O presente artigo visa aprofundar algumas questões que foram por mim debatidas na palestra intitulada Semana de Arte Moderna: uma inspiração para a Arteterapia, como parte do VII Congresso Junguiano do IJEP 2022[1].
Muito se fala da capacidade criativa do ser humano e que ela se baseia e se utiliza dos recursos conscientes e inconscientes da fantasia, da reflexão e da elaboração de significados subjetivos para os acontecimentos da vida, sendo capaz de empreender essas operações de modo complexo e rico e produzindo um entendimento individual, mas também coletivo para as inúmeras demandas da jornada e da existência humana. Na relação com essas demandas, são produzidos olhares que percebem a complexidade dos acontecimentos, mas que só conseguem, na grande maioria dos casos, elaborá-los e integrá-los psiquicamente a partir de um determinado e específico recorte ou prisma. As influências que determinam esse recorte da realidade são inúmeras e podemos chamá-las de tendências, subjetividades, experiências, vieses, preconceitos, inclinações, pré-disposições, etc., mas o que percebemos é que, a partir dessas influências, entra em ação uma operação muitas vezes inconsciente de fragmentação, simplificação e, ao mesmo tempo, homogeneização desses acontecimentos. Essa operação, além de simplificar, também produz reações automatizadas e formas cristalizadas de perceber, reagir, trocar, se relacionar e, consequentemente, atuar em diferentes contextos que, por sua vez, vão demandar novas elaborações de significados.
Essas simplificações também acabam por prejudicar o desenvolvimento de formas mais ricas e complexas do indivíduo se relacionar com o mundo e consigo mesmo, porque essas influências e os consequentes recortes não auxiliam na mobilização de grande parte do potencial criativo, reflexivo e de construção de sentido que a psique humana é capaz de alcançar. Esses recortes elegem o que valorizar e o que desconsiderar em uma experiência, e essa eleição não acontece aleatoriamente, trata-se de um movimento que resulta de uma construção (in)consciente, baseada nas inter-relações e mediada pelos discursos vigentes, em suma, pela produção cultural da sociedade e pela época em que e quando vive o sujeito. Os discursos produzidos por essa cultura funcionarão como modelos ou padrões psicológicos que estarão frequentemente presentes na significação e ressignificação da realidade, nos levando a refletir sobre a correlação constante entre as dimensões individual e coletiva.
Liev Semionovitch Vigotski (1896-1936) foi uma das figuras mais importantes na construção da Psicologia enquanto campo epistemológico de estudo interdisciplinar. Vigotski desenvolveu investigações muito importantes sobre a Psicologia da Arte, revolucionando muitas das concepções tradicionais da relação do indivíduo e da sociedade com o fenômeno humano da criação artística. Segundo ele, a Psicologia não poderia “explicar o comportamento humano ignorando a reação estética suscitada pela arte naquele que a frui, ou as relações de reciprocidade entre o homem e o mundo e as representações que o homem faz do mundo”. [i]
Para Vigotski, a ideia central da Psicologia da Arte seria “o reconhecimento da arte como técnica social de sentimento. Achamos que o método de estudo desse problema é o método analítico objetivo, que parte da análise da arte para chegar à síntese psicológica: o método de análise dos sistemas artísticos de estímulos.”[ii] (grifo do autor). Apesar de suas tentativas em explorar e aspirar a algum tipo de elaboração científica para a Psicologia da Arte, Vigotski admite que esse é “o campo mais especulativo e misticamente vago da Psicologia”.[iii]
No ensaio Arte e Tempo, um dos quatro ensaios que compõem o livro Arte e o Inconsciente Criativo, de Erich Neumann (1905 – 1960), o autor afirma que a investigação proposta pelo ensaio estaria inserida no campo da “psicologia da cultura; buscando uma compreensão da arte como um fenômeno psicológico de central importância tanto para o indivíduo quanto para a coletividade”.[iv] Também de acordo com Neumann, é o inconsciente que produz formas incessantemente e “de modo análogo à natureza”.[v] As formas produzidas pela natureza e pelo inconsciente gerariam no indivíduo e na coletividade a experiência estética do belo e/ou do significativo, impactando as psiques, e que essas formas se originariam num “substrato e num plano de fundo psicofísico que nós chamamos de criativo”.[vi]
Vemos, então, a natureza e o inconsciente coletivo possivelmente como as fontes desconhecidas de criação de formas no mundo externo e no mundo psíquico. Dentre as criações do mundo psíquico estariam a religião, o rito, a organização social, a consciência e, por fim, mas não menos importante, a arte. Interessante observar que Neumann também diz que “os arquétipos do inconsciente coletivo são intrinsicamente estruturas psíquicas sem forma que se tornam visíveis através da arte.”[vii]
Então, podemos dizer que a Psicologia da Arte estaria transitando em três territórios distintos, a saber: a criação, a apreciação e a reflexão crítica. Transitar por esses três territórios seria uma tentativa de compreender a arte como instrumento capaz de promover a capacidade de agenciamento do indivíduo na sua relação com o mundo, e através de seu potencial de fazer emergir emoções, gerar imagens psíquicas que se desdobrarão em noções e sentidos sobre a realidade e a experiência da realidade:
“A imaginação é constituída por imagens, no que concerne a sua estrutura, e por significação, no que concerne a seu conteúdo. (…) Essa significação tem no centro a emoção. (…) Na obra, pintura, literatura ou música, a estética submete o conteúdo segundo suas leis, e os conteúdos subvertem a estética para que esta consiga expressá-los.”[viii]
A intenção desta talvez longa introdução ao tema da Psicologia da Arte é tão somente defender esse campo da Psicologia “por um lado, como mediação potente da conscientização e ressignificação da realidade e, por outro, como promotora da imaginação que faz emergirem e se consolidarem processos criadores valiosos ao desenvolvimento, podendo promover o estranhamento da realidade, que é condição essencial para a atribuição de novos significados e sentidos em relação ao vivido”. (SOUZA, DUGNANI e REIS, 2018).
A obra de arte, então, poderia promover e incentivar esse movimento em prol de uma relação mais complexa entre sujeito e objeto, entre indivíduo e coletividade, entre pessoal e social, entre o mundo interno e o mundo externo, ampliando as possibilidades de criação e produção de significados, o que favorece o diálogo, a troca de emoções, pensamentos e ações entre o individuo e a coletividade. O forte aspecto relacional dessa equação é dinâmico e contínuo, muitas vezes, sendo quase impossível identificar nessas trocas a origem das influências, pois se trata de um campo de interações, inter-relações e intra-relações que se determinam mutuamente. É possível afirmar hoje que o contexto social, histórico, econômico e político do início do século 20 criaram as bases para a consolidação e o reconhecimento de diversos estilos artísticos, que já estavam surgindo desde meados do século 19, como pertencentes ao movimento modernista.
ARTE E MODERNISMO
Com o reconhecimento de diversos estilos e movimentos artísticos, tais como o abstracionismo, simbolismo, expressionismo, impressionismo, cubismo, dadaísmo, surrealismo, dentre outros, como pertencentes ao que seria denominado como arte moderna, vimos que a arte inicia seu caminho no sentido de romper com a ideia de uma representação formal da realidade, abrindo espaço para a informalidade, a liberdade de expressão baseada em visões subjetivas, as figuras deformadas e cenas sem lógica, o abandono do sentido de fidelidade ao objeto representado, a liberdade também no uso das cores, do humor, da irreverência e do estranhamento:
“E, a partir desse lugar de estranhamento, a imaginação é mobilizada para que novas compreensões sejam possíveis, no âmbito da emoção, do sentido e da significação, e do percebido/compreendido. É possível afirmar que a obra de arte, para atuar como instrumento psicológico, precisa confundir, paralisar, dificultar a percepção da realidade, produzir estranhamento. Deve também fazer emergir as emoções contraditórias, dificultando a atribuição de significados e a configuração de sentidos, colocando o sujeito em um estado de contemplação e reflexão. A vivência da contradição é o que promove novas significações, superando a condição anterior de sentimento e pensamento, para, incorporando-os, construir novos nexos ou relações e ampliar a compreensão da realidade.” (SOUZA, DUGNANI e REIS, 2018).
Tal dinâmica pode ser entendida como aquela necessária para a ampliação da consciência, isto é, “o desenvolvimento de modos criativos e ativos de o sujeito se relacionar com a realidade” (SOUZA, DUGNANI e REIS, 2018), incluindo o desenvolvimento de narrativas mais ricas sobre si mesmo, os eventos e os modos como estes se desenrolam ao longo da vida, no âmbito pessoal e social, refletindo de modo mais complexo sobre seus efeitos, seus múltiplos significados, suas inúmeras facetas e suas possibilidades de transformação e de construção de esperanças para o futuro. “Trata-se, portanto, de colocar os afetos em movimento, de modo a se produzir “poder de agir”. (SOUZA, DUGNANI e REIS, 2018).
Com a ampliação da consciência, o indivíduo poderá desenvolver as ferramentas necessárias para lidar com a complexidade da experiência profunda que é a vida, talvez padecendo ou sofrendo menos as consequências dos padrões pragmáticos de leitura e compreensão do mundo, fragmentados e únicos, determinados por suas tendências e estímulos muitas vezes inconscientes, mas que, quando tornados conscientes, possuem um enorme poder de transformação dos modos de vida do sujeito.
Possivelmente, serão promovidos menos recortes que visam somente à simplificação da experiência, suportando a complexidade dos eventos e das relações e desenvolvendo uma maior capacidade de conviver e aceitar a alteridade e a diferença. Essa capacidade de abstração e de aceitação de aspectos que vão além do individual e da experiência direta traz uma reflexão crítica que questiona a estagnação do sujeito preso em uma noção limitada da realidade, encapsulado pelos discursos dominantes e vítima de suas próprias escolhas limitantes. Essa reflexão crítica dá lugar a um sujeito capaz de fantasiar, sonhar, esperançar e se libertar, entrando em contato direto com uma das mais ricas das capacidades humanas: a imaginação.
ARTE E PSICANÁLISE
Paralelamente ao estudo sobre a Psicologia da Arte, podemos trazer para nossa reflexão alguns estudos sobre o surgimento e desenvolvimento da Arteterapia. Esta abordagem terapêutica, como a conhecemos hoje, teve seu início no século XX, justamente quando a arte promoveu ações e estéticas que a afastaram do classicismo, assumindo as mudanças propostas pela arte moderna e seus vários estilos, mas alguns estudos e práticas que pregavam a utilização da arte com fins terapêuticos já tinham sido desenvolvidos no início do século XIX pelo médico alemão Johann Christian Reil[2]. Depois, vimos a aplicação do uso das artes no contexto psicoterapêutico sendo aprofundada por Sigmund Freud e Carl Gustav Jung, sendo que este último teve importante papel no desenvolvimento dos fundamentos teóricos da Arteterapia, juntamente com Nise da Silveira.
Sobre os importantes personagens da história da psiquiatria e da psicanálise acima citados, que foram escolhidos para compor esse breve artigo, excluindo infelizmente tantos outros, tais como Moreau de Tours e Phillipe Pinel (dos quais Reil foi contemporâneo), vale dizer que Reil deu os primeiros passos na utilização dos recursos artísticos para fins terapêuticos. Em sua prática, utilizava as expressões artísticas dos pacientes como auxílio na definição de diagnósticos, mas também como estímulos no tratamento dos pacientes institucionalizados. Em 1803, Reil publica uma obra que talvez possa ser considerada o primeiro compêndio sobre práticas sistemáticas em psicoterapia, Rapsódias sobre a aplicação da psicoterapia a perturbações mentais[ix]. Ao mesmo tempo em que utilizava métodos terapêuticos discutíveis, que envolviam estímulos ligados a castigo e recompensa, Reil também sugeria a terapia ocupacional, musical, teatral, como modos de fomentar a reflexão crítica sobre os comportamentos. O desenho e a pintura eram usados como base para um possível diagnóstico, não havendo, entretanto, registros de seu uso como recursos num processo terapêutico.
Sigmund Freud (1856-1939) sempre defendeu que o inconsciente se manifesta através de imagens e que elas, muitas vezes, escapam do grande censor da mente, o Superego. Sendo assim, a arte poderia ser utilizada como forma de expressão, mas também de compreensão das razões inconscientes dos possíveis distúrbios mentais do indivíduo, que estariam presentes na obra manifesta. Num ensaio de 1910, Freud faz uma de suas poucas incursões numa espécie de interpretação psicológica da obra de arte, usando o quadro de Leonardo Da Vinci (A Virgem e o Menino com Santa Ana) como base, assim como de uma memória de infância de Leonardo à qual ele teve acesso a partir da monografia de Scognamiglio[x] sobre a juventude de Leonardo. O ensaio, Leonardo Da Vinci e uma Lembrança da sua Infância[xi] (1910) atualmente compõe o volume 11 de suas obras completas. Na nota do editor inglês, James Strachey, lemos que o ensaio seria:
“(Um)a reconstrução detalhada da vida emotiva de Leonardo, desde os seus primeiros anos; a descrição do conflito entre seus impulsos artísticos e científicos; a análise profunda de sua história psicossexual. Além desses assuntos importantes, o estudo nos apresenta uma quantidade de temas colaterais de igual valor: uma discussão mais geral da natureza e do trabalho da mente de um artista criador; uma descrição da gênese de um tipo especial de homossexualidade; e, o que é especialmente interessante para a história da teoria da psicanálise, o aparecimento, pela primeira vez, do conceito de narcisismo.” (STRACHEY, 2006).
O ensaio – entendido como um estudo psicanalítico aplicado à arte – foi duramente criticado, tanto por historiadores da arte quanto por filósofos e psicanalistas da época, principalmente por revelar um interesse de Freud mais voltado para provar suas teorias do que propriamente para uma análise do objeto artístico em si. Muitos o consideraram um mau uso da psicanálise e também, poderíamos pensar, um uso discutível de algumas premissas de uma possível Psicologia da Arte que tentava se constituir e se definir naquela época. Apesar da considerada infeliz escolha do autor em aplicar sua teoria, ainda em tenra formação, para analisar aspectos inconscientes da sexualidade de Da Vinci, vemos nesse ensaio alguns conceitos que formariam a base da Psicanálise nos anos posteriores, tanto que Freud confidencia em carta à Sándor Ferenczi (1873-1933) que o ensaio tinha sido “a única coisa bela que escrevi”[xii].
Já o psiquiatra e fundador da Psicologia Analítica, Carl Gustav Jung (1875-1961), nos propõe uma relação terapêutica com a arte baseada na utilização desta como parte integrante e fundamental do tratamento e do processo analítico. Jung claramente se opõe ao uso da Psicologia como um caminho de “interpretação” de uma obra de arte com base na biografia do artista ou autor. Ele nos apresenta a dinâmica psíquica de modo mais abrangente e aprofundado, com os conceitos de inconsciente pessoal e coletivo, a noção dos arquétipos, o estudo sobre os complexos, trazendo a arte e a expressão artística, não só como elementos culturais e sociais, mas também como elementos prospectivos de um processo de cura, individual e coletiva. No capítulo VI (Relação da psicologia analítica com a obra de arte poética) do volume 15 das suas obras completas, O Espírito na Arte e na Ciência[xiii], Jung nos traz a seguinte reflexão:
“Portanto, quando falamos da relação entre psicologia e a arte, estaremos tratando apenas daquele aspecto da arte que pode ser submetido à pesquisa psicológica sem violar a sua natureza. Seja o que for que a psicologia possa fazer com a arte, terá que se limitar ao processo psíquico da criação artística e nunca atingir a essência profunda da arte em si.” (JUNG, 2013, p. 99).
Jung explora a forte relação entre psicologia e arte em praticamente toda a sua obra, evidenciando e reconhecendo esta conexão ao constatar que o processo de criação artística é um processo psicológico em todos os seus níveis: da concepção à execução, da fruição à relação crítica, da motivação à recepção. Em todos esses aspectos, podemos perceber diversas camadas individuais e coletivas sobrepostas e em interação, na maioria das vezes, de modo subliminar ou inconsciente. No entanto, Jung nos propõe um olhar para o thelós, ou sentido finalista/prospectivo daquela obra, colocando-se em oposição à abordagem causal-redutiva, proposta pela interpretação de Freud. Nessa passagem, fica mais claro o aspecto que Jung mais valoriza nessa relação entre psicologia e arte:
“Para fazer justiça à obra de arte, a psicologia analítica deverá despojar-se totalmente do preconceito médico, pois a obra de arte não é uma doença e requer, pois, orientação totalmente diversa da médica. O médico tem que pesquisar as causas de uma doença…; o psicólogo, porém, deve adotar uma posição oposta em relação à obra de arte… (pois seria) supérfluo investigar o condicionamento prévio a que estão sujeitas todas as pessoas em geral. É preciso perguntar pelo sentido da obra. O condicionamento prévio só nos interessa na medida em que facilitar a melhor compreensão do sentido. A causalidade pessoal tem tanto ou tão pouco a ver com a obra de arte, quanto o solo tem a ver com a planta que dele brota.” (JUNG, 2013, p. 107).
Jung eleva a obra de arte a um nível que vai além do aspecto pessoal da vida e da subjetividade do artista (nível individual), propondo a valorização do significado arquetípico (nível coletivo) do processo de criação também no processo terapêutico. Pois, para além das causas pessoais que possam ter influenciado o surgimento de uma obra de arte, seu valor, tanto para o artista quanto para a coletividade, vai além desse aspecto pessoal. Só essa reflexão já revela a potência da expressão artística para o indivíduo, pois coloca suas criações no nível da relação com o coletivo, com as questões temáticas comuns de seu tempo histórico-social e não apenas com suas interações pessoais do circuito familiar, como propunha Freud. Essa perspectiva oferece maior complexidade e amplitude também aos processos psíquicos que, por ventura, estejam sendo limitados por uma biografia unicamente pessoal. A arte nos coloca diante e em relação com a coletividade e com uma possível essência daquilo que chamamos de humano.
No Brasil, em meados do século XX, os psiquiatras Osório César (1895-1979) e Nise da Silveira (1905-1999) foram os pioneiros na utilização da arte no contexto das instituições psiquiátricas, propondo essa abordagem como uma nova modalidade de tratamento dos transtornos mentais graves, o que transformou radicalmente a relação médico-paciente dentro dessas instituições. Em 1925, Osório Cesar funda a Escola Livre de Artes Plásticas do Juqueri e, em 1948, organiza a 1ª Exposição de Arte do Hospital do Juqueri no Museu de Arte de São Paulo. Em 1946, Nise da Silveira inaugura o setor de Terapia Ocupacional do Centro Psiquiátrico D. Pedro II, em Engenho de Dentro, no Rio de Janeiro, e em 1952 ela funda o Museu de Imagens do Inconsciente, que começa a organizar exposições abertas com as obras produzidas pelos pacientes, que ela gostava de chamar de “clientes”.
A inserção da arte no dia a dia dos hospitais psiquiátricos trouxe propostas mais humanizadas de atendimento numa perspectiva que vinha sendo engendrada já na Itália para o que hoje chamamos de movimento anti-psiquiátrico, que passou a caracterizar as políticas públicas no âmbito da saúde mental em diversas partes do mundo, incluindo o Brasil. A partir do século XX, e dessas primeiras aproximações entre arte e terapia no contexto psiquiátrico, a Arteterapia surge e se consolida ao mesmo tempo em que se desenvolvem as teorias da Psicologia da Arte, passando, portanto, a assumir um caráter reflexivo e epistemológico interdisciplinar:
“A criação artística pode ser uma atividade terapêutica ao estabelecer uma via de contato do sujeito com suas próprias vivências internas, emoções e pensamentos, e interferir na relação com os outros.”[xiv](AMENDOEIRA, 2015)
Dando um salto para teóricos mais contemporâneos, Alain de Botton (1969-) e John Armstrong (1966-), no livro Arte como terapia (2014), defendem que a arte é um instrumento que auxilia o homem a lidar com suas fragilidades e que ela pode compensar “algumas de nossas fraquezas inatas, nesse caso mais mentais que físicas; fraquezas que podemos chamar de fragilidades psicológicas.”[xv] Eles continuam essa argumentação, listando em quais fragilidades psicológicas a arte poderia atuar e ajudar, identificando sete funções para a arte: 1 – Rememoração; 2 – Esperança; 3 – Sofrimento; 4 – Reequilíbrio; 5 – Compreensão de si; 6 – Crescimento; 7 – Apreciação.
Explorando um pouco mais os argumentos apresentados por Botton e Armstrong, a arte então nos ajudaria a preservar a memória das experiências; promoveria esperança ao registrar as formas belas, agradáveis e alegres da vida, mas também a tristeza quando, ao contemplarmos uma imagem, nos lembramos de nossos dissabores e dificuldades; nos ajudaria a suportar o sofrimento ao mostrar os mais diversos estados de espírito como elementos centrais e universais da existência humana; nos ajudaria a reencontrar o equilíbrio, quando estivermos muito propensos a pender apenas para um lado. Além disso, ajudaria na compreensão de si a partir do desenvolvimento do autoconhecimento, pois, segundo os autores, podemos nos identificar não somente com pessoas e situações, mas também com objetos, paisagens, vasos ou caixas, vendo valores e potenciais neles que, muitas vezes, não vemos em nós mesmos. Ajudaria, ainda, a desenvolver formas estratégicas de lidar com as mais variadas situações, principalmente com a sensação de estranheza que, muitas vezes, a arte nos causa, com concepções de mundo muito diferentes das nossas, nos dando a oportunidade de lidar e entender nossas reações e a nós mesmos. Seria, enfim, um recurso que nos permitiria perceber nosso entorno com mais atenção, homenageando o “valor esquivo, mas real da vida comum”.[xvi]
A Psicologia da Arte estuda ou pretende aprofundar as diversas possibilidades de investigação do fenômeno artístico e da criação de modo a permitir uma maior compreensão sobre as questões humanas envolvidas nesse processo. A Psicologia da Arte explora questões relacionadas à percepção, linguagem, memória, emoção, sensação, relações, conexões com as realidades internas, subjetivas, assim como com as realidades externas, objetivas. A Psicologia da Arte é uma disciplina altamente complexa, porque também abrange outras áreas estudadas pela própria Psicologia, mantendo também relação com outras disciplinas como a Filosofia e seus estudos sobre os fenômenos estéticos. Também envolve e dialoga de modo intenso com a História da Arte. Então, creio que seja possível concluir que a Psicologia da Arte, em todas as suas diferenciadas relações e possíveis desenvolvimentos dentro do processo terapêutico individual ou de grupo, ou dentro das esferas mais coletivas de apreciação ou reflexão crítica da arte, contribui de modo fundamental para o estudo, construção e desenvolvimento de um sujeito mais complexo, que seja capaz de se relacionar com o mundo e com as questões contemporâneas de modo mais criativo, colaborativo e saudável, tanto para si mesmo quanto para a coletividade.
Isa Carvalho
Membro Analista em Formação pelo IJEP
Santina Rodrigues – Analista-didata
[1] Palestra proferida em conjunto com a analista-didata Santina Rodrigues, e com a também analista em formação, Erika Mendel.
[2] Johann Christian Reil (1759-1813)[2] foi um médico, fisiologista, anatomista e psiquiatra alemão responsável, em 1808, pela criação do termo psiquiatria – Psychiatrie em alemão.
[i] BEZERRA, Paulo – In prefácio Psicologia da Arte – VIGOTSKI, L. S. – Martins Fontes_1999_pag. XI
[ii] VIGOTSKI, L. S. – Psicologia da Arte – Martins Fontes_1999_pag. 3
[iii] IDEM_pag. 4
[iv] NEWMANN, E. – Art and Time – In Art and the Crative Unconscious – BOLLINGEN SERIES LXI_1959_pag.81
[v] IDEM_pag.82
[vi] IDEM_pag.82
[vii] IDEM_pag. 82
[viii] SOUZA, V. L. T., DUGNANI, L. A. C., REIS, E. C. G. – Psicologia da Arte: fundamentos e práticas para uma ação transformadora_2018 – https://doi.org/10.1590/1982-02752018000400005 – Acesso em 09.04.2022
[ix] REIL, J. C. – Rhapsodieen über die Anwendung der psychischen Curmethode auf Geisteszerrüttungen_Halle, 1803
[x] SCOGNAMIGLIO, N. S. – Ricerche e documenti sulla giovinezza di Leonardo da Vinci, Napoli_1900
[xi] STRACHEY, J. – In FREUD, S. – Cinco Lições de Psicanálise, Leonardo da Vinci e Outros Trabalhos – Vol. XI Obras Completas – Ed. Imago_2006_pag. 5
[xii] PONTALIS, J. B. – L’attrait des oiseaux. In S. Freud, Un souvenir d’enfance de Léonard da Vinci_Gallimard_1987_pag. 9
[xiii] JUNG, C. G. – O Espírito na Arte e na Ciência – Vol. 15 das Obras Completas – Ed. Vozes_2013
[xiv] AMENDOEIRA, M. C. R. – O estudo das imagens do inconsciente e a psicanálise: o enfoque transdisciplinar do pensamento de Nise da Silveira – as diferentes leituras de imagens – Centro de Estudos do Museu de Imagens do Inconsciente_2015_pag. 4
[xv] BOTTON, A., ARMSTRONG, J. – Arte Como Terapia – Intrínseca_2014_pag. 5
[xvi] IDEM_pag. 62