Nunca nos encontramos tão polarizados diante das questões políticas como nos dias de hoje, lembro bem dos meus pais e avós perguntando uns aos outros em quem votariam. Não existia um receio de se apontar para um candidato ou para outro, naquela época eu tinha a impressão de que todos buscavam fazer a coisa certa com o seu voto. Essa cena hoje em dia me causa saudades, apesar de fazer mais de 30 anos. O fato é que as coisas mudaram e de forma muito rápida, depois desta época. Quando eu já tinha idade suficiente para votar, não queria saber de política, não me interessava quem seria o governador ou presidente, ninguém era honesto o suficiente, a questão importante aqui é a projeção deste pensamento direcionada no político.
O último pleito para presidente no Brasil se tornou o grande marco da polarização que se consolidou. Uma consolidação que talvez há muito tempo já estava em curso, porém apenas de modo inconsciente. Afinal, precisamos ter em mente que qualquer mudança social que presenciamos hoje é fruto de uma movimentação inconsciente que leva anos, e que a priori se manifesta na individualidade de cada um, porém fica mais evidente em um espaço coletivo onde a liberdade e a força do ego se encolhem diante da massificação. Quando se trata do movimento da massa e não mais do indivíduo, cessam os regulamentos humanos e os arquétipos passam a atuar. (Jung, Vol10/2 §395s)
É preciso lembrar que não são apenas as mudanças que levam anos e anos para se manifestar, o que se encontra reprimido também. Quando Jung fez uma análise do que estava acontecendo na Alemanha, um pouco antes de estourar a segunda guerra, percebeu a emergência de uma figura arquetípica na imagem de Wotan, com o despertar deste deus germânico no eminente conflito que estava surgindo. Para se ter uma ideia do tempo que se leva para um conteúdo arquetípico atravessar as linhas do inconsciente coletivo, Richard Wagner intuiu a necessidade da transformação da cultura alemã, que foi de certa forma representada no ciclo de 4 óperas conhecidas como “O anel de Nibelungo”. O detalhe é que essas ideias estavam sendo desenvolvidas quase 60 anos antes da primeira guerra mundial e lá já aparece a manifestação desta potencialidade destrutiva.
Talvez atualmente as repressões não levem tanto tempo assim com o advento tecnológico das redes sociais, a verdadeira face daquilo que se reprime encontrou um caminho de manifestação para além dos sonhos, hoje a constelação de um complexo se manifesta ao vivo e em cores. Basta um celular conectado à internet para se presenciar a sombra de um sujeito emergir em meio a uma guerra, naquele momento o opressor (guardado a sete chaves) encontrava seu verdadeiro espaço entre os oprimidos. Um complexo não escolhe nem hora nem lugar, ele apenas constela.
Como Jung já demonstrou, a constelação de um complexo pode alcançar tal força que o ego perde sua autonomia, parecendo mais um passageiro de um carro desgovernado. O mundo tecnológico não é único lugar que abre espaço para essas manifestações, a política acaba se tornando um espaço para as manifestações de mesma ordem, porém no âmbito coletivo. Edward Edinger explica que a falta de um espaço que possa comportar as imagens arquetípicas acaba encontrando um caminho na política ou movimentos seculares quando:
[…] o valor supra pessoal projetado, que foi retirado do seu recipiente religioso, seja reprojetado em algum movimento secular ou político. Mas os propósitos seculares jamais constituem um recipiente adequado para conteúdos religiosos. Quando a energia religiosa é aplicada a um objeto secular, temos diante de nós algo que se pode descrever como adoração de ídolos – uma forma espúria e inconsciente de religião. O atual exemplo destacado de reprojeção é o conflito entre o capitalismo e comunismo. (Edinger, p.104)
O que Edinger está falando neste recorte pode muito bem nos ajudar a entender melhor o que estamos assistindo na política brasileira, nos últimos 4 anos em específico. O messias que um dia foi tão aguardado como o salvador do mundo me parece que foi reprojetado no Jair Messias. O que estamos assistindo hoje no meio político não pode ser estudado através da particularidade de uma única pessoa na figura do político, o que devemos fazer neste cenário é se perguntar o que o político A, B ou C trazem como representação do coletivo, porque a psicopatologia de massa tem suas raízes na psicopatologia individual. (Jung 10/2 §445). O que estamos assistindo na política é a verdadeira guerra de opostos representados pela esquerda e pela direita, mas que na realidade é entre a democracia, que pode ser de direita ou de esquerda, e padrões autoritários e ditatoriais. É no teatro do inconsciente que Edinger ampliou bem essa ideia:
Quando o valor do Si-mesmo é projetado por grupos opostos entre si, em ideologias políticas conflitantes, temos uma situação semelhante à da quebra da totalidade original do Si-mesmo em fragmentos antiéticos que lutam entre si. Nesse caso, as antinomias do Si-mesmo ou Deus passam a atuar na história. Ambos os lados de um conflito partidário derivam sua energia da mesma fonte, o Si-mesmo comum, mas inconscientes disso, eles estão condenados a viver o conflito trágico na própria vida. O próprio Deus é enredado nas malhas do conflito sombrio. (Edinger, pág.104)
A ideia dos lados opostos entre si no Brasil não é tão recente, na década de 30 existiu um movimento no Brasil chamado integralismo, a frente deste movimento estava um Plínio Salgado, que levou o movimento da extrema-direita com ideias muito similares ao que vigora nos tempos atuais. Naquele tempo Plínio queria um país voltado para o nacionalismo através do movimento conhecido como “Ação integralista brasileira” o AIB. O movimento estava em busca de recuperar valores nacionais. Não seria também a base do atual governo, uma recuperação de valores, do amor à pátria, à família tradicional com um Deus acima de todos. Nas palavras de Pedro Doria, a história sempre ilumina aquilo que vivemos. A história demonstra para nós que alguns movimentos similares entre si se repetem, e assim vejo também o mesmo acontecendo do inconsciente para consciência coletiva.
A política e os movimentos políticos/sociais acabam se tornando um grande espaço de manifestação de conteúdos sombrios que muitas vezes não são reconhecidos, como acabamos de ler acima. Tudo que age a partir do inconsciente vai aparecer projetado no outro (Jung, Vol 8/1 §99), as vezes nos reconhecemos, as vezes repudiamos como algo totalmente fora de cogitação por padrões éticos ou morais, mas não na política. Quaisquer possibilidades de censura entram em cena a bandeira da imunidade parlamentar ou qualquer outra lei que de legitimidade aos atos do indivíduo representante de uma determinada facção política, e neste caso do coletivo também, porque uma pessoa neste espaço não carrega uma ideia particular, mas sim a ideia vendida para um coletivo.
É preciso lembrar que o sistema psíquico está sempre em busca de autorregulação, em outras palavras, compensação. Qualquer parte da consciência que houver uma desordem encontraremos no inconsciente um movimento simbólico com a representação de ordenamento, para qualquer injustiça a justiça, para violência a paz ou uma violência mais exagerada ainda. Jung observou esse fenômeno acontecendo na Alemanha nazista, e explicou que:
Quando essa espécie de movimento compensatório do inconsciente não consegue ser absorvido pela consciência individual, pode gerar uma neurose ou até mesmo uma psicose, e o mesmo vale para o coletivo. É evidente que para se produzir um movimento compensatório desse tipo é preciso que algo esteja fora de ordem na atitude consciente; algo deve estar invertido ou fora de proporções, pois somente uma consciência desequilibrada pode provocar um movimento contrário no inconsciente. (Jung, Vol 10/2 §448s)
Como Jung deixa claro, o que vale para o individual também vale para o coletivo, o problema não resolvido na psique pessoal agregará pessoas em torno da mesma ideia, e assim nascerá o movimento de massa que poderá eleger alguém como o representante de tudo que não foi possível transformar no campo pessoal, porém sem sucesso, pois essa atitude de mudança não pode depender do campo coletivo. Não se pode esperar que o político mude a vida de uma nação sem que isso aconteça também campo pessoal e Jung entendeu bem essa questão:
A integração de conteúdos inconscientes consiste num ato individual de realização, compreensão e valoração moral. Trata-se de uma tarefa extremamente difícil que exige um alto grau de responsabilidade ética. Somente de poucos indivíduos pode se esperar a capacidade para tal desempenho, e esses não são absolutamente os líderes políticos, mas os líderes morais da humanidade. (Jung, Vol 10/2, §451)
Por isso é possível entender que hoje a política representa o espaço de manifestação de tudo que não conseguimos lidar no individual e não podemos esperar que neste espaço aconteça a salvação tão esperada, pois nele encontramos apenas a sombra. É por isso que todo processo na psicoterapia junguiana busca o fortalecimento adequado do Ego para enfrentar aquilo que não possível aceitar abertamente, até ponto que seja possível reconhecer e aprender que nem toda a sombra abrigará o mal, que dentro egoísmo também é possível encontrar o amor ao próximo. É neste espaço interno que o confronto com o si-mesmo deve acontecer, resultando na compressão de que a paz poderá voltar, mas somente quando a derrota e a vitória perderem sua importância (Jung, Vol10/2, §455). Krishnamurti também percebeu a mesma a coisa:
Quando cada indivíduo leva em conta o bem-estar da comunidade, então pode haver verdadeira cooperação. Agora não há cooperação porque vocês estão sendo meramente compelidos em uma ou outra direção, à maneira de ovelhas. Seus líderes os oprimem, tratando-os como instrumentos para a realização de interesses. E vocês são explorados porque seu inteiro modo de pensar, sua inteira estrutura, visa à autopreservação, às custas de todas as outras pessoas. E eu digo que pode haver autopreservação, segurança verdadeira, em termos mundiais, quando vocês, como indivíduos, destruírem tudo aquilo que mantém as pessoas separadas, lutando entre si em guerras incessantes, as quais são resultado da existência de nacionalidades e governos soberanos. Eu lhes asseguro, vocês não terão paz, vocês não terão felicidade, enquanto essas coisas existirem. Tudo isso apenas ocasiona mais e mais discórdia, mais e mais guerras, mais e mais calamidades, sofrimento e dor. Tais coisas foram criadas por indivíduos, e como indivíduos vocês precisam começar a derrubá-las, a se libertar delas, pois somente assim vocês descobrirão o êxtase da vida. (Krishnamurti,1934 – grifos meus).
Enquanto não assumirmos a responsabilidade do que acontece na política, nada poderá ser transformado. Porque para transformarmos o mundo externo é necessário que essa transformação aconteça, primeiramente, em nosso íntimo. Por isso Jung afirma que a política reflete a psicologia do povo! Ou seja, precisamos ser a mudança que desejamos!
Daniel Gomes – Analista em formação IJEP
Didata responsável – Waldemar Magaldi
Daniel Gomes – 28/04/2022
Referência Bibliografias
Edinger, F. Edward, 2006, São Paulo, Editora Cultrix
Jung. C. G., (2011a) Aspectos do drama contemporâneo 12/2, Petrópolis, Rio de Janeiro: Editora Vozes.
Doria, Pedro, (2020) Fascismo à brasileira, São Paulo, Ed. Planeta
Krishnamurti, Jiddu, Segunda palestra no Town Hall – Auckland, Nova Zelândia – 01/04/1934)
Imagem: “A morte de Júlio César” – Vincenzo Camuccini