A humanização dos vilões
Só um homem infantil é capaz de pensar que o mal não está presente sempre e em toda parte, e quanto mais inconsciente estiver disto, tanto mais o diabo lhe subirá na garupa.
JUNG, 2012b, §255
Ao nos apresentar Descendentes, Malévola, Malévola: a dona do mal e agora, mais recente Cruella, podemos vislumbrar uma releitura do que torna os nossos vilões infantis perversos. As gerações anteriores ao ano de 2010 viveram muito forte a dicotomia dos contos infantis que separavam o bem do mal, como se isso fosse “óbvio” ou até mesmo o jeito de como as coisas funcionavam. Os contos, os mitos, as fábulas vêm conversar através destes conteúdos inconscientes com a nossa consciência, mas apesar da dicotomia o ser humano é plural e o mal existe dentro de nós, e olhar do lado de fora, como algo que não nos pertence parece ajudar nosso ego a entender que estamos do lado certo. E se essa ideia de lado certo não existe? Quantas possibilidades se abrem? Este presente artigo visa abordar a humanização dos vilões da Disney, e trazer a reflexão e ampliação a subjetividade do que é o bem e o mal a luz da psicologia analítica.
Com gosto “adultescente” para filmes – e filhos pequenos, o que ajuda a estar em dia com as películas da Disney, Pixar e afins – pude observar junto com a construção do meu conhecimento da obra junguiana, uma redenção dos personagens que eram odiados e temidos na minha mais tenra infância. Não esqueço minha compaixão por Malévola, o filme anterior, ao ser enganada e ter suas lindas asas cortadas, achei que ela fez pouco ao se vingar de rei tão infame e mentiroso. Agora, olhando por uma perspectiva menos passional e mais analítica pude reavaliar, a partir dos textos da obra de Jung, que essa dualidade esteve no cerne da fundamentação da sua obra. Negar o mal em mim, ver o mal no outro e entender que o mal é a ausência do bem e que tudo isso vive de forma inerente e simultânea em todos os âmbitos da vida.
Se entendemos, então, que o mal habita a natureza humana independentemente da nossa vontade e que ele não pode ser evitado, o mal entra na cena psicológica como o lado oposto e inevitável do bem. Essa compreensão nos leva de imediato ao dualismo que, de maneira inconsciente, encontra-se prefigurado na cisão política do mundo e na dissociação do homem moderno. JUNG, 2012b, §573
A Cruella De Vill é uma mulher que é gananciosa, ambiciosa e cruel. Como se precisasse devorar tudo a sua volta e ser a única pessoa a ser nutrida, nem que isso custe a pele de cãezinhos fofos e bonzinhos. Mas, quando olhamos a nova narrativa feita no filme Cruella que conta como se construiu essa persona tão megalômana e egocêntrica pela morte violenta da mãe adotiva amorosa e, pela descoberta da mãe biológica perversa, essa falta de amor materno e a desnutrição de afeto torna-se realidade. Jung traz: “Uma vez que ninguém pode sair da própria pele e abandonar a si mesmo, o mal que se encontra por toda parte é o mal de si mesmo.” (JUNG, 2012d, §417). Como a dor de se perceber rejeitada promove um complexo de abandono e a coloca à disposição da vingança, nem que isso a torne “má”, o custo de aceitar sua história é se submeter a vontade do que falta numa tentativa desvairada de preenchimento. Quando depuramos sua dor, por um olhar terceirizado e analítico, podemos justificar suas reações mesmo que suas ações sejam condenáveis.
Hoje, como em todas as épocas, é necessário que o homem não feche os olhos para o perigo do mal que está à espreita dentro dele mesmo. Infelizmente este perigo é demasiado real, e por isto a psicologia deve insistir na realidade do mal e refutar qualquer definição que deseje conceber o mal como algo sem importância ou mesmo como não existente. A psicologia é uma ciência experimental que lida com coisas reais. JUNG, 2012b, §98
Entender que projetar o mal no mundo não elimina o mal em nós, talvez seja a maior reflexão e paradoxo dentro da visão ocidentalizada que achando que só pensar no bem, no belo, e promover a bondade eliminamos a maldade que existe internamente. Não é real, não é compatível com a humanidade essa dissociação, somos paradoxais e complexos, vivemos o bem e o mal dentro de nós e o mundo reflete nossa luz e ao mesmo tempo nossa sombra.
“Não se deve esquecer que os contrários só chegam à exacerbação moral na esfera do querer e do agir humanos, e que não estamos capacitados para dar uma definição do bem e do mal em tudo e por tudo universalmente válida, o que significa, em última análise, que ignoramos simplesmente o que são o mal e o bem em si.” (JUNG, 2012b, §423)
O que nos deixa indignados e incrédulos é o que não conseguimos estruturar e entender onde o mal habita dentro de nós. Quando as histórias são contadas e vilões de contos e histórias que nos habitam são ponderadas e humanizadas entendemos que, realmente “[…] estamos falando concretamente de algo cuja qualidade mais profunda não conhecemos realmente. Depende do critério subjetivo algo a ser vivenciado como mau ou culposo, bem como a magnitude e gravidade da culpa.” (JUNG, 2012e, §860).
A subjetividade que essas produções nos trazem são muito ricas, não só para a psique infantil, como para alcançar um público mais diversificado com a exposição e ampliação da obra junguiana, o paradoxal normalmente é colocado como absurdo, mas quando nos aprofundamos na psique podemos vivenciar que o contraditório vive em nós e isso não é absurdo nenhum. O bem e o mal: “são em si princípios; e princípios existem bem antes de nós e perdurarão depois de nós.” (JUNG, 2012e, §859). O que é vivido dentro de um determinado tempo e lugar vai ser um direcionador moral para esses princípios. Não são apenas juízos de valor interno que permitem a classificação bom e mal, mas sim a cultura, a religião, e tudo que engloba viver o aqui e agora.
Em Descendentes, vemos a herança “maldita” dos filhos dos vilões dos contos da Disney e a busca de redenção a partir de um movimento, que num primeiro momento a intenção é a destruição dos bonzinhos, mas durante o andamento da história vemos que a pluralidade existe em todos eles, nos filhos dos príncipes e princesas e nos filhos dos vilões. E, podemos entender a partir de Jung que “a psicologia ignora o que é bom e o que é mau em si mesmo. Ela só conhece estas coisas como juízos de relação: bom é o que parece conveniente, aceitável ou valioso sob um certo ponto de vista; mau é o inverso disto.” (JUNG, 2012b, §97). Abrandamos nossa crítica com os maus quando podemos olhar a humanidade, e tornamo-nos monstros quando recebemos uma descrição de algo distante do que consideramos humano, o humano é o que transita na dualidade bem e mal.
Não se deve esquecer que os contrários só chegam à exacerbação moral na esfera do querer e do agir humanos, e que não estamos capacitados para dar uma definição do bem e do mal em tudo e por tudo universalmente válida, o que significa, em última análise, que ignoramos simplesmente o que são o mal e o bem em si. JUNG, 2012b, §423
A dualidade é muito visível em Malévola: a dona do Mal, esse filme aborda sob uma perspectiva de luz e sombra como as “aparências” enganam e, nos submetemos a julgos que não são nossos e colocamos em prática aquilo que nos foi passado a revelia do que seria bom ou mal. Ouvir atentamente aquilo que nos guia a um proposito está diretamente ligado as crenças que são herdadas por aqueles que vieram antes de nós e com aquilo que dá alma a nossa jornada. Assim, “a melhoria de um mal generalizado começa pelo indivíduo, e isto só quando este se responsabiliza por si mesmo, sem culpar o outro.” (JUNG, 2012a, §618)
Provavelmente vivemos numa época de despertar, não é um acordar, mas despertar. Ter a possibilidade de olhar versões de narrativas que são centenárias ou milenares sob uma perspectiva de que a verdade não é alguma coisa sólida, e sim, uma perspectiva subjetiva de algo que foi percebido e relatado por alguém, e que esse alguém carrega consigo uma história e compreensões de uma realidade subjetiva e única. Carl Gustav Jung sempre celebrou o ser humano como fenômeno e quando entendemos que o bem e o mal nos habitam, a revelia de querermos ou não, a caminhada fica menos densa, podemos ampliar visões e tentar caminhar por um viés que consideramos moralmente honesto com nossa natureza.
O inconsciente coletivo é tudo, menos um sistema pessoal encapsulado, é objetividade ampla como o mundo e aberta ao mundo. Eu sou o objeto de todos os sujeitos, numa total inversão de minha consciência habitual, em que sempre sou sujeito que tem objetos. Lá eu estou na mais direta ligação com o mundo, de forma que facilmente esqueço quem sou na realidade. “Perdido em si mesmo” é uma boa expressão para caracterizar este estado. Este si-mesmo, porém, é o mundo, ou melhor, um mundo, se uma consciência pudesse vê-lo. Por isso, devemos saber quem somos. JUNG, 2012a, §46
Estamos imersos no inconsciente coletivo e quando produções cinematográficas nos trazem produções que fazem uma releitura ou uma reavaliação de determinada história é trazido ao pensador comum uma imagem, a coletividade é exposta ao heterogêneo, e somos obrigados a pensar o que nos é divergente. Conteúdos novos com imagens que atingem a humanidade hoje, mais do que nunca, chegam de maneira global, e assim, podemos a partir da comunicação do cinema construir novos enredos que tragam amplitude e integralidade a nossa visão de mundo. Pois achamos que sabemos definir o mal, o mal é aquilo que não nos habita, só pertence ao outro mas Jung já alertava: “Donde nos vem a crença, esta aparente certeza de que conhecemos o bem e o mal? “Sereis como Deus, conhecendo o bem e o mal”. Só os deuses o sabem, nós não.” (JUNG, 2012e, §862)
Bárbara Pessanha, Membro Analista em formação do IJEP-RJ
E. Simone D. Magaldi membro didáta do IJEP
Referências:
JUNG, Carl Gustav. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. ed. Petrópolis: Vozes, 2012a. (Obras Completas de C. G. Jung, v. 9/1).
JUNG, Carl Gustav. Aion. ed. Petrópolis: Vozes, 2012b. (Obras Completas de C. G. Jung, v. 9/2).
JUNG, Carl Gustav. Presente e Futuro. ed. Petrópolis: Vozes, 2012c. (Obras Completas de C. G. Jung, v. 10/1).
JUNG, Carl Gustav. Aspectos do Drama Contemporâneo. ed. Petrópolis: Vozes, 2012d. (Obras Completas de C. G. Jung, v. 10/1).
JUNG, Carl Gustav. Civilização em Transição. ed. Petrópolis: Vozes, 2012e. (Obras Completas de C. G. Jung, v. 10/3).
Filmes:
Malévola, 2014 ‧ Diretor: Robert Stromberg. Walt Disney Pictures
Descendentes, 2015. Diretor: Kenny Ortega. Disney Channel Original Production
Malévola: Dona do Mal, 2019. Diretor: Joachim Rønning. Walt Disney Pictures
Cruella, 2021. Diretor: Craig Gillespie. Walt Disney Pictures