Em seu livro “Cartas de um diabo a seu aprendiz”, C.S. Lewis faz uma inversão genial de valores contando com detalhes os mecanismos e artimanhas utilizados pelos seres que habitam o inferno para afastar as pessoas do verdadeiro caminho que levaria ao encontro com Deus. Na história, um diabo explica a seu aprendiz, através de cartas breves, quais ações devem ser tomadas para direcionar seu paciente (um ser humano) para que o comportamento terreno deste último o leve, no futuro, para as profundezas do inferno. É impressionante como, apesar do gigantesco avanço tecnológico que tivemos nos últimos anos, conseguimos viver ainda em um abismo espiritual tão grande. Muitos dos processos descritos no livro de Lewis, publicado pela primeira vez em 1942, podem ser observados atualmente. Num primeiro momento, parece absurdo pensar que um texto escrito durante a segunda guerra mundial ainda fale muito sobre o comportamento do ser humano contemporâneo, mas infelizmente, isso é verdade. Não é minha intenção fazer uma resenha do livro, apenas destacarei alguns trechos que mostram claramente que os capetinhas devem mesmo existir e parecem estar no caminho certo para a dominação da mente de uma grande parcela da população.
Nessa primeira parte vamos falar um pouco sobre ciência e religião com foco principal naquilo que teoricamente as separam, e que deveria ser o elemento unificador entre as duas: a dúvida. Jung diz em muitos momentos de sua obra que a paradoxalidade é o que nos leva mais próximo possível da experiência verdadeira do encontro com o si mesmo. O primeiro paradoxo religioso se apresenta, portanto, no ato de aceitarmos a dúvida e, mesmo assim, seguirmos em frente acreditando que seja possível integrar os aspectos mais profundos e sombrios do nosso ser. Devemos continuar sempre e a todo momento nos perguntando se estamos no caminho certo para essa união ou não, duvidando de cada ação e pensamento. A negação do paradoxal na religião, seja ela qual for, desencadeia uma diminuição energética de seus símbolos transformando-os em meros sinais literalizados e unilateralizados. Por consequência, o afastamento daquilo que é simbólico nos leva diretamente ao seu contrário, ou seja, àquilo que é diabólico. Não acredito que seja por acaso que Lewis comece seu livro exatamente com essa questão. As instruções da primeira carta do diabo são claras para que seu aprendiz mantenha seu paciente preso na concretude, mesmo que essa percepção da realidade seja deturpada: “Ensine-o a chamá-lo (o materialismo) de “vida real” e não o deixe perguntar o que ele quer dizer com “real”. (Carta I)
O objetivo principal das forças demoníacas aqui é que o indivíduo, preso naquilo que ele acredita ser a realidade, não tenha dúvidas. Ele precisa estar completamente cego e preso em qualquer que seja seu sistema de crenças. Nada pode ser questionado. Isso o levará cada vez mais para longe do processo de individuação descrito por Jung, mantendo-o afastado do encontro com o divino que existe em si mesmo e, consequentemente, a mercê das forças negadas do inconsciente. A pessoa se torna assim um ser autômato e robotizado que segue o comportamento coletivo sem nenhum tipo de questionamento. Para que isso ocorra é muito importante que a pessoa faça parte de um grupo, de uma instituição ou de um partido que pense da mesma maneira que ele. Jung diz sobre a massificação: “No seio da massa, o homem desce inconscientemente a um nível moral e intelectual inferior, que sempre existe sob o limiar da consciência, e o inconsciente está sempre pronto para irromper, logo que ocorra a formação e atração de uma massa.” (JUNG, 2016, p. 23)
A certeza, como a conhecemos popularmente, é o caminho para a perdição. Ela leva a pessoa a viver dominada por forças inconscientes, exatamente como o diabo deseja. Em sua etimologia a palavra “certeza” vem de certanus que, por sua vez, deriva de certus. Essa expressão indica algo seguro, garantido e determinado. Porém, certus é uma variante de cernere cuja tradução é peneirar ou separar. Palavra que dará origem a “discernimento” que é a faculdade de escolher através da reflexão. Portanto, originalmente a certeza só pode existir no ato contínuo de distinguir, separar e refletir. Ela, assim como os outros fenômenos da natureza, é mutável. O fundamentalismo religioso prega tudo como certo, salvação ou danação determinadas por regras pré-estabelecidas que servem somente ao propósito da instituição e não do indivíduo. A reflexão não é somente negada como também considerada desnecessária. Massificado, o indivíduo se preocupa cada vez menos com as questões morais, já que o grupo em que ele está inserido permite as maiores barbaridades e atrocidades em nome de algo tido como maior.
Ainda na primeira carta, o espírito maligno diz a seu aprendiz: “Graças aos processos que colocamos em ação dentro deles (dos seres humanos) há séculos, eles acham de todo impossível acreditar no desconhecido quando o que é familiar está bem diante de seus olhos. Persista incutindo nele a banalidade das coisas. Acima de tudo, não tente usar a ciência (quero dizer, as ciências verdadeiras) como defesa contra o cristianismo. Elas vão positivamente encorajá-lo a pensar sobre as realidades que ele não pode tocar nem ver.” (Carta I)
Portanto, é bem mais fácil acreditar que a terra é plana porque é apenas isso que podemos enxergar. Mas o diabo continua: “Mas o ideal mesmo seria não deixá-lo ler qualquer obra científica; antes, procure dar-lhe uma sensação geral de que ele sabe tudo e que aquilo que consegue fisgar de conversas e leituras casuais é ‘resultado de pesquisas mais recentes’. Lembre-se de que você existe para confundi-lo.” (Carta I)
Dada a importância do momento social, político e principalmente cultural do nosso país, faço questão agora de citar algumas frases pronunciadas por algumas pessoas tidas como “líderes” e conselheiros do nosso governo atual. Essas falas podem ser fortes indicativos de que eles estejam sendo influenciados por aprendizes de diabos ou até mesmo por seres de camadas superiores na hierarquia infernal:
“Não estudei o assunto da terra plana. Só assisti a uns vídeos de experimentos que mostram a planicidade das superfícies aquáticas, e não consegui encontrar, até agora, nada que os refute.” (Olavo de Carvalho em sua conta de Twitter no dia 29 de maio de 2019)
“Os livros hoje em dia, como regra, é um amontoado… Muita coisa escrita, tem que suavizar aquilo” (Presidente Jair Bolsonaro sobre os livros escolares em 3 de janeiro de 2020)
“A Igreja Evangélica perdeu espaço na História. Nós perdemos o espaço na ciência quando nós deixamos a teoria da evolução entrar nas escolas. Quando nós não questionamos. Quando nós não fomos ocupar a ciência. A Igreja Evangélica deixou a ciência para lá. “Ah, vamos deixar a ciência caminhar sozinha”. E aí cientistas tomaram conta dessa área. E nós nos afastamos”. (Ministra Damares em de janeiro de 2019)
“Se for somado o desmatamento que falam dos últimos 10 anos, a Amazônia já acabou. Eu entendo a necessidade de preservar, mas a psicose ambiental deixou de existir comigo.” (Presidente Bolsonaro em julho de 2019 sobre o desmatamento na Amazônia)
Os verdadeiros líderes religiosos não temem a ciência e não utilizam a fé para negá-la. Assim como o cientista que entende que nunca chegará na pedra fundamental da existência por ela ser mutável – como todos os fenômenos da natureza – não sente a necessidade egoísta de negar a crença dos outros, sejam elas quais forem. Existem nos dois, nos religiosos e nos cientistas verdadeiros, a dúvida. É exatamente ela que os impulsiona a perguntar, investigar e estudar cada vez mais. Quando reduzidos a fundamentalismos, tanto um discurso quanto o outro, acabam negando aquilo que deveria ser uma das bases principais de seu pensamento: a aceitação e a reflexão acerca daquilo que é diferente.
Nos dias de hoje a ciência pode ser reduzida de maneira ainda mais rápida a frases e manchetes de jornais encontradas na rede www (world wide web – grande teia mundial). Todo mundo pode se tornar um “especialista” em algo com apenas alguns minutos de pesquisa sobre qualquer assunto. Assim como acontece com a ciência, a religião também não consegue escapar de tal reducionismo. Os dados científicos são reduzidos às “pesquisas mais recentes” e os rituais religiosos são categorizados em “práticas arcaicas sem sentido” pela falta da experiência real do simbolismo que deveriam carregar. Os dois lados sofrem de literalização, o que implica em serem tomados sempre como verdades absolutas ou mentiras descaradas. A ciência cria as bombas que serão utilizadas pelos grupos religiosos extremistas para explodir aqueles que pensam de maneira diversa. E parece que nenhum dos lados percebe o quanto se ajudam nesse processo destrutivo.
Uma mensagem muito interessante do texto acima está numa frase que parece pequena, mas diz muito sobre o que vivemos atualmente: “Persista incutindo nele a banalidade das coisas.” A cada dia em que vivemos sob o domínio sombrio dos diabretes, os absurdos ditos e as ações inconsequentes do nosso governo se tornam banais. Até pouco tempo seria ilógico e insensato falar sobre um possível retorno do AI5, hoje isso é discutido quase como uma possibilidade real. Não sabemos o que o amanhã trará (esse texto foi escrito antes do ex secretário da cultura Roberto Alvim parafrasear e copiar frases de Goebbels em seu discurso sobre o futuro da cultura no Brasil). Os absurdos são tantos em tão pouco tempo que se tornam ordinários e acabam virando piada. No entanto, alguns poucos percebem o quanto isso é sério e o quanto estamos sendo coniventes se deixamos que essas coisas se tornem apenas motivo de risadas em conversas de bar.
Mas o que é possível fazer? Bom, o primeiro passo é trabalhar a nossa própria reflexão. Independente de concordar ou não com as atitudes do governo atual, ou mesmo com as do passado, refletir é preciso. Não se trata aqui de algo que se encontra longe de cada um de nós como indivíduos. Como descrito no livro de Lewis, todos temos os nossos próprios aprendizes de diabo cuidando e soprando em nossas mentes as ideias mais disparatadas sobre como estamos corretos a respeito de tudo. Tentam nos fazer acreditar que estamos no caminho certo, que nossas crenças são as únicas verdadeiras e que a relativização é uma bobagem. Ao contrário do que a maioria do que os ditos cristãos acreditam e pregam, certo é o diabo, Deus é dúvida. E a dúvida gera o embate para a função transcendente e, consequentemente, para que o processo de individuação se instale, despertando, de um lado, a capacidade crítica e reflexiva e de outro a certeza de que nada pode ser absoluto e literal. Estado de consciência necessário para impedir que o fascismo, nazismo, imperialismo ou absolutismo venham dominar.
*Jose Luiz Balestrini Junior, ser humano, psicólogo, especialista em psicologia junguiana pelo IJEP, membro analista em formação pelo IJEP, especialista em medicina tradicional chinesa, e Sifu (mestre) de Kung Fu.
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Referências
JUNG, C. G. Psicologia e religião, O.C. Vol. 11/1, Petrópolis, Vozes, 2016
LEWIS, C.S. Cartas de um diabo a seu aprendiz, Rio de Janeiro, Thomas Nelson Brasil, 2017