Resumo: Poderia a música, na prática da psicoterapia, favorecer o surgimento de conteúdos inconscientes passiveis de serem analisados simbolicamente? O impulso para a construção desse artigo vem do depoimento de Jung no encontro dele com Margaret Tilly, em 1956, descrito no livro Entrevistas e Encontros, onde ele é taxativo ao afirmar que “…doravante a música deve ser uma parte essencial de toda a análise.” Tenham uma excelente leitura.
Este artigo busca entender a possível utilização da música na prática da Psicologia Analítica.
Para tanto, lança uma pergunta basilar: a utilização da música no ambiente da prática da análise junguiana seria um fator capaz de reduzir as defesas egóicas, possibilitando o afloramento de conteúdos capazes de serem analisados simbolicamente? Com base em uma bibliografia que se debruça sobre o papel da música na evolução humana, a partir da neurociência, sob o olhar de Daniel Levitin, na obra do próprio Jung e de Joel Kroiker, traça-se um panorama para tentar entender tal questionamento. O presente artigo é um pequeno resumo da monografia apresentada como parte da conclusão da Especialização em Psicologia Analítica, concluída em 2023, disponível na biblioteca do IJEP.
De onde teria vindo a música?
Os estudos de suas origens evolutivas têm um acervo diverso e bem rico. Segundo o neuro-cientista Daniel Levitin, para Darwin, a música surge e se desenvolve no processo de seleção natural, integrada aos rituais humanos ou páleo-humanos, de acasalamento (LEVITIN, 2010). Seria, portanto, uma seleção sexual, onde as habilidades musicais de produção sonora serviriam para atrair o sexo oposto.
Darwin considerava que a música antecedia a fala como ferramenta para fazer a corte, equiparando-a à cauda do pavão. Em sua teoria da seleção sexual, ele postulava a emergência de características que não serviam a qualquer finalidade diretamente ligada à sobrevivência, senão para tornar a pessoa (e, portanto, os seus genes) atraente.
(LEVITIN, 2010, p. 284)
A famosa flauta de osso com cerca de 50 mil anos, encontrada em uma caverna na Eslovênia nos anos 90, tão propagada na imprensa mundial, não seria a primeira forma de expressão musical, antes disso, a voz, como “primeiro instrumento”, e depois os tambores seriam veículos de expressão musical.
Nesse sentido, existiriam provas tangíveis de que a música antecede a linguagem e faz parte intrínseca do desenvolvimento humano.
Os registros arqueológicos mostram um histórico ininterrupto de criação musical onde quer que houvesse seres humanos, em todas as eras. E além disso, é claro, o canto muito provavelmente é anterior às flautas.
(LEVITIN, 2010, p. 289)
Segundo o autor, todos os estudos arqueológicos e os estudos antropológicos nas comunidades de caçadores que se mantiveram afastadas da civilização apontam que a música é fator preponderante desses povos e que ela é inseparável da dança. Portanto, música e movimento sempre estiveram presentes como uma realidade de todos, e não somente de alguns portadores de talentos especiais. Somente nos últimos quinhentos anos é que teria surgido essa categoria de expectadores, diante dos quais os especialistas fazem um concerto onde a escuta é o objetivo.
O ritmo seria, portanto, um fator crucial no desenvolvimento da música na evolução humana.
E isso está presente até hoje nas comunidades ancestrais, onde tambores e demais instrumentos rítmicos, principalmente percussivos, e mesmo que sejam melódico-percussivo, como marimbas, por exemplo, têm um papel preponderante do fazer musical, a exemplo das comunidades tradicionais africanas, e mesmo em suas manifestações afro-americanas, seja de caráter profano e religioso. Nas comunidades ancestrais ameríndias, o fenômeno não é diferente, e a base das manifestações musicais é feita com instrumentos percussivos, aos quais são juntadas flautas e o próprio canto.
… segundo quase todos os relatos, a música de nossos antepassados distantes tinha um caráter acentuadamente rítmico. O ritmo incita nosso corpo. A tonalidade e a melodia incitam o cérebro. A convergência do ritmo com a melodia lança uma ponte entre o cerebelo (o pequeno cérebro primitivo, responsável pelo controle motor) e o córtex cerebral (a parte mais desenvolvida e humana do nosso cérebro). É assim que o “Bolero” de Ravel, “Koko”, de Chalie Parker, e “Honky Tonk Womem”, dos Rolling Stones, nos inspiram e comovem, tanto metaforicamente quanto fisicamente, formando requintadas uniões de tempo e espaço melódicos.
(LEVITIN, 2010, p. 296)
Em seus escritos sobre a questão da transformação da energia psíquica – que é mais abrangente do que a libido sexual de Freud -, Jung afirma que quando esta encontra barreiras e busca outras formas de “atividades substitutivas”, através de atividades ritualísticas, teria no ritmo essa forma repetitiva que exerceria o papel de registrar para a posteridade a transferência da energia psíquica para novas formas.
Música e dança teriam um papel fundamental, o que pode ser comprovado nas atividades ritualísticas de comunidades tradicionais.
Se certas tribos dançam durante toda uma noite ao som monótono de três notas, isso não nos dá a sensação de divertimento; mais parece intenção e exercício. E de fato assim é, pois o ritmo é a maneira clássica de gravar certas ideias e outras atividades, e aquilo que deve ser gravado, isto é, firmemente organizado, é a transferência da libido para uma nova forma de atuação. Como depois da fase nutritiva do desenvolvimento a atividade rítmica não tem mais função no ato da alimentação, ela passa não só para a área da sexualidade sensu strictiori, mas também para o campo dos “mecanismos de atração”, música e dança, e finalmente para a área de trabalho propriamente dito.
(JUNG, 2013i, p. 186)
Parece claro, portanto, o papel que a música e os seus elementos têm no desenvolvimento do ser humano, fazendo parte de uma espécie de matriz universal, comum à espécie e parte importante de um manancial arquetípico.
Estudando Jung, aprende-se que as imagens arquetípicas não são conceitos filosóficos, mas facetas da própria vida e que elas são conectadas ao indivíduo por meio dos complexos, os quais, por sua vez, são constelados por afetos e emoções. É preciso, portanto, no processo da psicoterapia, estimular o acesso a essas imagens, e os principais veículos são os sonhos, os sintomas e os estímulo às atividades criativas e artísticas, principalmente a imaginação ativa. As artes plásticas, a poesia, a modelagem e demais expressões das artes plástica vêm sendo utilizadas desde Jung. A música, porém, não vem tendo a mesma atenção, seja na produção científica do campo junguiano, seja na prática clínica.
Um encontro entre Jung e a pianista e depois terapeuta-chefe da Clínica Langley-Porter, de São Francisco, Margaret Tilly, em 1956, narrado no livro Entrevistas e Encontros, no capítulo intitulado “A terapia da música”, deixa essa questão mais clara, com as palavras do próprio Jung. Depois de uma boa conversa, ele solicitou que Margaret lhe mostrasse como seria, na prática, uma sessão de “terapia musical”. Depois de duas horas, entremeadas de demonstrações de Margaret e de inúmeros questionamentos de Jung, ele exclamou:
Mas isto abre todo um novo campo de pesquisa com que eu nem mesmo sonhara! Por causa do que você me mostrou esta tarde… não só o que me disse, mas o que eu realmente senti ouvindo-a… acho que doravante a música deve ser uma parte essencial de toda a análise. Isso alcança o material arquetípico profundo que nós podemos atingir, por vezes, em nosso trabalho analítico. É extraordinário.
(McGUIRE & HULL, 1981, p. 248)
Para Joel Kroeker, analista junguiano e pesquisador canadense que utiliza a música em seu setting:
Matrizes musicais arquetípicas inerentes nos conectam como seres humanos a essa ponte de afetos e nos permite acessar sentimentos que não acessaríamos de outra maneira. Imagens musicais primordiais que existem na natureza como o tom musical ascendente ou descendente, como, o canto dos pássaros, a oposição de som versus silêncio, sons musicais crescendo, accelereando, tempo crescente, ou ritardando, tempo decrescente, causam um impacto psíquico em nós. A relação entre estes vários elementos sônicos primordiais e seu impacto no reino da música nos fornece uma matriz poderosa para viabilizar a comunicação, a inter-relação e a autocompreensão.
(KROEKER, 2022, p. 46)
A música toca instâncias profundas e pode ser a trilha sonora de um sonhar acordado (KROEKER, 2022), cujas emoções são tocadas de forma, às vezes, arrebatadora. Esse arrebatamento (JUNG, 2006) seria um tipo de espírito que age nas aparições imagéticas estimuladas pela música.
A música, portanto, pode ser entendida como uma objetivação do espírito, que nem expressa conhecimento no sentido usual, lógico-intelectual, nem se realiza materialmente, mas significa uma representação manifesta dos contextos mais profundos e da mais inabalável regularidade. Neste sentido, a música é espírito, e espírito que leva a lugares escuros e remotos, não mais acessíveis à consciência, e cujos conteúdos praticamente não podem mais ser concebidos com palavras – mas sim através de números, por estranho que pareça – e também ao mesmo tempo e sobretudo através de sentimento e sensibilidade. Este fato aparentemente paradoxal mostra que a música tem condições de permitir o acesso a profundezas onde o espírito e a natureza são ainda ou novamente um […].
( JUNG, 2006, p. 58)
A música teria esse poder de trazer conteúdos desse lugar arquetípico, onde tudo é o um. O lugar onde a individualidade se dissolve nas águas profundas do inconsciente coletivo. É desse ambiente abissal que surgem as imagens carregadas de afetos e emoções. A música poderia ser, então, uma chave que ajudaria a abrir o portal de onde viriam as imagens do inconsciente coletivo. Isso descortinaria toda uma nova possibilidade de atuação no setting analítico, ampliando as possibilidades e as ferramentas de auxílio ao acesso a esses conteúdos. É justamente a capacidade de mobilização das emoções, tão presente na música, essa possível força motriz e geradora de imagens.
É certo que a música, bem como o drama tem a ver com o inconsciente coletivo; […] De certa forma, a música expressa o movimento dos sentimentos (ou valores emocionais) que acompanham os processos inconscientes. O que acontece no inconsciente coletivo é por sua natureza arquetípico e os arquétipos têm sempre uma qualidade numinosa que se manifesta na acentuação do emocional. A música expressa em sons o que as fantasias e visões exprimem em imagens visuais.
(JUNG, 2002, p. 150)
Como fora demonstrado anteriormente, haveria um potencial da música e de sua utilização no setting junguiano, no sentido de sua capacidade de induzir o surgimento de imagens mentais.
Jung, em Estudos alquímicos (JUNG, 2013f), afirma que os conteúdos que “tudo que se torna inconsciente é imagem e que imagem é alma”. Tais imagens seriam uma versão concentrada de toda situação da psique, não somente dos conteúdos inconscientes e diz respeito, também, ao recorte do momento dessa situação psíquica, e não necessariamente de sua totalidade atemporal, mas da interrelação entre conteúdos conscientes e inconscientes e, principalmente, do material constelado (JUNG, 2013l).
Pode-se concluir que a pergunta lançada no início desse artigo é respondida ao longo dele pelas citações do próprio Jung, em especial da declaração feita no encontro com Margaret Tilly, e que é deveras importante a utilização da música no setting terapêutico. Há, no entanto, um vasto campo ainda aberto ao aprofundamento dos estudos de cunho científico da utilização da música na Psicologia Analítica. Que a música é trilha sonora das histórias de vida pessoais, isso é fato. Torná-la a trilha sonora dos sonhos acordados vem sendo feito com êxito em diversas práticas terapêuticas, mas é tarefa ainda a ser aprofundada e desenvolvida.
Nino Karvan – Analista em formação pelo IJEP
Waldemar Magaldi – Analista Didata
REFERÊNCIAS:
JUNG, C. G. A energia psíquica. Petrópolis: Vozes, 2013a.
JUNG, C.G. Estudo sobre o simbolismo do si-mesmo. 10. Ed. Petrópolis: Vozes, 2013b.
JUNG, C. G. A natureza da psique. Petrópolis: Vozes, 2013c.
__________. A prática da psicoterapia. Petrópolis: Vozes, 2013d.
__________. Estudos alquímicos. Petrópolis: Vozes, 2013f.
__________. Estudos experimentais. Petrópolis: Vozes, 2013g.
__________. O espírito da arte e na ciência. Petrópolis: Vozes, 2013h.
__________. Símbolos da Transformação. Petrópolis: Vozes, 2013i.
KROEKER, Joel. Quando a Psique canta: A música na psicoterapia junguiana. São Paulo: Paulus, 2022.
LEVITIN, Daniel J. A Música no seu cérebro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.
McGUIRE, William e HULL, R.F.C. C. G. Jung: Entrevistas e Encontros. São Paulo: Cultrix, 1981.

