e os espíritos aos complexos autônomos do inconsciente coletivo (Cf. JUNG, 1984, §577-582).
Para tanto, Jung está traduzindo em complexo tudo aquilo que possui uma carga energética, uma afecção, de tal modo que aquele conteúdo é experimentado como alívio quando integrado – no caso desse conteúdo ser do inconsciente pessoal. Entretanto, sendo essa afecção sentida como estranha, desagradável, e até perigosa, pode ser uma indicação de um conteúdo do inconsciente coletivo. Jung alerta que a sensação de perda experimentada no primeiro caso pode não ser sentida como alívio, a perda é confortável e só incomodará quando o indivíduo começar a viver as consequências dessa perda. Do mesmo modo, o segundo complexo explicitado por ele e comparado à ideia de espirito não é somente negativo, pois o arquétipo ou o conteúdo coletivo autônomo pode e tem uma numinosidade positiva. Por isso, ele apontava que os espíritos poderiam ser frutos de fantasias patológicas como de ideias novas, mas ainda desconhecidas. (Cf. JUNG, 1984, §593-598)
O complexo, dessa forma, é parte da estrutura básica da psique e, por essa razão, deve ser considerado também como um aspecto sadio da psique. O que emerge do inconsciente coletivo possui um aspecto criativo e, nesse sentido, curador. É necessário, porém, que os conteúdos conflitantes pessoais sejam conscientizados e integrados, pois quando isso acontece tiramos o patológico e podemos encontrar a nossa tarefa como humanos.
Jung observa que a “psique é constituída essencialmente de imagens” (JUNG, 1984, §618); a natureza da psique é constituída de imagens reflexas de processos cerebrais simples e da reprodução dessas imagens ao infinito. E são essas imagens que constituem a consciência:
Tudo o que sabemos a respeito do mundo e tudo aquilo de que temos uma consciência imediata são os conteúdos conscientes que fluem de fontes remotas e obscuras. Não tenho a pretensão de contestar nem a validez relativa do ponto de vista realista, a do esse in re [do ser real], nem a do ponto de vista idealista, a do esse in intellectu solo [do ser apenas no intelecto]; gostaria apenas de unir esses opostos extremos através do esse in anima [do ser na alma] que é justamente o ponto de vista psicológico. Vivemos imediatamente apenas no mundo das imagens (Ibid., §624)
Essa questão aponta a importância da experiência psicológica como dado real, que não se submete a argumentos, pois é uma experiência subjetiva que possui a força daquilo que o próprio senso comum reafirma em todos os tempos, pois sabe de sua presença na existência. Espírito e alma possuem essa característica, algo que não pode ser definido pelas categorias da razão e que é experimentado com uma dose de mistério que parece indicar muito mais sobre nossa psicologia. A alma é uma força movente, que tem força vital:
[…] o conflito entre a natureza e espírito não é senão o reflexo paradoxal da alma: ela possui um aspecto físico e um aspecto espiritual que parecem se contradizer mutuamente, porque, em última análise, não compreendemos a natureza da vida psíquica como tal. (JUNG, 1984, §680)
Assim, podemos perceber que, para Jung, corpo e alma estão juntos. As doenças afetam a totalidade do ser humano. Tudo que experimentamos é psíquico, todos as minhas percepções são imagens psíquicas que representam minha única experiência imediata, isto é, minha psique pode transformar e até mesmo falsear a realidade; toda a realidade é a realidade do psíquico, única realidade em que o psicólogo pode se apoiar. Nesse sentido, os conteúdos psíquicos se originam tanto na natureza, como no espírito. Porém, ainda acreditamos mais no fogo que nos queima, do que no medo de um fantasma: “o medo que tenho de fantasmas é uma imagem psíquica de origem espiritual, tão real quanto o fogo, porque o medo que eu sinto é tão real quanto a dor causada pelo fogo” (JUNG, 1984, §681). Problemas somáticos afetam a alma, tanto quanto a condição desta acaba por afetar o corpo.
Se tomarmos a ideia de espírito a partir de sua etimologia, veremos que espírito é a imagem reflexa de um afeto personificado, um reflexo do afeto autônomo e, por isso, segundo Jung, os antigos chamavam os espíritos de imagens (JUNG, 1984, §628-30). Mas além das personificações, temos também a palavra espírito sendo usada como um modo de pensar e de sentir, dito psicologicamente, como uma atitude, mas em um sentido superior, algo que não lhe foi atribuído por uma reflexão consciente. O espírito é uma intenção superior do inconsciente; sua natureza superior não pode ser expressa em conceitos e é por isso que se expressa por meio de um símbolo: “um espírito que requer um símbolo para sua expressão é um complexo psíquico que encerra os germes fecundos de possibilidades incalculáveis” (JUNG, 1984, § 644).
É na psique humana que matéria e espírito se tornam um. E foi isso que fascinou Jung e que, segundo Von Franz, fez dele um psiquiatra. Talvez seja isso que faça da alma e espírito conceitos que possuem uma definição razoável na psicologia empírica de Jung, mas que também apontam uma névoa onde nossa existência está mergulhada e onde a nossa consciência pouco pode enxergar, mas sabemos que ela é nossa única luz.
Jung está trabalhando na fronteira entre o conhecido e o desconhecido, mas não possui a ilusão de que conseguirá desvelar toda a natureza da psique. Ele sabe que essa é a tarefa da psicologia, uma árdua busca de autoconhecimento, conquistado, justamente, no confronto com o inconsciente.
A investigação psicológica não conseguiu arrancar os múltiplos véus que cobrem a face da alma, porque é inacessível e obscura, como todos os segredos da vida. Tudo o que podemos fazer é dizer que temos tentado (…) (JUNG, 1984, §688).
A hipótese do inconsciente ainda carrega muitas dificuldades para a ciência Psicologia. A observação de evidências, conquistada principalmente na descrição de comportamentos ou mesmo na dependência do conhecimento adquirido sobre a fisiologia, está comprometida. E isso já sabemos, até quando acreditamos que capturamos nossa alma em um conceito. A questão que se apresenta, e que Jung faz questão de reforçar em muitos de seus textos, é que a psique “observa-se a si própria e só pode traduzir o psíquico em um outro psíquico” (JUNG, 1984, §421). Para ele, qualquer ciência é função da psique e qualquer conhecimento nela se radica.
Nesse sentido, tratar de uma crença em espíritos é retomar a certeza de uma realidade espiritual tão constituinte da natureza humana quanto a realidade sensível e material. Tal crença é vista por Jung como um complexo autônomo, de intenção superior à consciência, pois emerge do inconsciente. E mais: essa sensação de superioridade não necessariamente está sintonizada com nossos valores conscientes. Esse confronto torna-se a fonte do nosso desenvolvimento. O espírito requer um símbolo para ser expresso e, portanto, esse confronto seria o mesmo que dizer que nosso ego enfrenta o “vazio”, o “desconhecido”, o “tao”, o “deus dentro de mim”. Mais precisamente a imago dei, que não significa igualar Deus ao si mesmo, como o próprio Jung não cansa de apontar e responde bastante claro em carta ao Pastor Walter Bernet (Cartas,13.06.1955 , p.427):
Eu falo da imagem de Deus e não de Deus, porque não tenho condição alguma de falar desse último. O fato de o senhor não ter percebido esta distinção fundamental é mais que surpreendente, é perturbador.
E complementa, ironicamente, que não sabia que, ao discutir a estrutura psíquica da imagem de Deus, teria tomado em mãos o próprio Deus.
Além dos símbolos de totalidade que expressam a função estruturante do inconsciente, Jung retoma a ideia de superioridade e nos alerta para o fato que o espírito não está mais no céu, ele pesa e está embaixo; não é mais fogo que arde, que gera e transforma, mas água, portanto o caminho da alma que procura pelo espírito perdido é o caminho da água, misteriosa, pois sua profundidade revela a escuridão do mistério. Se houver coragem de mergulhar, o ser humano poderá ser vivificado pela água (Cf. JUNG, 2008, §40). Sem esse mergulho é impossível ver o que há por trás da máscara: nossa face refletida no espelho dágua. E lá, só lá, podemos encontrar com a alma do vivente, a alma que confronta com seu sombrio desconhecido.
Para Marie Louise Von Franz, o espírito está polarizado à matéria, da mesma forma que estão a consciência e a inconsciência. Para a saúde psicológica é necessário manter uma ligação viva com o inconsciente coletivo. Tradicionalmente essa ligação nos é fornecida pela religião e pelos mitos. Porém, na modernidade, o ser humano se afastou muito dessa sabedoria, mas Jung alerta que a energia psíquica se dá na tensão consciência e inconsciência e, portanto, deveríamos retomar essa necessidade, agora através da própria experiência psíquica, na ideia de processo de individuação que nada mais é do que ser fiel à autenticidade da própria existência, em um contínuo de se tornar si mesmo.
Em Os fundamentos psicológicos da crença nos espíritos (1919), Jung afirma, como foi dito, que a crença nos espíritos é correlata à crença nas almas (Cf.1984, §577). Mas em outros textos, como, por exemplo, em O problema fundamental da psicologia contemporânea (1931), Jung trata de refletir sobre alma como uma questão para a psicologia e a importância dela para a própria vida, apontando que a única realidade imediata é a psíquica (Cf. 1984, cap. XIII). Nesse sentido, em um outro ensaio, Sobre os arquétipos do inconsciente coletivo (1935), ele observa que a alma busca o espírito, um espírito que é experimentado como seu. E em A fenomenologia do espírito nos contos de fada (1948), Jung explora a multiplicidade de sentidos da palavra Geist (espírito) e suas relações com a alma, concluindo se tratar de um complexo, que primitivamente era experimentado como um sopro que, quando é sentido como seu, trata-se de seu próprio espírito, e quando estranho, trata-se de outro espírito que lhe pode causar uma possessão, mostrando sua natureza arquetípica. (Cf. JUNG, 2008, §396)
Jung, em Tipos Psicológicos (1981, § 842), ao esclarecer sobre a alma, coloca-a em oposição ao conceito de persona. A alma é um guia, personificada como figura feminina no homem e masculina na mulher, que denomina de anima e animus, que teria como função facilitar o relacionamento com o inconsciente, com o mundo interior. Já a persona teria como função facilitar o relacionamento com o mundo exterior.
A alma é vida e quer viver, o espírito sopra a direção para essa vida. O arquétipo encontra na figura da anima e animus suas representações, tanto da direção como na ânsia de viver. Essas bases arquetípicas se mostram no contraponto da consciência, isto é, sabemos que no homem encontramos uma anima e na mulher um animus. A mulher é alma, Jung não deixava de assinalar. Em sua consciência e experiência consciente de ser mulher, ela naturalmente vive a subjetividade, as emoções, características de um ser feminino que precisa que o espírito do animus lhe dê o sopro da direção para que essa vida se lembre de sua origem. No homem, poderíamos dizer que esse sopro já está dado, mas em sua manifestação consciente ele apenas lembra de sua parte mais inferior, ou seja, características de um ser masculino que precisam ser animadas para que alcancem o verdadeiro espírito, que dignifica sua existência. Esse é o motivo da sizígia, os pares universais, cujo tema central é que ao feminino sempre é dado um masculino correspondente, isto é, os pares de deuses, o logos e eros, o amado e a amada. A plenitude como experiência de vida – uma vida autêntica – têm necessidade de um espírito, um complexo independente e superior, pois é este que possibilitará a expressão de todo o potencial dessa psique. (Cf. JUNG, 1982)
O velho sábio, arquétipo do espírito, representando o significado pré-existente, oculto na vida caótica, é pai e mãe da alma. Espírito é a função criadora. Portanto, o espírito é criador; criador dos sonhos e princípio da dinâmica psíquica que em seu movimento é, de modo livre e autônomo, produtor e organizador das imagens simbólicas. Essa função criadora – o espírito – sempre se manifestará no indivíduo. Nesse sentido, o espírito criador está vinculado ao processo de individuação.
Jung diz ser impossível definir com exatidão palavras como alma e espírito. Seu foco é precisamente a fundamentação psicológica da crença nos espíritos, seu aspecto impactante, superior e autônomo, pois desse modo seria possível sondar a natureza do inconsciente. Jung prefere não abordar se os espíritos existem em si e se podem se manifestar sua existência através de efeitos materiais. E não o faz, pois até onde ele investigou nada pode apresentar como prova. Ele não considera essa uma especulação sem sentido, apenas entende que até o momento em que escreveu esse texto (1931) nada poderia afirmar além destes serem expressões do inconsciente. Mas ele nos ensina que o cuidado da alma é o objetivo de um analista. Jung alerta que alma indica um ser vivo, que se move, aquela que enche de vida a existência. “Com sua astúcia e seu jogo de ilusões a alma seduz para a vida a inércia da matéria que não quer viver. Ela (a alma) convence-nos de coisas inacreditáveis para que a vida seja vivida.” (JUNG, 2008, §56)
Autora: Dra. Maria Cristina Mariante Guarnieri
Referências:
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GUARNIERI, Maria Cristina Mariante. Angústia e Conhecimento: uma reflexão a partir dos pensadores religiosos Franz Rosenzweig, Sören Kierkegaard e Qohelet. São Paulo: Editora Reflexão, 2011.
HESCHEL, A.J. Deus em busca do homem. São Paulo: Arx, 2006.
JUNG, C.G. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Petrópolis: Vozes, 2008.
_____ . Cartas de Carl Gustav Jung. Petrópolis: Vozes, 2002, vol.II.
_____ . Aion: estudos sobre o simbolismo do si-mesmo. Obras Completas. Rio de Janeiro: Vozes, 1982.
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