No meio do caminho a neblina cobriu o ambiente da cultura, do espírito da época e da alma. Seguir supõe algum cuidado entre o excesso de racionalidade e a entrega em busca da própria alma, tal como já fizeram outros caminhantes que descobriram não existir caminho enquanto que passo a passo, pouco a pouco, o caminho se faz.
Peregrino entre o texto acadêmico marcado por uma abordagem solar, linear ou argumentativa e o texto da alma que, no momento, está mais voltado para o lunar, aberto à imprevisibilidade própria das dinâmicas complexas dos mistérios vitais dos quais participo, tomo consciência que, como indivíduo, eu existo dentro de uma psique com raízes ancestrais.
O que quer a minha alma?
A pergunta elaborada por pessoas que levaram a sério as próprias vidas em termos de autoconhecimento, autoestima, autonomia e ação (serviço) permanece atual. Talvez seja uma pergunta válida em uma civilização na qual o espírito da época é fortemente marcado pela linearidade explicativa ou mesmo pela monetização dos fenômenos vitais.
Na cultura contemporânea mulheres e homens se relacionam com um conjunto de símbolos de diferentes expressões religiosas em busca de experiências que permitam alguma significação às suas vidas. Na prática, tal como na trajetória pessoal de Carl Gustav Jung (1875-1961), buscam uma experiência de alma que vá além dos rituais repetidos nas práticas religiosas ou então, que dê algum sentido às mesmas práticas em diferentes profissões de fé, ou ainda, que contribuam para que continue viva a pergunta O que quer minha alma?
Como se trata de uma questão ampla que supõe anos de estudo no contexto da Psicologia Junguiana, este texto, uma parte da monografia de conclusão do Curso de Especialização em Psicologia Junguiana, se limita a acolher a forma como os símbolos estão presentes nos diálogos de Jung com Izdubar e podem ser uma possível chave de compreensão do universo da “neblina” contemporânea.
Livros Negros e Livros Vermelhos
No terceiro volume de capa escura dos denominados Livros Negros, os relatos do encontro de Jung com Izdubar, frutos da “imaginação ativa”, foram anotados a partir de 8 de janeiro de 1914 e estão disponíveis a partir da página 119 da obra. Os mesmos diálogos, de forma reescrita em letras góticas e ricamente ilustrada pelo autor, estão acessíveis a partir da página 37 da edição brasileira ilustrada do “Livro Vermelho. Liber Novus” (JUNG, 2010).
É possível que os símbolos presentes nos diálogos com os conteúdos inconscientes, no caso com a figura de Izdubar, anotados com uma forma de escrever a partir de imagens interiores, acompanhados de uma configuração estética expressa com ilustrações, podem oferecer algumas chaves de compreensão para as diversas maneiras como mulheres e homens contemporâneos trabalham o encontro com a própria alma, o encontro com o sagrado, o encontro com Deus.
Eu quero me deixar provocar pelas imagens que jorram da dinâmica da narrativa Junguiana do encontro com Izdubar. Procuro compreender, em plena neblina, como os símbolos presentes nos diálogos de Jung com Izdubar podem oferecer subsídios para os (as) terapeutas junguianos operarem com seus clientes quando na prática clínica surgirem símbolos que, consciente ou inconscientemente, remetam à religião como uma das expressões mais antigas e universais da alma humana.
De que forma os símbolos presentes nos diálogos de Jung com Izdubar possibilitam a aproximação e “ampliação”, no trabalho com clientes sensíveis a esta questão, de uma experiência de Deus que vá além dos rituais repetidos nas práticas religiosas?
Um universo de símbolos
Nesta parte reúno algumas narrativas a respeito de Carl Gustav Jung e das “noções”, talvez um termo melhor que “conceitos”, que ele articulou no decorrer de sua vida e de sua obra ou, recursivamente, de sua obra e vida. Tais narrativas e noções podem me ajudar a buscar, sempre na neblina, a alma (minha e dos “clientes”) também na maneira como ele buscou sua alma, entre outras formas, no diálogo com Izdubar.
Pode ser relevante lembrar que na infância Jung teve contato com dois ambientes familiares: o convívio com os chamados fenômenos paranormais ou ocultos de matriz “espírita”, depois tema de sua tese Psicologia e Patologia dos Fenômenos Denominados Ocultos (1902), por parte da família materna, e a relação com formalidade religiosa institucional protestante por parte da família paterna. De certa forma seu contínuo desenvolvimento pessoal, que denominou “individuação”, pode ser lido como o desabrochar experiencial da frase em latim que colocou na entrada da casa de campo que construiu em Bollingen, ao lado do Lago de Zurique: “Chamado ou não, Deus está presente” (Vocatus adque no vocatus, Deus adherit).
As noções foram articuladas no decorrer de sua vida, em uma forma de “cincumambulação”, uma maneira de se girar ao redor de uma noção durante toda a vida até que seus vários aspectos fossem compreendidos, como lembra Robert H. Hopcke no seu Guia para a Obra Completa de C.G. Jung (HOPCKE, 2011).
Circumambulação
Na compreensão de Bernado Nante, autor argentino que se arrisca a apresentar didaticamente O Livro Vermelho, o termo “cincumambulação” se aplica a uma dança ritual ao redor de um elemento central abarcador, ou, do ponto de vista psicológico, “um percurso pelos aspectos da psique que devem ser assumidos, diferenciando-os e integrando-os mediante esta aproximação espiralada rumo aocentro” (NANTE, 2018, p. 45). Observar a progressiva volta ao redor de uma noção lembra também, conforme E. Simone Magaldi, a “doutrina pitagórica do eterno retorno do mesmo, ou seja, nada é absolutamente novo, tudo retorna, tudo é cíclico” (MAGALDI, 2021, p. 93).
Nos caminhos de uma tradição romântica e humanista, o jovem médico C.G. Jung, ao mesmo tempo que cuidava empiricamente de pacientes na Clínica Psiquiátrica da Universidade de Zurique em Burgholzli, onde aperfeiçoava um método de associação de palavras, também estudava comparativamente sistemas religiosos e artísticos arcaicos.
Este caminho, marcado pela convivência com Sigmund Freud entre 1907 e 1913, o levou a observar que além do inconsciente pessoal, com as memórias individuais, os seres humanos participam de um inconsciente coletivo, estão imersos em imagens arquetípicas comuns às pessoas de diferentes regiões do planeta que estudou ou visitou pessoalmente. Nesse sentido, Carl Gustav Jung, têm uma compreensão fenomenológica do mito, como pontua E. Simone Magaldi na sua tese de doutorado publicada como Ordem e Caos – Uma visão transdisciplinar:
Os mitos referem-se às histórias ocorridas in illo tempore, com os deuses e seres sobrenaturais e narram a criação do Cosmos, do mundo, do homem, de um local, de um animal, de um costume, ou de qualquer outro fenômeno. Essa é a concepção moderna de mito dentro da fenomenologia, oposta àquela do passado que entendia mito como fábula, conto, invenção ou ficção. Dentro dessa corrente atual, mito é, necessariamente, uma história verdadeira (MAGALDI, 2021, p. 87).
Aqui percebo que Jung buscava, usando uma terminologia literária (não conceitual ou argumentativa), a linguagem da alma, ou segundo Shamdasani, “o diálogo dele com a própria alma” (2015, p. 100). Tal processo poderá também ser cotejado com aquilo que em leitura do volume 11/1 da Obra Completa de Jung com grupo de alunos (as), Waldemar Magaldi pontuou como objetivo do processo analítico com os clientes: “sempre que considerarmos o eu como subordinado ou contido num ‘Si-mesmo’ (Selbst) superior, que constitui o centro da personalidade psíquica total, ilimitada e indefinível” (OC 11/1, § 67). Retomo o próprio Jung:
Assim, Jung se referia a imagem de Deus como um arquétipo. “Como a vivência deste arquétipo tem muitas vezes, e inclusive, em algo grau, a qualidade de numinoso, cabe-lhe a categoria de experiência religiosa” (OC 11/1, § 102). Aqui, o termo religião não se limita a noção de ‘religare’ divulgada pelas instituições formalmente religiosas, mas é utilizado pelo autor como “religere”, isto é, como cuidadosa observação, como frisarei nas próximas linhas.
Os símbolos no diálogo de Jung com Izdubar
Na medida em que Jung desenvolveu posteriormente, em seus trabalhos teóricos, algumas interpretações a partir dos conteúdos que imergiram de forma espontânea do inconsciente, primeiro nos Livros Negros e depois reescritos em O Livro Vermelho – Líber Novus, pode-se dizer que ocorreu uma ligação recursiva entre os relatos de conteúdo psíquico e as elaborações teóricas.
Tal ligação está anotada em Símbolos da Transformação (OC 5), publicado pela primeira vez em 1912, quando o autor examina as relações entre o pensamento direcionado (verbal e lógico da ciência) e o pensamento de fantasia (associativo e imagético da mitologia). Neste contexto, o recurso simbólico expressa uma recursividade entre o consciente e o inconsciente no qual a racionalidade não supera linearmente a mitologia, mas traz à luz o inconsciente expresso nas linguagens dos sonhos, das fantasias e da imaginação ativa.
Uma observação a respeito dos símbolos ainda pode ser encontrada na já citada Introdução de O Livro Vermelho – Liber Novus:
Na atual prática terapêutica junguiana o símbolo funciona como um pharmakon (que pode curar ou matar) para que uma pessoa possa sobreviver na cultura literal (racional, técnica, lógica) contemporânea buscando os aspectos simbólicos na orientação da existência (“vida com propósito”) ou processo de individuação.
Aqui sou tentado a esquematizar, com o risco de certa recaída em sínteses acadêmicas cheias de citações, os diálogos entre a alma de Jung e Izdubar. Em contato com outros que tentaram contribuir, para “compreensão de uma obra inexplicável”, me vejo diante de esquemas, como o de Bernardo Nante, que parecem mapas simplificadores diante de complexos territórios densos de neblina. Como ousar escrever sobre o fruto de um momento de dor da vida de Jung marcado por experiências de “imaginação ativa”, como um “trabalho interior”? O termo trabalho interior (Inner Work) é o título de uma obra de Robert A. Johnson (JOHNSON, 1989)
A síntese do encontro com Izdubar pode ser um resumo sem vigor se não for cozida no fogo da vida, na obscuridade da neblina, nas panelas das bruxas, no coração de cada indivíduo, já que segundo Jung “toda vida individual é, ao mesmo tempo a vida do éon da espécie” (Psicologia e Religião [OC 11/1, § 146]). Cozimento que leva tempo como na panela ao fogo entre povos originários ou quilombolas, na imagem de um cálice que acolhe a transformação do fruto da videira ou, de forma mais íntima, na imagem do ventre de uma mulher que carrega as marcas da gestação ou de outras cirurgias, isto é, no jardim secreto de quem se vê desafiado a participar passo a passo de um caminho que se faz ao caminhar.
Apresento a síntese ciente que ela faz parte de uma Nuvem do Não-Saber, como no título de uma obra de um anônimo do século XIV.
Como destacou Daniel Gomes, no Oitavo Congresso do IJEP, a respeito da narrativa do encontro de Jung com Deus na figura de Izdubar: “Eu vinha paralisado de saber, ele ofuscado pela plenitude da luz. E assim nos apressamos um ao encontro do outro. Ele vindo da luz e eu, da escuridão” (GOMES, 2023).
Ou então, conforme o próprio texto de O Livro Vermelho:
O caminhar entre o Oriente e o Ocidente pode ser cotejado com a luta entre razão e fantasia, como um progressivo desenvolvimento da consciência do eu entre as teias do inconsciente, lembrando que “o perigo que está à espreita no Ocidente é a morte, da qual ninguém escapa, nem o maior dos poderosos” (OC 5, § 541), isto é, nem mesmo o herói que procurava a imortalidade na Epopeia de Gilgámesh, (OC 5, § 512, nota 43), poema épico sumeriano a respeito do rei de Uruk – atual Iraque. Izdubar, a denominação usada por Jung no Livro Vermelho, é um dos nomes do personagem antes do aperfeiçoamento da transliteração do termo Gilgámesh (“o construtor de muralhas”).
As tentativas de aproximações didáticas de Bernardo Nante a respeito do encontro com Izdubar, com todo risco de, na esquematização se perder o fascínio e o tremor do relato, podem ser assim resumidas:
Capítulo VIII de O Livro Vermelho – Primeiro dia – 8 de janeiro de 1914
Capítulo IX – Segundo dia – 9 de janeiro de 1014
Capítulo X – As encantações
Capítulo XI – A abertura do ovo– 10 de jan.1914. (Terceiro dia).
Capítulo XII – A abertura do ovo – aparição do Deus renovado. – 10 de jan.1914.
A ilustração do personagem Izdubar que está na imagem 36 de O Livro Vermelho, abrindo a narrativa, é cheia de símbolos. Não se trata apenas de um personagem histórico, mas especialmente de um personagem interno que Jung chama de Izdubar mesmo sabendo que esta era uma antiga tradução do nome, depois aperfeiçoada como Gilgámesh, como acenei acima. No quadro Jung aparece como uma figura diminuta ajoelhada e de braços abertos diante do gigante com chifres de poder que caracterizam um rei guerreiro que carrega um machado, instrumento de defesa, ataque e caça.
No primeiro dia, Jung apresenta a Izdubar algumas técnicas da modernidade Ocidental e o ouve falar da sabedoria do mundo Oriental. Entram em diálogo o mundo da razão explicativa e o universo dos símbolos da natureza; confrontam-se, pode-se resumir, a medição do tempo cronológico do relógio e a espontaneidade do vento, a linearidade do científico e os elementos simbólicos da cultura Oriental, ou ainda conforme compreensão de Walter Boechat, a dialógica entre o ego racional consciente e a sabedoria ancestral que vem do inconsciente coletivo (BOECHAT, 2021). Para que Izdubar não desfaleça diante da linearidade cientifica própria do universo Iluminista, Jung propõe uma solução para que ele não morra: transformá-lo em uma fantasia, uma forma de se manter o inconsciente vivo, uma forma de se cultivar a irracionalidade em tempos de racionalidade exacerbada.
Algumas passagens do primeiro dia praticamente fundamentam o trabalho teórico que Jung empreende mais tarde. Por exemplo, a relação da ciência com a fé na psicologia junguiana da religião, como se lê em Psicologia e Religião Ocidental. Psicologia e Religião (OC 11/1):
Diante da fragilidade de Izdubar no diálogo que se seguiu, no Segundo dia ambos se percebem no caminho marcado pelo quente e pelo frio, provados pela pergunta: Do que adianta aqui toda ciência? E assim, no diálogo a voz interior de Jung propõe a possibilidade de o interlocutor ser uma fantasia, possivelmente no sentido de fantasia entendida como uma expressão viva da realidade psíquica.
Como uma fantasia Izdubar, uma personificação de conteúdos inconscientes do próprio Jung, poderia ser transportado. No entanto, para facilitar ainda mais o transporte, o “Eu” de Jung, não sei se posso dizer isso, busca uma forma de fazer Izdubar passar por uma porta pequena. Como uma fantasia não precisa de espaço, o texto continua:
Mas uma fantasia não precisa de espaço! Por que não cheguei antes a esta ideia excelente? Voltei ao jardim, apertei sem esforço algum Izdubar até o tamanho de um ovo e o coloquei no bolso. Entrei assim na casa hospitaleira, onde Izdubar haveria de encontrar cura.
Assim encontrou a salvação o meu Deus. A salvação se deu por lhe acontecer exatamente o que se deveria considerar o impreterivelmente mortal, isto é, que fosse considerado uma trama da imaginação.
Quando pesquisou as anotações da entrevista que Jung concedeu a Aniela Jaffé a respeito desta narrativa, Sonu Shamdasani observou “que algumas das fantasias foram acionadas pelo medo, como o capítulo sobre o demônio e o capítulo sobre Gilgámesh-Izdubar. De certo ponto de vista era uma estupidez ele precisar encontrar uma forma de ajudar o gigante, mas ele achava que, se não o fizesse, ele teria fracassado” (SAMDASANI in: JUNG, 2015, p. 263. Edição sem ilustração).
Aqui os estudiosos remetem aos trabalhos de Jung a respeito das diversas tradições acerca da incubação como um processo de mutação na medida em que reconhecer Deus como uma fantasia, como “uma imaginação verdadeira, implica incorporá-lo em nosso interior” (NANTE, 2018, p. 372). A principal referência é ao livro Os arquétipos e o inconsciente coletivo (OC 11/1), no qual Jung resume a literatura a respeito:
O ovo é um germe de vida, dotado de alto significado simbólico. Não é apenas um símbolo cosmogônico, mas também ‘filosófico’. No primeiro caso, trata-se do ovo órfico, o começo do mundo; no segundo, do ovum philosophicum da filosofia medieval da natureza, ou seja, do vaso do qual surge, ao final da opus alchymicum, o homunculus, isto é, o anthropos, o homem espiritual, interior e completo; na alquimia chinesa, o chên-jen (literalmente: o homem completo (OC 11/1, § 529).
Na minha imersão ainda inicial neste universo simbólico encontro nos estudos de Walter Boechat uma desafiadora possibilidade de, novamente, me deixar levar pela neblina própria do universo simbólico:
A mudança de referência espacial é fundamental para a sobrevida de Izdubar, isto é, ele deixar de ser algo literal para ser algo simbólico. A chave do símbolo é o caminho para se manter o deus vivo. Se o viajante Jung vem do Ocidente trazendo a tecnologia, o pensamento racional e a praticidade, o deus traz do Oriente a sabedoria dos mitos e das experiências ancestrais.
O caminho apontado é o da junção de ambos, a racionalidade não deve sufocar o mitológico, mas abrigá-lo sob o manto da ferramenta simbólica. A psicologia é o caminho para manter a tradição simbólica (BOECHAT, 2014, p. 67).
Aqui convido o leitor ou leitora para participar do que posso chamar de “ritual” das Encantações, a última parte da interação de Jung com Izdubar. O texto continua enfatizando que Jung não deve falar ou mostrar o Deus, mas sentar-se num lugar ermo e cantar antigas encantações: “Coloca diante de ti o ovo, o Deus em seu princípio. E contempla-o. E com teu olhar de calor mágico choca-o” (JUNG, 2015, p. 284, edição com ilustrações).
A série de doze encantações mágicas relatadas expressam um ritual de incubação, isto é, “a concentração de energia que gera um ardor (tapas) e, em última instância, uma transmutação dessa mesma energia que retroage a sua própria origem, ao ‘lugar’ atemporal onde estão, por assim dizer, as sementes de todo o possível.
Em suma, isso permite que a energia psíquica ecloda renovada” (NANTE, 2018, p. 374). Bernardo Nante, talvez exagerando em seu didatismo, dá a cada encantação um título e destaca uma palavra-chave avisando o leitor que este recurso não deve impedir uma “aproximação livre de toda fórmula, capaz de impregnar-se de seu misterioso encanto” (2018, p. 374):
Encantação 1 – “Gestação de Deus no ovo”. Corresponde à imagem 50.
Encantação 2 – “Reunião das forças no ovo”. Imagem 51 de O Livro Vermelho.
Encantação 3 – “Dores do parto do Deus ambíguo. Imagem 52.
Encantação 4 – “Concentração da luz”. Imagem 53.
Encantação 5 – “Palavra que dá à luz”. Imagem 54.
Encantação 6- “A travessia noturna”. Imagem 55.
Encantação 7 – “O perdão”. Imagem 56.
Encantação 8 – “Suplica baseada nos serviços ao Deus”. Imagem 57.
Encantação 9 – “Suplica baseada no compromisso com o Deus”. Imagem 58.
Encantação 10 – “Chamado a nós, pai e mãe”. Imagem 59.
Encantação 11 – “Pergunta, procura e encontro”. Imagem 60.
Encantação 12 – “O sacrifício”. Imagem 61
Aqui destaco uma característica do diálogo com Izdubar que chama minha atenção. Trata-se do caráter audiovisual ou da mistura de múltiplas linguagens utilizadas por Jung nesta parte da obra O Livro Vermelho. Se em Os Livros Negros tenho contato com um texto escrito, em O Livro Vermelho encontro um texto escrito que expressa orações criadas na oralidade, cercado pelas ilustrações das páginas 50 a 64 que representam a regeneração de Izdubar, perfazendo assim três formas de comunicação: a escrita, a pictórica e o registro das evocações sonoras, as três gerando imagens que levam o leitor às cenas de um ritual. A dimensão pictórica expressa pelas ilustrações e o registro das evocações sonoras indicam que a simples narrativa escrita seria incapaz de conduzir o leitor ou leitora para também caminhar na neblina com densidade simbólica.
As encantações, fórmulas mágicas para provocar a renovação, podem ser consideradas um conjunto oral de reverências, de forma sonora, que integram e constroem o ambiente imagético-sonoro no qual ocorre a incubação. Jung utiliza símbolos cristãos, como o Natal na primeira encantação (Ilustração 50) ou os Reis Magos (Ilustração 51) na segunda encantação; símbolos da mitologia hindu como Brihaspati na quinta encantação (Ilustração 54); o mundo egípcio com o barco solar para locomoção do sol na sexta encantação (Ilustração 55); outra narrativa hindu com o termo “hiranyagarba” grafado abaixo da decima encantação (Ilustração 59) que no Rig-Veda era a semente primordial da qual nasceu Brahma.
As encantações expressam a oralidade própria da cultura do ouvir que já investiguei em outros trabalhos (Menezes, 2016) recordando que no universo da sonoridade o corpo deve estar presente para sentir as ondas sonoras emitidas por outros corpos, envolver e deixar-se envolver, participar da dinâmica comunicacional como, segundo a terminologia de Joachim-Ernst Berendt, partícipe da “rede vibratória do universo que tem a faculdade de sintonização total porque nos une à sinfonia cósmica” (BERENDT, 1973).
Na narrativa do encontro de Jung com Izdubar, onde a incubação e o renascimento seguem o padrão dos mitos solares, as encantações levam ao Capítulo XI, intitulado por Jung como “Terceiro Dia” nos esboços do terceiro volume dos Livros Negros e como “A abertura do ovo” na edição de O Livro Vermelho.
Na ilustração 64 encontra-se o ponto alto da narrativa quando, no terceiro dia, “ajoelhado sobre um tapete o “eu” abre o ovo e, depois, de forte fumaça aparece Izdubar resplandecente e curado, como se despertasse de um sonho”. […] “A imagem mostra o “eu” prostrado sobre um tapete vermelho frente a uma grande irrupção de fogo que surge de um ovo quebrado. Na parede verde ao fundo se percebe a barca solar” (NANTE, 2018, p. 388).
Uma relevante nota, a de número 135, relembra que no terceiro volume de Os Livros Negros, em 10 de janeiro de 1914, Jung escreveu:
Aqui devo silenciar. E convidar o leitor ou leitora ao silêncio para contemplar os mistérios envolvidos na abertura do ovo, lembrando que em Tipos Psicológicos, Jung comentou o motivo do Deus renovado: “O Deus renovado significa uma atitude renovada de vida intensa, uma nova consecução de vida, porque psicologicamente Deus significa sempre o valor maior, a maior quantidade de libido, a maior intensidade de vida, o ótimo de vitalidade psicológica” [OC 6, § 301].
Uma atitude diante da vida
Compreendo que muito já se insistiu, de forma coerente com a biografia de Jung, que a experiência de Deus não se limita aos rituais estandardizados muitas vezes repetidos sem vida em muitas instituições religiosas. No entanto, observo que a questão extrapola a necessária e repetida denúncia quanto ao vazio muito comum entre os que peregrinam pelas confissões religiosas.
Ao caminhar com Jung e Izdubar na vereda quente e fria do percurso entre Oriente e Ocidente, percebo que a vida e a obra do médico psiquiatra suíço vai muito além da denúncia das amarras das instituições ou confissões religiosas que se colocam como ambientes da religação (“religare”) dos homens com os deuses e deusas. O que ele descobre no seu próprio desenvolvimento pessoal, ou caminho de individuação, preciso repetir, é a importância do “religere”, isto é, da “observação acurada e atenciosa dos conteúdos arquetípicos da alma humana, as representações primordiais coletivas que estão na base das diversas formas de religião” [OC 11/4, Prefácio].
Bom lembrar que Jung não se referiu a Deus no sentido metafísico. Por não ser teólogo e por não se limitar a atuar como estudioso das atualmente denominadas “ciências da religião”, ele tratou os fenômenos religiosos de abertura ao numinoso como imagens, isto é, como “processos psíquicos que não se confundem com o seu objeto transcendental”, afinal, “eles não o produzem; simplesmente o indicam” OC 11/4, § 558].
Aqui o leitor ou leitora que estiver aberto às surpresas no seu percurso pessoal, nas transformações que precisam ser ampliadas na segunda (ou última) fase da vida, pode ser lembrado dos acréscimos no desenvolvimento da personalidade descritos por Jung em Os arquétipos e o inconsciente coletivo [OC 9/1]:
O fragmento destacado, parte de um texto intitulado “O Renascimento”, publicado em 1939, praticamente relata, na minha leitura, a situação do homem diante da possiblidade de abrir-se para o desenvolvimento pessoal, para o engajamento no processo de individuação quando acompanha, como no percurso deste texto, os diálogos de Jung com Izdubar.
O homem pode renascer. Eventualmente, participando da perspectiva de função transcendente que enreda consciente pessoal e inconsciente coletivo, um analista poderá acompanhar seu interlocutor na incubação do ovo que com muitas encantações pode eventualmente se abrir. Da mesma forma que eu também sou desafiado a manter as encantações para me ajoelhar com reverência diante do ovo que se abre.
Em Símbolos da Transformação existem outras referências a Gilgámesh que, conforme já observei, seria a transcrição atualizada do nome Izdubar utilizado por Jung. Ao falar do mais nobre símbolo da libido, do herói que passa da tristeza para a alegria, que “ora resplandece no zênite, como o Sol, ora imerge em note profunda e desta mesma noite renasce para o novo esplendor”, indica em nota de rodapé que provavelmente daí vem “o belo nome do herói solar Gilgámesh, ‘o homem triste-alegre’” (OC 5, §251). Um herói frequentemente é peregrino como Gilgámesh, Dioniso, Hércules e Mitra, figuras que fazem do mito do herói um mito solar que parece a “autorrealização da nostalgia do inconsciente em busca insaciada e raramente saciável pela luz da consciência” (OC 5, § 299).
O monstro a ser vencido pelo herói muitas vezes é um gigante que guarda um tesouro. Um bom exemplo é o gigante Chumbala na Epopeia de Gilgámesh, que guarda o jardim de Ishtar. Gilgámesh o subjuga e assim conquista Ishtar” (OC 5, § 396).
O trânsito entre consciente e inconsciente é abordado por diferentes aspectos em Os Símbolos da Transformação. Ao ponto de neste inconsciente coletivo ser apontada a figura do herói divino do Ocidente:
Neste mundo do inconsciente coletivo há um tipo que, ao que parece, tem a importância máxima e que se expressa na figura do herói divino, que no Ocidente corresponde a Cristo. Os mortos ele despertar / Que ainda não foram apanhados / Pelo Bruto… E se os celestiais agora / Tal como pensam, me amam / Silencioso é o seu sinal / No céu trovejante. E alguém debaixo está /Por toda sua vida. Pois ainda vive em Cristo (OC 5, § 641).
Mas como Gilgámesh, que ao trazer a erva mágica das terras benditas do Ocidente, tem sua presa roubada pela serpente demoníaca, também o poema de Hölderlin termina em lamento doloroso que nos revela que após sua descida para as sombras não haverá um renascer…. (OC 5, § 642).
Outros elementos na narrativa de Gilgámesh, que atualmente é chamada de ‘epopeia’ para usar um nome similar às epopeias da cultura ocidental, poderão ser aprofundados na forma como Jung expressou nos textos nos quais apresentou e argumentou as principais noções da Psicologia Analítica. Na prática, os estudos de Jung ajudam a compreender, de acordo com Henryk Machón, que “as religiões são terapias, não por serem religiões, mas porque nelas se pode observar uma atividade particularmente fecunda das forças curadoras do inconsciente” (MACHÓN, 2016, p. 308).
A partir especialmente do encontro com Izdubar, os estudos a respeito da “psicologia depois de O Livro Vermelho de Jung”, conforme subtítulo do estudo de James Hillman e Sonu Shamdasani (2015), podem ser correlacionados com outros elementos da narrativa Epopeia de Gilgámesh – Ele que o abismo viu. Uma abordagem mais atenta das tabuinhas de argila com grafos cuneiformes de Sin-léqi-unnínni (2023) encontradas na Biblioteca de Assurbanipal, rei da Assíria (cerca de 668-627 a.C.), em Nínive, pode render muitas descobertas no trabalho clínico e pessoal com as imagens do inconsciente coletivo. No Brasil este trabalho ainda está por fazer a partir das correlações das narrativas de Jung com a recente tradução feita a partir dos fragmentos em acádio realizada por Jacyntho Lins Brandão, publicada em 2023.
Este processo, mais que permitir curiosas escavações arqueológicas ou de estudos hermenêuticos próprios da argumentação acadêmica, propicia aos analistas da psicologia profunda e aos seus clientes a perspectiva de uma “nova” atitude diante da vida. “O tratamento construtivo do inconsciente, isto é, a questão do seu significado e de sua finalidade, fornece-nos a base para a compreensão do processo que se chama função transcendente” (OC 8/2, §147), conforme já acenei anteriormente. No contexto de As etapas da vida humana, texto do volume A natureza da psique (OC 8/2), Jung enfatiza que “não podemos viver a tarde de nossa vida segundo o programa da manhã, porque aquilo que era muito na manhã, será pouco na tarde, e o que era verdadeiro na manhã, será falso no entardecer” (OC 8/2, §785).
Conduzir um veículo em plena neblina, navegar entre o consciente e o inconsciente diante da forte figura de Izdubar frente a imagem do reverente Jung, é uma graça que desejo aos leitores e leitoras que me acompanham até aqui. Por isso mesmo, ao final da reflexão a respeito das etapas da vida humana, o autor alertou que algumas vezes dizia aos seus pacientes mais idosos: “Sua imagem de Deus ou sua ideia de imortalidade atrofiou-se, e, consequentemente, o seu metabolismo psíquico caiu fora dos eixos” (OC 8/2, §795).
Não é aconselhável concluir um texto com uma citação. No entanto, faço isso justamente para não perder o âmbito nebuloso no qual o presente texto – e a vida – está se desenvolvendo no lento e doloroso caminho da individuação: “Então, se os arquétipos são dados primordialmente, eles são determinantes, como Auden disse, e o cito novamente: ‘Somos vividos por poderes que fingimos compreender”. Podemos (no meu caso, posso), parar exatamente aqui”) (Apud. HILLMAN; SHANDASANI, 2015, p. 227).
Mais do que descobrir que, na interação de Jung com Izdubar, os deuses são preservados quando tratados como como imagens, percebo que além das explicações esquemáticas e simplificadoras, este trabalho é uma pequena contribuição para que eu mesmo, os terapeutas junguianos e seus clientes, se abram – em contexto de neblina ou penumbra – para a experiência simbólica com sentido no caminho da individuação, para os símbolos como veredas para se manter os homens e os deuses vivos.
Dr. José Eugenio de O. Menezes – Membro Analista em Formação do IJEP
Dra. E. Simone Magaldi – Membro Didata do IJEP
Referências:
ANONIMO. A nuvem do não-saber. Trad. Maria de Moraes Barros. Apres. José Comblin. Coleção A Oração dos Pobres. São Paulo: Paulus, 1987.
BERENDT, Joachim-Ernst. Nada Brahma. A música e o universo da consciência. São Paulo: Cultrix, 1973.
BOECHAT, Walter. O Livro Vermelho de C.G. Jung. Jornada para profundidades desconhecidas. Pref. Sonu Shamdasani. Petrópolis: Vozes, 2014.
EPOPEIA DE GILGÁMESH. Tradução e notas de Jacyntho Lins Brandão. São Paulo: Autêntica, 2021.
GOMES, Daniel; MAGALDI FILHO, W.; KÜNSCH, Dimas. A Experiência de Deus para Jung: Aquele que defeca sobre a Catedral e assusta ou Aquele que ilumina e acolhe? Oitavo Congresso do IJEP. Vídeo. São Paulo: IJEP, 2023.
HILLMAN, James; SHAMDASANI, Sonu. Lamento dos Mortos. A psicologia depois de O Livro Vermelho de Jung. Trad. Isabel F.R. Labriola, Renata Quirono Souza e Gustavo Barcellos. Petrópolis: Vozes, 2015.
HOPCKE, Robert H. Guia para a Obra Completa de C.G. Jung. Trad. Edgar Orth e Reinaldo Orth. Petrópolis: Vozes, 2011.
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Imagem: Livro Vermelho
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