Uma lembrança muito mais afetiva do que objetiva me levou de volta ao CPT (Centro de Pesquisa Teatral) de Antunes Filho nos últimos meses. Passei quase todo o ano de 1990 lá. Infelizmente não fiz um diário do processo, grande falha, no entanto lembro que foi ali, naquele momento, naquele ano, que conheci Jung. Foi ali que iniciei meu “pequeno desvio”, onde me aprofundei em questões da física, da religiosidade, da psicologia, da mitologia, da filosofia ocidental e oriental, e muita coisa foi, com o tempo, fazendo sentido para mim. Tinha 27 anos na época e esse sentido tantas vezes me escapava e era preciso um tempo para que eu recuperasse o caminho. Tantas vezes me questionei: “Mas o que isso tem a ver com teatro?” E outras tantas vezes ouvi a seguinte resposta do Antunes: “Se vocês vão ou não se tornar bons atores, diretores, etc., não me interessa. Se eu conseguir com que vocês se tornem bons cidadão, bons seres humanos, já estarei satisfeito”. Essa citação vem da minha memória, que pode ter distorcido alguma coisa ou até tudo, quem sabe?
Esse artigo pretende abordar, assim, a relação do teatro de Antunes Filho com a Psicologia Junguiana. Para tal, começo apresentando Antunes:
José Alves Antunes Filho, ou simplesmente Antunes Filho, como era conhecido, nasceu no bairro do Bixiga em São Paulo em 12 de dezembro de 1929. Um grande artista, um encenador, diretor de teatro, cinema e TV, que trabalhou não apenas com o manancial criativo da psique humana, mas também com as dimensões ética, filosófica, espiritual e psicológica do indivíduo e da coletividade. Para Antunes, o ator e sua entrega total em cena deveriam dar vida não apenas ao homem e às suas questões contemporâneas, mas também ao homem de todos os tempos, desde os primórdios, das cavernas, chegando até o homem imaginário de um futuro longínquo. O ator estaria na dimensão da eternidade do ser humano, seria o ser de qualquer tempo. Ele dizia que, no momento da representação, assim como em outros momentos em que as noções de espaço-tempo são relativizadas, trabalhamos com uma presença simultaneamente no aqui-e-agora, no futuro e há 2500 anos.
Esse era o jogo da representação para Antunes: aquele que envolve o êxtase, o encontro com a alma, com a dimensão do eterno e do divino dentro de nós. Como somos semelhantes, mas não iguais aos deuses, nesse momento de suspensão surge uma realidade temporal e espacial não cravada no presente, mas que passeia por tempos longínquos, para frente e para trás. O momento do ato teatral envolve um ator que se torna divino porque busca movimentos numa dança cósmica, como se fosse “uma molécula de Deus”[i]. O ator, assim como o poeta, deve buscar a mais alta expressão da alma e o caminho deve ser na direção das mais altas expressões do espírito, do espírito dos tempos e do espírito das profundezas. Para dar esse “salto quântico”, o ator/poeta precisaria entrar em contato com o manancial existente no mais fundo dos poços. Para termos um impulso em direção ao divino, precisamos tocar as profundezas e “parir um novo ser de nós”.[ii]
Ao falar das obras e autores que o influenciaram, Antunes sempre cita o filme A Paixão de Joana D’Arc, de Carl Theodor Dreyer[iii], de 1929. Antunes diz que ficou “bestificado com o filme”.[iv] Ele fala também com frequência das influências de Mircea Eliade[v], especialmente seus estudos teóricos sobre o eterno retorno; de Carl Gustav Jung, especialmente seus conceitos de arquétipo e inconsciente coletivo; de Robert Wilson[vi], encenador, coreógrafo e dramaturgo norte-americano; e do teatro Butoh, de Kasuo Ohno[vii], dançarino e coreógrafo japonês. Explica dizendo que, a partir dessas influências, percebeu que o teatro tinha infinitas possibilidades, podendo, a partir daí, assumir o papel de uma das mais importantes manifestações do espírito criativo da humanidade, atingindo níveis realmente transformadores e “corrosivos”, sendo que, para ele, esse era o papel principal do teatro na sociedade.
Esse novo teatro pensado por Antunes exigia um novo ator, claro, um ator que pudesse passear sem grandes esforços pelos diversos tempos da humanidade, os diversos “Zeitgeists”. Para tal, ele começa a desenvolver o que depois ele chamou de “O Método”[viii]: uma série de exercícios e laboratórios que visavam trabalhar e lapidar a emoção do ator. Dizia que é na cervical que reside a emoção e o imaginário do ator, lá onde temos um vórtice, um eixo, por onde passa e é projetada para cima a luz do personagem e da cena. Parecia estar muito mais numa relação de verticalidade com a criação e a imaginação do ator, que ele chama de “o arquiteto e o poeta”:
Falo (de) verticalização no sentido da eternidade, quer dizer, no sentido do não tempo. Porque o meu ideal de ator é que quando ele entre em cena estabeleça-se o não tempo, ou seja, ele comece a criar um novo padrão de tempo, que é uma coisa fantástica, uma cosmogonia que ele tem que criar. (…) Ele entra no palco e parece que os relógios do mundo param. Começa uma relatividade, é uma outra relatividade. E ele faz o que ele quer, ele cria o mundo que ele quer, o universo que ele quer. Ele pode fazer qualquer coisa. Ele vai intuir o homem do ano 2030. Ou ele vai falar as mesmas palavras e os mesmos sentimentos que teve um cara em mil e seiscentos, com o Shakespeare. É possível, porque ele tem uma coisa em comum com todos os homens que é o inconsciente coletivo. (…) Eu quero chegar ao pré-mito, e não o pós-mito. (…) Tenho adoração por uma coisa só, o homem. O homem e seus troços, aquilo que tem por dentro, a sua mitologia interna, e toda a coisa arquetípica interna.[ix]
Antunes dirige e produz ao longo de mais de seis décadas, passando pelo Teatro Brasileiro de Comédia[x] e pelo início da televisão no Brasil, com seus teleteatros. Começou no teatro nos anos 50, justamente no TBC, mas nos anos 60, época da ditadura, quando enfrentou críticas não apenas dos censores, mas também de colegas, dirige poucos espetáculos. Adentra o processo de abertura política em 1978 com um trabalho de experimentação coletiva que resulta no espetáculo Macunaíma, estrondoso sucesso de público e crítica no Brasil e no exterior. Depois, no início dos anos 80, faz uma parceria com o SESC – Serviço Social do Comércio – e funda o Centro de Pesquisa Teatral, CPT, onde permanece até sua morte em 2019, aos 89 anos. Sob a tutela do SESC, dá início a uma incrível sequência de produções que marcaram e influenciaram toda uma geração de atores, encenadores e artistas de teatro dos anos 80, 90 e da atualidade, dirigindo e produzindo em parceria com a entidade mais de 30 espetáculos.
Durante grande parte de sua trajetória, Antunes estava experimentando os limites da realidade. Dizia que é ali, nesse ponto, que ele gosta de trabalhar: o ponto entre a realidade e o sonho, essa região fronteiriça do “jogo dentro do jogo”[xi], do sonho dentro do sonho. Uma realidade, mas também outras realidades possíveis o tempo todo. Dentro do seu “método”, desenvolveu laboratórios e exercícios que buscavam levar o ator para essa região fronteiriça, por exemplo, o exercício do desequilíbrio, da respiração, do anti-gesto, da loucura, da espontaneidade, etc.
O exercício do anti-gesto era muito interessante: o ator buscava um gestual, um movimento que tivesse uma direção contrária da intenção do gesto natural, colocando forças em oposição. Também buscava uma gestualidade “não civilizada”, mais ligada à terra, com o ator mais próximo do chão, para tentar encontrar um estado primitivo, quebrando as vernizes de todos os condicionamentos sociais e chegando ao arcaico, ao mineral. Antunes considerava o ato, o gesto social que, na grande maioria das vezes, era representado em cena, como um prolongamento do Ego. Como o masculino, o pai, um resultante da cultura. Estava em busca de algo que viesse do seio da terra ou que estivesse no seio da terra. Por isso que Nelson Rodrigues fez tanto sentido para ele, porque se tem algo que podemos chamar de claro na obra de Nelson, é que ela é telúrica.
O espetáculo de Antunes que mais me impactou e onde percebi mais claramente as influências das teorias e conceitos de C. G. Jung e de Mircea Eliade foi Nelson Rodrigues – O Eterno Retorno de 1982. Era composto inicialmente de quatro peças do autor: Toda Nudez Será Castigada, Os Sete Gatinhos, Beijo no Asfalto e Álbum de Família. Com esse espetáculo, que assisti no ano de sua estreia, tive uma sensação ainda bem difusa, mas forte ao mesmo tempo, de que Antunes Filho estava, pelo menos, 20 anos à frente do seu tempo, apresentando um trabalho inspirado na teoria do eterno retorno de Eliade e em conceitos de Jung, como o inconsciente coletivo, os mitos, o arcabouço imagético da psique e muitos outros que, a partir daquele momento, norteariam a sua obra como diretor. Em suas palavras:
Sempre procuro com minha obra estar espiritualmente conectado com o “Zeitgeist”, com o espírito do meu tempo, gosto de explorar as utopias e as loucuras do nosso tempo, onde assistimos aos homens sendo levados para o excesso, para o exacerbado do poder, em nome do querer, em nome do fascismo, em nome de uma verdade de um ser absoluto de autoridade. O ser humano tem esse potencial dentro de si, o trabalho está em encontrar como resistir a essa força.[xii]
No trabalho de Antunes, vemos o tempo todo algo sendo construído e logo depois desmontado, como ele mesmo diz, “estamos em constante processo de mitologização”[xiii]. Temos de um lado a estrutura, a construção e a ordem, e do outro a loucura, o caos e a alienação. Como manter o equilíbrio das forças? O que mais interessava no teatro de Antunes, aparentemente, eram essas contradições do ser humano, pois não tinha sentido para ele fazer um espetáculo simplesmente unilateral, com uma só opinião ou visão, o processo da cena é sempre dialógico e dialético. Quanto mais tiverem aquecidas essas contradições em cena, mais o teatro poderá ser transformador.
A autoexpressão, a criação individual, o contato com si mesmo eram fundamentais na exploração cênica, porque “o homem só tem liberdade quando ele tem auto expressão”[xiv]. Só se pode criar, elaborar alguma coisa, quando se tem auto expressão, através da qual você vai criar por si, pensar por si, mantendo a dimensão crítica constante da realidade, sem imitar, sem seguir ditames sociais, econômicos de sucesso e de poder. Para a autoexpressão, é preciso ter consciência de si mesmo e ética. Era exatamente isso que interessava: que os atores ampliassem a consciência de si mesmos, enquanto atores e enquanto indivíduos e, a partir daí, desenvolvessem uma ética, não só profissional, mas também humana. Nesse momento, cabe uma citação de Jung:
A relativa inadaptação do artista significa para ele uma vantagem real, permite-lhe permanecer afastado da estrada principal, seguir seus próprios anseios e encontrar aquilo de que os outros, sem o saber, sentiam falta. Assim como no indivíduo a unilateralidade de sua atitude consciente é corrigida por reações inconscientes, assim a arte representa um processo de autorregulação espiritual na vida das épocas e das nações.[xv]
Para Nelson Rodrigues, para Shakespeare, para os autores trágicos gregos e alguns autores nacionais, como Ariano Suassuna e Guimarães Rosa, todos revisitados e adaptados por Antunes, as teorias de Jung e Eliade fazem perfeito sentido e dão um arcabouço teórico-mítico de extremo valor para a compreensão da condição humana, e o ator/poeta/artista precisa refletir em seu trabalho a condição e a miséria humanas.
Quando chegamos ao fundo do poço, quando chegamos lá, onde parece não haver mais salvação, é que tocamos nas matrizes do inconsciente coletivo. “Depois de levar muita porrada”[xvi], segundo Antunes. Quem fica no conveniente, no agradável, não chega lá. As coisas boas estariam sempre atrás de grandes obstáculos. O herói/ator precisa enfrentar feras e dragões para encontrar o tesouro e trazer de volta para sua comunidade, e esse tesouro nada mais é do que a ampliação da consciência que acontece através e por causa do processo de individuação de Jung:
Só aquele que é íntegro por experiência sabe o quanto o homem é insuportável para si mesmo. Por isso nada haverá a objetar de essencial, sob o ponto de vista cristão – pelo menos segundo me parece –, caso alguém considere a tarefa da individuação e do reconhecimento da totalidade ou integralidade, que a natureza nos impôs, como obrigatória. Se o indivíduo efetuar isto de maneira consciente e intencional, evitará todas as consequências desagradáveis que decorrem de uma individuação reprimida; isto é, se assumir de livre e espontânea vontade a inteireza, não será obrigado a sentir na carne que ela se realiza dentro dele contra sua vontade, ou seja, de forma negativa. Isto significa que se alguém está disposto a descer a um poço fundo, o melhor é entregar-se a esta tarefa adotando todas as medidas de precaução necessárias, do que arriscar-se a cair de costas pelo buraco abaixo.[xvii]
A arte então, assim como a individuação, não seria simplesmente algo da superfície, seria algo que pertence às camadas mais profundas, num processo no qual se opera uma escavação. A arte seria mineral, precisa ser cavada a fundo para se chegar ao momentum de suspensão do tempo e espaço, ao mais profundo do caldeirão das paixões humanas. Era esse caldeirão que Antunes gostava de ver em cena.
Ao entrar em contato com as teorias da moderna física quântica – sendo que esta acabou apontando para os caminhos da filosofia oriental – Antunes começou a perceber o movimento de forma diferente. Para ele, o movimento se torna ilusão, a matéria se torna energia, que passa a ocupar e estar em vários lugares ao mesmo tempo, numa interconexão que vai muito além daquilo que se vê. Essa perspectiva trazida pela moderna física quântica caiu “como uma luva” para o que Antunes já pensava sobre a tal “realidade das coisas”.
As explorações da moderna física quântica e o pensamento oriental também o levaram na direção dos arquétipos, no modo como Jung os via. Com Nelson Rodrigues – O Eterno Retorno, Antunes começa a ter consciência e entender as questões dos arquétipos, dos símbolos, que já existiam em Macunaíma, seu espetáculo de 1978, mas foi através do mito do eterno retorno de Eliade, aliado às teorias de Jung, junto com a filosofia oriental e a física quântica que os arquétipos e o inconsciente coletivo, as forças em oposição, o Yin e o Yang, as diferenças entre estereótipos e arquétipos, foram ficando mais claros, mais conscientes, e aí seu teatro ganha uma dimensão arcaica, profunda e sagrada, encontrando em Nelson Rodrigues o universo mais que propício para tal.
O elenco de Nelson Rodrigues – O Eterno Retorno teve que ler muito sobre os arquétipos e sobre Jung, numa tentativa de reconhecer a existência, pelo menos, dessa dimensão arquetípica. E os atores tinham que encontrar caminhos para chegar até lá, para deixar fluir as imagens do inconsciente e se abrir para outras realidades. Muitas vezes, essas realidades já existiam dentro do ator, já estavam lá, em estado de “nebulosa”. O puro caos que aguarda alguma informação, algum “impulso eletromagnético do inconsciente”, como dizia Antunes, para ganhar forma. A partir do momento em que ganha forma, vem a percepção da ilusão, e devemos deixar fluir de novo. Uma dança de Shiva, de destruição e criação, era preciso se abrir para a transitoriedade das coisas, a não substancialidade da matéria e do movimento. Cabe aqui outra citação de Jung:
Caso não se queira postular uma harmonia preestabelecida com relação aos fenômenos físicos e psíquicos, resta apenas a alternativa de uma interação. Mas esta hipótese exige uma psique que toca a matéria em qualquer ponto e, inversamente, uma matéria com uma psique latente, postulado este que não difere muito de certas formulações da Física moderna (Eddington, Jeans e outros).[xviii]
Forças em oposição, forças opressivas que adoecem, obstaculizam, sempre tem o sólido, o duro, o concreto, o físico. Mas sempre tem também a flutuação, a bolha, o desequilíbrio, a nebulosidade, o sonho, o psíquico. No meio disso tudo, tem a emoção do ator que precisa ser trabalhada, pois, segundo Antunes, “o ator deve ser o senhor da sua emoção”[xix]. O ator precisa segurar a tensão desses opostos todo o tempo, mantendo uma atitude crítica em relação às polaridades, questionando o status quo da criação, constantemente. Não consigo ver nada mais junguiano do que isso, quando penso no teatro e na sua função social coletiva, e quando penso na psique humana.
Em alguns dos seus espetáculos, Antunes adentrou na esfera dos questionamentos sobre o bem e o mal. Falava que a moderna física quântica, ao se encontrar com a filosofia oriental, tinha apaziguado algumas de suas preocupações espirituais, mas que permanecia uma questão milenar e fundamental sobre o bem e o mal que precisava ser explorada. Por exemplo, em Nova Velha História, de 1991, ele prioriza uma discussão sobre o Ethos, sobre a questão da moral, para entender o que é o mal. O mal seria apenas ausência de bem? A gente traz o mal dentro de nós, assim como o bem? Ambos são potências, instintos, ou são resultantes de uma influência da cultura? Jung nos oferece alguns caminhos de reflexão também sobre essa questão:
A realidade do bem e do mal consiste em coisas, situações que acontecem, que ultrapassam nosso pensamento, em que a gente está, por assim dizer, diante da vida e da morte. O que me sobrevém nesta força e intensidade eu o experimento como algo numinoso, não importa se o designo como divino, demoníaco ou causado pelo destino. Está atuando algo mais forte, insuperável com o qual me confronto.[xx]
Com Nova Velha História, Antunes nos faz refletir que, sem conhecer mais profundamente o que é o mal e sem reconhecê-lo dentro da gente, ele pode se tornar um dragão que nos assusta e que queremos negar e esconder. Quando abrimos espaço para ele e dialogamos, evitamos que se torne sem controle dentro de nós ou na sociedade, no coletivo. Um dos livros da bibliografia obrigatória do ator que passava pelo CPT era justamente Ao Encontro da Sombra, coletânea de artigos organizada por Connie Sweig e Jeremiah Abrams, na qual vários autores discorrem sobre esse importante conceito de Jung. Nós todos temos que confrontar a sombra, não podemos negá-la, temos que dialogar com ela dentro de um processo democrático, seja individual ou coletivamente.
Dentro do “método” de Antunes, reconheci várias possibilidades para desenvolver, digamos assim, um método terapêutico. Basta dizer que minha breve passagem de nove meses pelo CPT, eu considero com sendo minha primeira experiência de análise. Chegamos lá cheios de certeza, unilaterais e presunçosos, enxergando um teatro que existe em função do ator e não um ator que se coloca em função do teatro. Logo de cara, uma lista enorme de livros que nada tem a ver com teatro, aparentemente. Depois disso, o descondicionamento do gestual, uma noção de movimento que deve ser quebrada. Vem a cobrança de que o ator seja pensamento e ação, dominando a emoção; que o desequilíbrio deve ser real e a única realidade possível; que devemos desconsiderar o velho e partir para um árduo trabalho diário de constante reflexão crítica; que o ator deve trabalhar no sentido de construir uma mitologia própria a partir daquilo que herdamos, mas que não necessariamente devemos seguir sem contestar. Enfim…
Vislumbro em todos esses pensamentos, nas leituras, nas ideias, nos exercícios, um processo terapêutico e de autoconhecimento de enorme valor para qualquer pessoa que entre em contato com eles, ator ou não. O novo teatro, assim como o novo mundo, requer um novo ator/indivíduo mais capaz de se diferenciar a partir de uma matriz coletiva comum, um ator/indivíduo que seja um poeta capaz de conduzir seus atos com consciência ética num mundo cada vez mais confrontado com desafios de enorme complexidade, envolvendo manifestações do bem, mas também do mal absoluto. Um ator/indivíduo capaz de manter um delicado equilíbrio ao se deixar desequilibrar, sem nunca ceder às polarizações.
A arte para Antunes tem um fundo mítico, arquetípico, mas também transitório. Está sempre em movimento. O ator/indivíduo que acessa os ensinamentos de Antunes se torna uma legião que vai trabalhar constantemente no sentido da ampliação da consciência individual e coletiva, através do simbólico e do ritualístico. Interessante que Antunes diz na entrevista[xxi] que chega um ponto em que o ator é o grande condutor do ato teatral, um momento em que ele não faz mais nada, só cria as condições necessárias, aduba a terra, remove a terra, para que, em algum momento, surjam coisas e, se surgirem essas coisas, ele só ajoelha e agradece aos deuses imortais. Impossível não identificar nessa descrição a função, muitas vezes, do analista.
Muitos atores que passaram pelas mãos de Antunes, ou que simplesmente passaram pelo CPT, que ouviram falar, que estudaram com ele, dizem que ele os salvou da mediocridade. E eu posso realmente atestar que foi exatamente isso que aconteceu comigo e, a partir dos depoimentos que ouço, com tantos outros. Antunes foi um farol, um iluminador de caminhos. Ele não formou só atores, formou cidadãos. Está vivo dentro de nós, de todos aqueles que foram atores, alunos, espectadores ou seus admiradores. E mais uma vez, reproduzindo algumas de suas palavras de memória, ou não, quem sabe? “Se você não viver para os outros, vai viver para quê?”
Isa Carvalho – Membro Analista em Formação pelo IJEP
Analista Didata: Lilian Wurzba
[i] “O Teatro Segundo Antunes Filho”. Série de seis documentários: https://www.youtube.com/watch?v=otYpKoKs5C0&list=PLB1xsHXGd1cBKTaiP2PGgtp210x_xbrmJ&index=3 Acesso em 15.11.2022
[ii] Ibidem
[iii] https://pt.wikipedia.org/wiki/A_Paix%C3%A3o_de_Joana_d%27Arc Acesso em 15.11.22
[iv] “O Teatro Segundo Antunes Filho”. Série de seis documentários: https://www.youtube.com/watch?v=otYpKoKs5C0&list=PLB1xsHXGd1cBKTaiP2PGgtp210x_xbrmJ&index=3 Acesso em 15.11.2022
[v] https://en.wikipedia.org/wiki/Mircea_Eliade
[vi] https://en.wikipedia.org/wiki/Robert_Wilson_(director) Acesso em 15.11.22
[vii] https://en.wikipedia.org/wiki/Kazuo_Ohno Acesso em 15.11.22
[viii] DE MOURA PAULA, LEE T. – “Manifestação do Ator. Formação no Centro de Pesquisa Teatral (CPT) de Antunes Filho. São Paulo, 2014. Dissertação apresentada à Escola de Comunicações e Artes da USP para obtenção do título de Mestre em Artes Cênicas
[ix] “Antunes Filho e suas obsessões recorrentes”. Entrevista concedida a Luiz Fernando Ramos em novembro de 2006 para a revista Sala Preta.
[x] https://pt.wikipedia.org/wiki/Teatro_Brasileiro_de_Com%C3%A9dia – acesso em 15.11.22
[xi] “O Teatro Segundo Antunes Filho”. Série de seis documentários: https://www.youtube.com/watch?v=otYpKoKs5C0&list=PLB1xsHXGd1cBKTaiP2PGgtp210x_xbrmJ&index=3 Acesso em 15.11.2022
[xii] Ibidem
[xiii] Ibidem
[xiv] Ibidem
[xv] JUNG, C. G. O espírito na arte e na ciência. Petrópolis: Vozes, 1985, § 131.
[xvi] “O Teatro Segundo Antunes Filho”. Série de seis documentários : https://www.youtube.com/watch?v=otYpKoKs5C0&list=PLB1xsHXGd1cBKTaiP2PGgtp210x_xbrmJ&index=3 – acesso em 15.11.2022
[xvii] JUNG, C. G. Aion. Petrópolis: Vozes, 1982, § 125.
[xviii] JUNG, C. G. A natureza da psique. Petrópolis:Vozes, 1984, § 441.
[xix] “O Teatro Segundo Antunes Filho”. Série de seis documentários : https://www.youtube.com/watch?v=otYpKoKs5C0&list=PLB1xsHXGd1cBKTaiP2PGgtp210x_xbrmJ&index=3 Acesso em 15.11.2022
[xx] JUNG, C. G. Civilização em Transição. Petrópolis: Vozes, 1993, § 871.
[xxi] “O Teatro Segundo Antunes Filho”. Série de seis documentários: https://www.youtube.com/watch?v=otYpKoKs5C0&list=PLB1xsHXGd1cBKTaiP2PGgtp210x_xbrmJ&index=3 Acesso em 15.11.2022