Resumo: Neste ensaio, em função do crescente uso da Inteligência Artificial (IA) para sessões de psicoterapia, reflito que esses algoritmos podem ser excelentes para cuidar de máquinas com distúrbios produtivos visando adequá-las ao mercado, mas podem ser completamente inadequadas para cuidar de almas, em busca de realizações, sentido e propósito existencial.
O cérebro humano, enquanto sistema biológico complexo, opera como uma máquina eletro-coloidal orientada para a homeostase. Ele processa incessantemente dados bioquímicos, sinais elétricos neuronais, estímulos sensoriais e padrões cognitivos, mobilizando energia vital para mitigar desequilíbrios — desde a regulação fisiológica até o alívio de angústias existenciais.
Sob essa ótica, sua função primordial assemelha-se à de um algoritmo: identificar conflitos (sejam emocionais, como dúvidas e incertezas, ou físicos, como a fome ou disfunções orgânicas) e buscar soluções que reduzam o sofrimento, priorizando um estado de repouso e economia energética direcionado para a entropia.
É uma engrenagem voraz que consome 25% da glicose e do oxigênio do organismo, apesar de pesar apenas 2% do peso corporal, em sua essência, anseia por certezas, gratificação e recompensas dopaminérgicas e serotoninérgicas — um porto seguro prazeroso contra a turbulência da existência.
Nesse contexto, a inteligência artificial (IA) surge como ferramenta promissora para lidar com aspectos mecânicos da mente.
Sistemas baseados em machine learning (aprendizado de máquina) podem mapear padrões de pensamento, oferecer respostas rápidas a crises de ansiedade ou até mesmo simular diálogos terapêuticos, replicando técnicas de terapia cognitivo-comportamental.
No entanto, seu mecanismo é limitado pela própria natureza de sua programação: opera dentro de parâmetros binários (certo/errado, problema/solução) e visa, acima de tudo, à eficiência. Para a IA, a homeostase é um fim em si mesma — uma equação a ser resolvida.
Por isso, do ponto de vista da Psicologia Analítica de Carl Gustav Jung, ela pode ser eficiente na direção redutiva causal, mas muito limitada para a ampliação prospectiva sintética, que visa o para que ao invés do porquê das angústias e sintomas.
Aqui reside o paradoxo. Se, por um lado, a busca por equilíbrio é vital para a sobrevivência, por outro, a dimensão espiritual e criativa do ser humano transcende a mera resolução de problemas.
A alma — termo aqui usado simbólica e metaforicamente para representar a Psique com sua subjetividade profunda, a consciência reflexiva e a busca por significado — não se nutre de respostas prontas.
Ela habita justamente nos interstícios das incertezas, nas perguntas que não cabem em algoritmos, na coragem de enfrentar o caos para germinar novas formas de existir.
A homeostase, quando transformada em objetivo absoluto, converte-se em inércia: um conforto estagnado que suprime a inquietude necessária para a transformação interior.
A psicoterapia tradicional, ainda que utilize técnicas estruturadas, fundamenta-se na relação humana — um espaço onde vulnerabilidades são acolhidas sem julgamento, onde o silêncio tem peso e onde a contradição é permitida e até necessária para que aconteça a síntese da função transcendente.
Um terapeuta não apenas “processa” informações, mas analisa e amplia nuances simbólicas, trabalha com a transferência e a contratransferência, e reconhece que o crescimento muitas vezes emerge do desconforto e da angústia, que é a mola propulsora de toda produção criativa da humanidade expressa nas ciências, nas artes e nas religiões.
A IA, por mais avançada, carece de presença e da capacidade simbólica: não sente, não tem história pessoal, não compartilha da condição mortal que nos une como humanos, não estabelece vínculos empáticos e amorosos. Suas respostas, ainda que precisas, são desprovidas do ethos e alma que transforma um diálogo em encontro genuíno.
Além disso, a espiritualidade — independentemente de crenças religiosas — pressupõe um movimento expansivo. Criatividade, autotranscedência e conexão com o mistério exigem rupturas com a zona de conforto homeostática. Enquanto a IA busca otimizar rotas predefinidas, a jornada da alma envolve perder-se para reencontrar-se, questionar certezas e abraçar a impermanência e as dúvidas. Não por acaso, mitos e tradições espirituais celebram a jornada do herói, aquele que se entrega com fé no seu caminho empírico e errante, e não a do administrador de conflitos, baseado em cálculos estatísticos.
Conclui-se, portanto, que a IA pode ser uma aliada na gestão de sintomas ou no apoio inicial a crises, mas falha ao reduzir a complexidade humana a variáveis programáveis.
Cuidar da alma — com suas sombras, ambiguidades e aspirações infinitas — exige mais do que eficiência: exige imaginação, poesia, paradoxo e, sobretudo, um olhar que reconheça no outro não um sistema a ser reparado, mas um universo a ser desvendado.
Enquanto a inteligência artificial lida com máquinas (incluindo o cérebro como hardware) focada nas evidências reducionistas, mecanicistas e causais, a psicoterapia e a medicina autênticas atuam com arte e alma — território exclusivo de quem ousa navegar, sem mapas, pelos abismos e estrelas que nos habitam, dando espaço para que o inconsciente, povoado de arquétipos, complexos e sombra, contribua com a consciência do ego.
Esta reflexão não nega o potencial da IA como ferramenta auxiliar, mas alerta para o risco de confundirmos “saúde mental” com “controle de danos”.
O que nos torna humanos é justamente aquilo que nenhum código pode capturar, a percepção do medo, do desejo de liberdade, do envelhecimento, da morte, da solidão e da busca de sentido e significado existencial, que não são vivências possíveis para nenhum tipo de máquina.
Waldemar Magaldi
Analista Didata do IJEP
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