O futuro é uma astronave que tentamos pilotar?
O futuro é uma astronave
Aquarela, Toquinho.
Que tentamos pilotar
Não tem tempo, nem piedade
Nem tem hora de chegar
Sem pedir licença, muda a nossa vida
E depois convida a rir ou chorar
Gostaria de pedir licença a Toquinho para entender a palavra “futuro”.
O futuro é uma astronave que tentamos pilotar? Na minha fantasia, poderíamos trocar essa palavra por “vida”, por “destino”, por “designação” e até, à luz da teoria junguiana, por “si-mesmo”. Não à toa o compositor menciona que “tentamos pilotar”. É um insucesso já desde o começo se pilotamos a partir dos desejos do ego.
Essa estrofe deixa o leitor olhando diretamente para o incognoscível, para a incerteza e para a insegurança. É exatamente essa imagem de pequenez inértica que queremos manter neste artigo.
Podemos ir além e sugerir que o si-mesmo, além da astronave é também tudo o que pode ser vislumbrado e tudo o que não pode ser vislumbrado. Contudo, para este artigo, fiquemos com a astronave e com o nosso singelo planeta.
Devemos nos libertar ou pelo menos imaginar tal liberdade antinômica em prol de entender que aquilo que o destino, o futuro ou o si-mesmo trazem é amigável e hostil. É piedoso e não piedoso, não pede licença, mas já avisou nas sincronicidades, nos sonhos, entre outros. E, no fim, a risada e o choro foram, são e serão inevitáveis.
Na psicologia junguiana, o ego representa a centralidade da consciência de nossa personalidade total e nos ajuda a manter certa coerência e coesão por meio de um labor árduo em busca de uma harmonia entre o mundo interno e externo. Não à toa C. G. Jung afirma que a consciência possui pés vacilantes.
Nós, egos, somos astronautas cheios de medo e fúria pilotando essa astronave.
Nessa missão espacial a qual o eu astronauta perpassa aqui, ele não lançou a astronave em órbita, muito menos a pilota completamente. É quase um passageiro, mas além de ser um passageiro também é um gerente de si mesmo e uma testemunha daquilo que acontece dentro e fora dela, lançando o olhar para cometas, planetas e galáxias – deslumbrado e apavorado.
Apesar de tal grandeza diante dos olhos do eu astronauta, não é de sua capacidade e da competência viajar para este infinito, ele orbitará o planeta Terra, mais especificamente. E isso já basta. Mas, antes disso, ele possui um devir e um dever de testemunhar o trajeto orbital da astronave. Cabe ao astronauta gerenciar a si mesmo para seguir com sua missão humanitária.
Ser testemunha não é uma missão fácil.
A palavra “testemunha” tem origem no latim e deriva da palavra “testis”, que significa “aquele que atesta”. “Testis” é formada por duas partes: “ter-” e “-stis”. O prefixo “ter-” vem do latim “tres”, que significa “três”, e a raiz “-stis” tem origem no protoindo-europeu “*sta-“, que significa “estar em pé” ou “estar de pé”. Por isso a ideia original de uma testemunha é alguém que “está de pé” como um terceiro observador amoral, que pode confirmar ou corroborar um evento ou situação.
Ser testemunha da grandiosidade do trajeto da astronave, sem sentenciar que aquele cometa é destrutivo ou que aquele planeta “vizinho” é melhor do que o nosso não é tarefa fácil. Afinal de contas, muitos de nós astronautas estamos preocupados com o fim da Terra, com uma colisão de um cometa, ou então, procurando um novo planeta para exaurir sua vida.
Compaixão, compreensão e comunhão
Para testemunhar e não sentenciar o seu treinamento, ainda em solo, foi ter em mente três palavras, em ordem: compaixão, compreensão e comunhão.
Ninguém lhe explicou nada, apenas pediu para que ele decorasse essas três palavras. Após essa fantasia do autor ou de uma viagem espacial do mesmo, este, por sua vez, resolveu ampliar as palavras.
A palavra “compaixão” tem origem no latim e é formada pela combinação do prefixo “com-” e a palavra “passio”. O prefixo “com-” vem do latim “cum”, que significa “junto” ou “com”. A palavra “passio” deriva do verbo latino “pati”, que significa “sofrer” ou “sentir”.
Portanto, a palavra “compaixão” originalmente significa “sofrer com” ou “sentir junto” a dor de outrem.
Este primeiro passo é de suma importância pois ele permitirá ao eu astronauta sentir junto as mazelas de seus companheiros de viagem (outros astronautas). Bem como reconhecer à distância de um buraco negro engolindo um planeta, ou então, presenciar o fim sepulcral de uma estrela se apagando.
Seria possível sentir ou imaginar o sentimento dos companheiros de viagem que não sabem se vão voltar para casa. Ou daqueles que, se não voltarem, serão consagrados por milhões de terráqueos?
Ou então, da fome titânica de um buraco negro. Quiçá a desfiguração inteira de um planeta agonizando, saindo da ordem e se dirigindo ao caos, em milésimos de segundos? Talvez, sentir a morte tocando uma estrela, que em um segundo atrás estava viva há bilhões de anos e agora é um nada?
Somada à compaixão, a palavra “compreender” seria o próximo passo. Ela tem origem no latim e deriva da junção de duas partes: o prefixo “com-“, já visto, e a palavra “prehendere”. A palavra “prehendere” significa “agarrar”, “apreender”, “abraçar”. Fiquemos com esta última para não cairmos na ideia de que a razão e somente ela seria capaz de compreender.
Compreender vai além de um simples raciocínio.
É colocar o racional e o irracional juntos em prol da perspectiva de vida de outrem. Sem a compreensão, o eu astronauta não pode apreender e abraçar tanto a inferioridade que reside no ímpeto heróico de seu companheiro de conquistar e exaurir outros planetas vizinhos ao planeta azul. No mesmo sentido, a sede de superioridade que possuiu o outro companheiro antes da jornada e agora está com aquele medo avassalador, querendo pisar em terra firme novamente.
Compreender é circum-ambular tanto dentro quanto fora da astronave. É compreendendo que o eu astronauta reconhecerá a dor e a beleza do caos do universo, buracos negros famintos, cometas apocalípticos.
Somente a compreensão aponta para a grandiosidade da pequenez daquilo que chamamos de “vida” em nosso minúsculo planeta. E, da certeza que dominou a improbabilidade de surgir essa tal “vida”.
Somente a compreensão é capaz de reconhecer o que nós, seres humanos, fizemos de criativo e destrutivo com a vida, tão rara, em nosso planeta.
A vida quando vista em sorriso e sangue torna-se um universo particular neste momento. Nesse contexto, a compreensão não é uma conclusão: não chegaremos ao ponto final de afirmar “o ser humano deve ser extinto” ou então “ele deve perpetuar diante de tudo”. Assim sendo, compreender é abraçar luz e sombra da criação e destruição a fim de seguirmos à próxima palavra.
A palavra “comunhão” também tem origem no latim e deriva da junção de duas partes: o prefixo “com-” e “unio”. Já “unio” vem do latim “unus”, que significa “um” ou “único”. A palavra “comunhão” em latim é “communio”, e representa a ideia de juntar-se, compartilhar ou ter algo em comum.
Overview Effect (Efeito Terra)
Este último passo da testemunha já fora descrito: o Overview Effect (Efeito Terra) é um termo cunhado pelo escritor e pesquisador Frank White em seu livro “The Overview Effect: Space Exploration and Human Evolution”, publicado em 1987. Este fenômeno se refere à profunda transformação que alguns astronautas experimentam ao ver a Terra do espaço.
Quando os astronautas observam a Terra de uma perspectiva extraterrestre, eles frequentemente relatam uma intensa consciência de que nosso planeta é uma esfera finita e frágil, flutuando no vasto vazio do espaço.
Essa percepção pode levar a uma maior compreensão da interconexão e interdependência de todos os seres vivos e sistemas terrestres, bem como à necessidade de proteger e preservar nosso planeta.
O Overview Effect também pode desencadear uma mudança na percepção das fronteiras e divisões humanas, fazendo com que os astronautas enxerguem a humanidade como uma única unidade coletiva, compartilhando um destino comum no planeta Terra, ou então, do “futuro” de Aquarela.
Essa perspectiva pode inspirar um maior senso de responsabilidade global e cooperação entre as nações e culturas, em busca de soluções para os desafios enfrentados pela humanidade, como mudanças climáticas, guerra, desigualdade de todos os tipos, pobreza e degradação ambiental.
Vale perceber que aqui já não menciono mais os buracos negros, outros planetas habitáveis, cometas próximos ou estrelas morrendo. É, pois, nesse momento em que o eu astronauta e sua nova consciência volta-se para sua casa e reconhece que somos um povo, uma raça e uma vida.
Quem me acompanhar nessa fantasia, talvez não precise literalizá-la, construindo uma astronave para vivenciar o Efeito Terra.
Mas, caso você que esteja lendo esse texto e quiser seguir com o projeto pela literalidade, talvez seja criativo e lembre-se dessas três palavras, já que, provavelmente, você possui recursos financeiros e faz parte das hegemonias terrestres.
Quem dera, se as mudanças ocorressem, no linguajar popular, de “cima” para “baixo”. Afinal, sabemos conforme a História, que transformações provindas de “baixo” para “cima” tem o custo do sangue da vida.
Leonardo Torres – Membro Analista em Formação
Waldemar Magaldi – Membro Didata
Referências:
JUNG, C. G. Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo. Petrópolis: Vozes, 2014c.
WHITE, F. The Overview Effect: Space Exploration and Human Evolution. Estados Unidos da América: Amer Inst of Aeronautics &, 1987.
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