A arte de viver – a mais sublime e a mais difícil, segundo Jung – interpela a todos, também os idosos. Envelhecer é da vida, faz parte do ritmo natural da existência. Já o sentido de uma vida plena – ainda que muitas vezes no conflito e na dor -, esse, não! Depende de escolhas. – Dimas A. Künsch
“Perversão.”
“Ausência de estilo.”
“Uma verdadeira monstruosidade psicológica.”
Carl Gustav Jung não segura a língua nem mede palavras quando deseja chamar a atenção para o triste destino de um tipo de vida que poderíamos designar como besta.
No caso específico, ele usa essas e outras expressões, igualmente fortes, para se referir ao envelhecimento, quando esse envelhecimento ocorre, tristemente, na contramão do sentido natural da vida humana.
Vida sem propósito, desprovida de qualidade. É isso que a vida acaba virando. “Uma vida desgraçada”, lamenta Jung.
A conversa é, pois, como avançado, sobre aquilo que Jung chama de “o outono da vida”, isto é, o envelhecimento e sua consequente proximidade com a morte. E, para essa conversa, dois ensaios do pai da Psicologia Analítica se revestem de particular importância. Ambos se encontram na parte final do volume 8/2 das Obras Completas de Jung, que traz como título A natureza da psique (JUNG, 2012).
O primeiro desses ensaios, “As etapas da vida humana”, foi publicado em 1930, o ano em que Jung completou 55 anos de idade. O segundo, “A alma e a morte”, viria à luz quatro anos depois, em 1934, aos 59 anos.
Jung, só para lembrar, morreria em 1961, aos 85 anos, cerca de três décadas depois de ter se ocupado pela primeira vez com a produção desses textos. E é interessante observar o seguinte: no prólogo de Memórias, sonhos, reflexões (JUNG, 2006, p. 31), uma espécie de autobiografia publicada no ano de sua morte, Jung anotaria que sua vida foi “a história de um inconsciente que se realizou”.
“Tudo o que repousa no inconsciente”, expõe Jung, “aspira a tornar-se acontecimento”. A personalidade “quer evoluir a partir de suas condições inconscientes e experimentar-se como totalidade”.
Um inconsciente que se realiza!
Um inconsciente cujos conteúdos e potencialidades mais recônditos aspiram a se tornar acontecimento, realidade vivida, experiência de vida!
O sonho humano da totalidade, da plenitude – tão diferente da ideia, humanamente torta e até perversa, de os humanos alcançarem a perfeição!
Lembrando as palavras iniciais deste texto – retiradas da boca do próprio Jung –, podemos facilmente concluir que Jung não viveu nem de longe o outono de sua vida como “um pervertido”, um carente de “estilo”, uma “monstruosidade psicológica”.
Não fez de sua vida uma coisa besta.
Não morreu bestamente.
Não teve uma velhice desgraçada.
A gente sabe que não. E não é apenas porque ele o disse, com todas as letras e com toda a sua autoridade intelectual e moral.
Aliás, nem poderia ser diferente. Curador ferido, ao tratar da velhice, como de outras etapas da vida humana, Jung fala antes e acima de tudo de si mesmo – e de seu si-mesmo.
Porque ninguém pode dar o que não tem, Jung deixa claro em mais de um trecho de sua obra. Ninguém pode ensinar o que não sabe.
“Se alguém quer educar, que primeiro seja educado”, escreve, em outro ensaio, sobre “A formação da personalidade” (JUNG, 2013, p. 179).
Jung, nessa última citação, está se referindo ao “ideal pedagógico” de educar as crianças para a personalidade. Fala do “entusiasmo pedagógico” de pais e educadores. Alfineta: diz que ele mesmo nutre sérias dúvidas se essa mania de querer educar nossas crianças não esconde o medo que temos de nos confrontar com as nossas próprias sombras e os nossos complexos todos.
“Todo o nosso problema educacional tem orientação falha: vê apenas a criança que deve ser educada, e deixa de considerar a carência de educação no educador adulto” (JUNG, 2013, p. 180).
Em resumo, voltando ao tema do inconsciente, que teria se realizado na vida de Jung: em Jung, com efeito, vida e caminho da individuação não se distinguem. Uma coisa leva à outra. Uma coisa briga, sofre e se alegra com a outra. Sem muita chance para a vida besta.
Convém, no entanto, não exagerar na compreensão da ideia de totalidade em Jung. Nele mesmo e em toda a sua obra, a totalidade está longe de ser totalitária, um samba de uma nota só, algo unívoco, unilateral, sem conflito, sem ferida e sem dor.
“A personalidade, no sentido da realização total de nosso ser, é um ideal inatingível”, diz Jung. E complementa: “O fato de não ser atingível não é uma razão a se apor a um ideal, pois os ideais são apenas os indicadores do caminho e não as metas visadas” (JUNG, 2013, p. 183).
‘Angelus novus’ invertido
Nas investidas retóricas e práticas de Jung contra a velhice sem propósito nem qualidade, dois trechos dos ensaios citados chamam fortemente a atenção pela sua assertividade. No primeiro (par. 800), Jung adverte sobre o fato de que “muitas pessoas se petrificam na idade madura”. Elas não conseguem acompanhar o fluxo da “vida natural”, que é “o solo em que se nutre a alma”.
Vidas petrificadas!
Não-vidas!
Essas pessoas, ele continua, “olham para trás e se agarram ao passado, com um medo secreto da morte no coração”. “Ficam paradas como colunas nostálgicas, com recordações muito vívidas do seu tempo de juventude, mas sem nenhuma relação vital com o presente.”
Múmias paralíticas, na voz de Waldemar Magaldi.
Vidas na contramão da natureza e da história de si mesmas e, também, do mundo!
“Medo da morte” como “medo também das exigências normais da vida” (JUNG, 2012, p. 362).
Me lembrei, aqui, da figura do “Angelus Novus”, de Paul Klee, que é “o anjo da história”, na visão de Walter Benjamin. Olhos arregalados, boca aberta, asas estendidas e rosto voltado para trás, o anjo parece querer afastar-se de algo que fita atentamente, horrorizado. Foge de seu passado.
Nas palavras de Benjamin, o passado de que o anjo assustado tenta fugir representa a mais pura imagem de uma enorme catástrofe. Há escombros por toda parte. São destroços e mais destroços que ninguém, nem mesmo um anjo, consegue juntar.
Uma tempestade muito forte, com rajadas de um vento impetuoso, não permite ao anjo bater as asas para obter algum sucesso em seu movimento desesperado de fuga. De costas para o passado, nosso anjo, com cara de dar dó, é arremessado violentamente de encontro ao futuro, enquanto “um amontoado de escombros cresce diante dele até o céu”.
Nessa metáfora, como imagina Benjamin, a tempestade é o progresso.
O progresso doido, incontrolável e amedrontador.
Mas voltemos para Jung e para a nossa conversa sobre o envelhecimento.
Pensando bem, o velho de vida triste e infeliz de que estamos falando mais se parece com um angelus novus invertido.
É do futuro que ele foge.
Do entardecer da vida.
Ele foge da morte.
Ao contrário do anjo de Paul Klee, o velho triste, na visão de Jung, está de costas, não para o passado que o assusta, mas para o futuro. O passado o seduz.
Ele se agarra ao passado. Sente nostalgia. Foge para o passado.
Ele tem medo da morte que se avizinha: o mistério da morte!
Tem medo de dizer sim ao chamado da vida, não importa nunca a idade.
Nosso pobre velho infeliz, que leva uma vida besta, busca um consolo impossível numa juventude e, mais atrás ainda, numa infância que, a bem da verdade, ele nunca viveu. Uma juventude e uma infância que nunca existiram de fato. Pelo menos, não nos moldes da nostalgia e da ilusão que o nosso velho triste acalenta.
Se bem que, na vida vivida, aquém e além das imagens e das analogias, passado e futuro se deixam embaralhar nos percursos da vida besta, seja ela de que idade for. “Quem se protege contra o que é novo e estranho e regride ao passado está na mesma situação neurótica daquele que se identifica com o novo e foge do passado”, assinala Jung. “A única diferença é que um se alheia do passado e o outro do futuro. Em princípio, os dois fazem a mesma coisa: mantêm a própria consciência dentro de seis estreitos limites, em vez de fazê-la explodir na tensão dos opostos e construir um estado de consciência mais ampla e mais elevada” (JUNG, 2012, p. 351).
O passado como ilusão e fuga
No parágrafo seguinte (801), Jung acena para o que era óbvio em seu tempo – e o é, tanto ou mais que tanto, também em nossos dias: “A velhice é sumamente impopular”. Não é daquelas coisas das quais se possa dizer: “Nossa! Que felicidade que é ser velho!”
Não, não é.
Em nossa cultura e em nosso mais que assimétrico e injusto modo de organizar a sociedade e a vida, associar velhice com felicidade pode parecer uma verdadeira provocação.
O desprestígio de que padece a velhice, para além do medo da morte, pode em parte representar uma razão por que, sempre nas palavras de Jung, “nos apegamos ao nosso passado e ficamos presos à ilusão da nossa juventude”.
Vidas iludidas!
“[…] um septuagenário jovem não é delicioso?”, Jung pergunta, repercutindo o modo tosco e torto de pensar daqueles que propõem ilusoriamente que o velho deva ser eternamente jovem.
“Não, não é nada delicioso”, responde Jung, antes de desferir mais um cruzado no corpo alquebrado de nossas frágeis ilusões. Tanto “o homem de trinta anos com espírito infantil, [que] é certamente digno de lástima”, quanto o idoso iludido de ser jovem “são pervertidos, desprovidos de estilo, verdadeiras monstruosidades psicológicas”.
Vidas monstruosas!
“[…] um velho que não sabe escutar os segredos dos riachos que descem dos cumes das montanhas para os vales não tem sentido, é uma múmia espiritual e não passa de uma relíquia petrificada do passado. Está situado à margem da vida, repetindo-se mecanicamente até a última banalidade.”
Vidas mumificadas, à margem da vida!
Relíquias petrificadas do passado!
Vida banal! Besta!
Esse tipo de vida, segundo Jung, não merece de fato outro adjetivo que “desgraçada”. Para esse tipo de velhos tristes, parece mesmo não restar muita coisa além de sonhar que essa não-vida chegue o mais rápido possível ao seu fim, como sublinha Jung em outro trecho do mesmo ensaio.
A insuportável vida regada a desgraça, sem propósito, sem sentido, a vida besta vê a morte “como o fim de um processo”, e não como “uma meta e uma consumação” (JUNG, 2012, p. 362).
A tempestade que ameaça o anjo benjaminiano projeta a vida humana para o futuro de uma história infeliz, o da afirmação do progresso. Sob o ponto de vista da Psicologia Analítica, no caso do velho triste, trata-se, antes, da negação do progresso da consciência, da não-consumação do desenvolvimento da personalidade.
Assim, e de novo, aquilo que nesse caso se nega não é o progresso que tanto assusta o anjo. Nega-se o fluxo natural da vida de que fala Jung. Nega-se o solo fértil do qual se alimenta a alma humana.
Nega-se, como já citado, a possibilidade de fazer a consciência “explodir na tensão dos opostos e construir um estado de consciência mais ampla e mais elevada” (JUNG, 2012, p. 351).
Arte de viver e arte de morrer
Embutida nesse dinamismo negacionista encontra-se, portanto, a mais completa traição àquilo que se pode chamar de propósito natural da velhice.
De novo o tema do propósito, nas palavras de Jung: “Se atribuímos uma finalidade e um sentido à ascensão da vida, por que não atribuirmos também ao seu declínio?”, ele pergunta. “Se o nascimento do homem é prenhe de significação, por que é que a sua morte também não o é?” (JUNG, 2012, p. 365).
Declínio/morte com significado!
Há um arquétipo ali, nesse lugar onde a vida há milhões e milhões de anos se faz e refaz, se molda, se apresenta, mostrando o ar de sua graça!
“O ser humano não chegaria aos setenta ou oitenta anos se esta longevidade não tivesse um significado para a sua espécie”, prossegue Jung. “Por isto, a tarde da vida humana deve ter também um significado e uma finalidade próprios, e não pode ser apenas um lastimoso apêndice da manhã da vida” (JUNG, 2012, p. 356).
“Mas não devemos esquecer que só bem pouquíssimas pessoas são artistas da vida, e que a arte de viver é a mais sublime e a mais rara de todas as artes” (JUNG, 2012, p. 357).
Desse modo, há vidas que, por tantos e tão diversificados motivos, não se realizam. Não se desenvolvem. Não se consumam.
Apenas chegam a um fim – e, quanto antes, parece que melhor.
“O vinho da juventude nem sempre se clarifica com o avançar dos anos; muitas vezes até mesmo se turva”, comenta Jung, para dizer em seguida que “é nos indivíduos de mentalidade unilateral em que melhor se podem observar os fenômenos acima mencionados, muitos dos quais se manifestam ora mais cedo, ora mais tardiamente” (JUNG, 2012, p. 352).
Os “fenômenos acima mencionados”, de que fala Jung, são em primeiro lugar um endurecimento/enrijecimento de convicções e princípios que nortearam os idosos até então, “principalmente os de ordem moral”. E isso “pode levá-los, crescentemente, a uma posição de fanatismo e intolerância […]. É como se a existência desses princípios estivesse ameaçada, e, por esta razão, se tornasse mais necessário ainda enfatizá-los” (JUNG, 2012, p. 352).
É nesse ponto, eu julgo, que Jung oferece a chave que nos permite fugir de uma velhice infeliz, petrificada, desgraçada: “Para o jovem constitui quase um pecado ou, pelo menos, um perigo ocupar-se demasiado consigo próprio, mas para o homem que envelhece é um dever e uma necessidade dedicar atenção séria ao seu próprio si-mesmo” (JUNG, 2012, p. 355-356).
O si-mesmo!
Se ligarmos o que aqui está sendo dito com a ideia, antes apontada, do fluxo natural da vida rumo à consumação da vida – vamos dizer assim: a ideia de um arquétipo da velhice –, temos que, quanto mais se aproxima de seu fim, tanto mais a vida humana anseia por sentido, por plenitude, por totalidade. Por um diálogo denso e por certo também tenso com o si-mesmo, o centro maior da vida psíquica e da personalidade humana.
Um diálogo difícil, agonístico, mas necessário. Fundamental.
“Depois de haver esbanjado luz e calor sobre o mundo, o Sol recolhe os seus raios para iluminar a si mesmo”, resume Jung (2012, p. 356), numa imagem que me parece belíssima.
Mas Jung volta aos “fenômenos acima mencionados” para insistir que não é muito isso o que se vê acontecer e o que se experimenta no cotidiano da vida de tantas pessoas idosas. “Em vez de fazer o mesmo” que a metáfora do Sol indica, “muitos indivíduos idosos preferem ser hipocondríacos, avarentos, dogmatistas e laudatores temporis acti (louvadores do passado) e até mesmo eternos adolescentes” (JUNG, 2012, p. 356).
Transformam-se, essas pessoas, em “lastimosos sucedâneos da iluminação do si-mesmo”, como “consequência inevitável da ilusão de que a segunda metade da vida deve ser regida pelos princípios da primeira” (JUNG, 2012, p. 356).
“O pior de tudo é que pessoas inteligentes e cultas […] entram inteiramente despreparadas na segunda metade de suas vidas.” Vive-se sob a “falsa suposição de que nossas verdades e nossos ideias continuarão como dantes”, mas não é isso que acontece: “Não podemos viver a tarde de nossas vidas segundo o programa da manhã, porque aquilo que era muito na manhã será pouco na tarde, e o que era verdadeiro na manhã será falso no entardecer” (JUNG, 2012, p. 355).
E há um complicador na trajetória desse exército de pessoas infelizes: não estamos aptos interiormente para esse entardecer da vida. Não estamos capacitados, nutridos para isso.
“O jovem é preparado durante vinte anos ou mais para a plena expansão de sua existência individual”, lembra Jung. “Por que não deve ser preparado também, durante vinte anos ou mais, para o seu fim?” (JUNG, 2012, p. 365).
Uma observação cabe aqui, sobre o termo “preparado”. Talvez preparar não seja o caso. O espanto e a criatividade rompem com o preparo. A ideia de preparar, a partir sobretudo da escola, mais lembra o ideal iluminista de praticar aquele tipo de educação que Jung tanto e tantas vezes duramente critica.
O Sábio, diz Jung, traz consigo a energia da Criança Divina. Diferentemente acontece no caso do Senex, que vive o tempo todo à sombra do Puer egoísta, como bem lembra, de novo, Magaldi.
Um grande ponto de interrogação
Que imagem se pode esboçar desse velho triste, desse não-velho ou antivelho, a partir dessas breves anotações, com base nos dois ensaios de Jung?
Esta minha leitura dos dois ensaios junguianos não é falsa nem mentirosa, mas completa também não é. Trata-se de um recorte. São pinçados e frisados alguns aspectos apenas, ainda que muito salientes.
Aquilo que eu aqui faço, que é sério, muito sério, não passa às vezes (quase) de uma brincadeira. Porque a vida não se faz de explicações. Não cabe em conceitos e definições. A velhice também não.
O próprio Jung, ao iniciar o primeiro de seus ensaios, sobre “as etapas da vida humana”, lembra que está tratando de coisas “difíceis, questionáveis ou ambíguas”, questões que admitem mais de uma resposta, sem segurança, sem clareza de verdade. “Por este motivo, haverá não poucos aspectos que nossa mente terá de abordar com um ponto de interrogação” (JUNG, 2012, p. 343).
Em um trecho mais adiante, num verdadeiro tributo ao pensamento kantiano, Jung anota que, para ele, “a significação e a finalidade de um problema não estão na sua solução, mas no fato de trabalharmos incessantemente sobre ele”. E é essa atitude que “nos preservará da estupidificação e da petrificação” (JUNG, 2012, p. 350-351).
Ora, imaginar que tanta desgraça possa vir junta, num indivíduo só, por mais triste que possa ser o velho triste, não me parece razoável.
Ou talvez se possa, sim, admitir essa possibilidade, uma vez que, no mundo da infelicidade humana, não costuma fazer muito sentido medir o tamanho ou pesar a quantia da angústia e da dor. Até se poderia lembrar Tolstói, quando ele aponta que todas as famílias felizes se parecem, mas que cada família infeliz é infeliz à sua maneira.
A vida besta e desgraçada o é, também, à sua maneira.
Perfil (anti)ideal do velho triste
O alemão Max Weber, um dos pais da ciência da Sociologia, criou uma categoria de análise a que ele deu o nome de “tipos-ideais”. São tipos mais ou menos concretos, objetivos, que ajudam no entendimento dos fatos sociais. Mas são ideais. Não se realizam de fato. São auxílios teóricos. São ferramentas.
A partir das colocações de Jung nesses dois ensaios – e sem acrescentar nada de novo, para além do quanto já dito –, enumero aqui, em forma de tópicos, algumas características principais do perfil do velho triste, basicamente sob o ponto de vista psíquico do desenvolvimento da personalidade. Um tipo-ideal de velho triste. Ou, melhor dizendo, um antitipo. Um não-tipo ideal. Ou um tipo não ideal.
Nosso velho triste, tristemente, pode ser entendido como alguém petrificado, incapaz de acompanhar o fluxo natural da vida; | que olha para trás e se agarra ao passado, como uma relíquia petrificada desse mesmo passado; | que tem medo da morte; | que não passa de uma coluna nostálgica do passado e que, ainda por cima, cultiva a ilusão de ser jovem.
Nosso velho triste, como o descreve o próprio Jung, pode ser visto como um pervertido, desprovido de estilo, verdadeira monstruosidade psicológica; | uma múmia espiritual; | alguém que está situado à margem da vida; | aliás, uma vida desgraçada a dele, para a qual a morte aparece como um fim – e tomara que chegue logo!; | desafortunadamente, a tarde da vida acaba se transformando em um lastimoso apêndice de sua manhã; | constata-se com frequência um endurecimento/enrijecimento de convicções e princípios; | o que beira muitas vezes o fanatismo e a intolerância.
Hipocondríaco, avarento e dogmático em suas posições, nosso velho triste não se sente apto, capacitado, nutrido para viver essa fase de sua vida. E, também por causa de tudo isso, falha no propósito fundamental da vida humana, que seria o de dedicar atenção séria ao seu próprio si-mesmo nessa etapa da vida que a metáfora do Sol, cumprida a sua tarefa em cada nova manhã, tão bem ilustra. Ilumina.
E é neste ponto que a (quase) brincadeira assume ares de uma seriedade incomparável.
Bem distribuído socialmente, o fenômeno do infortúnio da vida besta pode frequentar, às vezes com ampla desenvoltura, qualquer canto e qualquer vida, de qualquer classe social, o palácio ou a tapera, o masculino ou o feminino, a vida do senhor doutor como a do homem simples, ordinário.
E é assim que a pobreza de espírito acaba muitas vezes por se juntar a um rosário imenso de dificuldades, dores e feridas que acossam a vida de tantos velhos e velhas por aí. É a dor física que vem do desgaste do corpo, de suas energias e potencialidades. É a dor das malditas condições injustas que assolam a vida de tantos miseráveis, empobrecidos, esquecidos.
O diálogo fértil e bem complexo com o arquétipo do Velho Sábio não dirime, por certo, tanta dor, nem nos afasta do abraço da morte. Mas triste, mesmo, verdadeiramente triste, é entrega de si mesmo ao arquétipo do Senex.
O Senex é o velho velho.
O velho como adjetivo.
O velho triste.
PS.: Este texto é resultado de minha participação numa videoconferência para o VII Congresso Junguiano do Instituto Junguiano de Ensino e Pesquisa, o Ijep (6-8/06/22), com o título de “Envelhecer cedo e mal, doença contemporânea que pode ser curada”. Participaram, junto comigo, Caroline Santos Costa e Patrícia Moura Vernalha, ambas analistas junguianas em formação. Mediou a conversa Waldemar Magaldi, da Direção do IJEP.
Dimas A. Künsch – Analista em Formação pelo IJEP
Analista Didata – Waldemar Magaldi
Imagem: “Velho na tristeza” (Van Gogh) – Reprodução
Referências
JUNG, Carl Gustav. A natureza da psique. 8 ed. Petrópolis: Vozes, 2012.
JUNG, Carl Gustav. O desenvolvimento da personalidade. 14 ed. Petrópolis: Vozes, 2013.
JUNG, Carl Gustav. Memórias, sonhos, reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.
KÜNSCH, Dimas A. Viver a velhice, viver na velhice. IJEP. Disponível em: https://www.ijep.com.br/artigos/show/viver-a-velhice-viver-na-velhice. Acesso em: 2 jun. 2022.