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A queda – um ensaio sobre a anima suicida

anima jung

A queda é um dos livros mais belos de Albert Camus, o texto inteiro pode trazer reflexões constantes para quem lê com atenção. Cada frase parece ser digna de um novo ensaio! E, neste momento em que vivemos o retorno temeroso e desesperado à valores patriarcais, com a primazia do hedonismo e o avanço do capitalismo predatório, a temática desse livro de 1956 não poderia ser mais atual.

A história do personagem principal, Jean Baptiste Clamence, é contada por ele mesmo na forma de um monólogo, onde um outro, aparentemente desconhecido, parece interagir de forma completamente passiva enquanto escuta-o. Prestando atenção na história de Jean Baptiste, poderíamos dizer que ele viveu grande parte da sua vida adulta como a maioria dos jovens de hoje gostaria de viver: “uma vida feliz e de prazeres”. Em suas palavras, vivia com uma convicção de que sua felicidade vinha de um decreto superior, e de que tinha um direito natural à esse estado de constante busca desenfreada pela satisfação:

“Extraordinária, ou não, ela (a convicção) me ergueu durante muito tempo acima do tedioso do dia a dia, e fiquei planando literalmente, durante anos, dos quais, para dizer a verdade, ainda tenho saudades. Planei até a noite em que… Mas não, isso é outro assunto que deve ser esquecido. Aliás, talvez eu esteja exagerando. Sentia-me a vontade em tudo, é bem verdade, mas, ao mesmo tempo, nada me satisfazia. Cada alegria fazia com que desejasse outra. Ia de festa em festa. Chegava a dançar noites inteiras, cada vez mais louco com os seres e com a vida.”

Não seria natural que os jovens se comportassem dessa maneira? Talvez, mas sem exageros, seja esse mesmo o caminho natural do ser humano. Mas como diz Jung, muitas vezes em sua obra, em algum momento receberemos o chamado do Self para a mudança e para a busca de um significado para nossa existência. Esse chamado poderá vir de infinitas maneiras, e só a história individual poderá determinar qual será. Porém, quando ele acontecer, teremos visão, escuta ou olfato para percebê-lo? Ou nossos olhos estarão cegos com tantos estímulos, nossos ouvidos surdos com a música exageradamente alta e nossos narizes tapados com a poluição que nós mesmos decidimos cheirar?

O que preocupa nos dias de hoje, não é que os jovens procurem pela satisfação de seus prazeres, mas sim que essa busca seja insaciável e extrema, e que não haja nenhuma preocupação com o equilíbrio. Vivemos na sociedade do mais, do melhor, do para frente, para cima e para fora, e esquecemos – ou nem aprendemos – que todos os extremos fazem parte de um mesmo espectro. A natureza, de forma enantiodrômica, irá cobrar por esses excessos. Normalmente, quando isso acontece, as pessoas estão tão anestesiadas que nem conseguem perceber que, o que precisam, é olhar para dentro de si. Ao invés disso, procuram cada vez mais o torpor, com mais e mais estímulos externos.

E os velhos! Os nossos velhos estão na mesma corrida competitiva e do excesso que esses jovens insaciáveis. Não são mais sinônimo de sabedoria e experiência. São concorrentes, querem acumular ao invés de dividir, são territorialistas ao invés de entender que somos parte do mesmo espaço, que foi emprestado, transitoriamente, enquanto somos matéria. Presos na dimensão material, não entram em contato com suas almas.

Voltando para a história de Jean Baptiste, advogado bem-sucedido, se mostrava um gentleman nas ações do dia a dia. Ajudava os cegos atravessarem a rua, dava informações à turistas perdidos e esmolas aos menos afortunados. Sua cortesia era impecável! Mais tarde, contando sua história, e um pouco mais consciente do que havia sido no passado, Jean Baptiste descreve o que ele foi, explicando qual deveria ser sua insígnia, se essa fosse honesta: “…eu conheço a minha: tem duas faces, um Janus* encantador e, por cima, o lema da casa: ‘Não confie. E nos meus cartões de visita: ‘Jean Baptiste Clamence, ator.”

Jean Baptiste viveu um caso clássico de identificação com a persona, atuava suas boas ações esperando que o público o saudasse e o venerasse. Não agia de uma maneira servil conectada com o todo, disfarçava suas verdadeiras intenções de controle através dessas atitudes que pareciam bondosas. Era advogado de formação, mas atuava na vida com hábil falsidade artística.

“Sabe, pouco tempo depois da noite de que lhe falei, fiz uma descoberta. Quando deixava um cego sobre a calçada onde eu o tinha ajudado a aterrissar, saudava-o. Evidentemente, esse cumprimento não lhe era destinado, ele não o podia ver. A quem, pois, se dirigia? Ao público. Depois da representação, as mesuras.”

Mais uma vez, podemos refletir o quanto agimos como Jean Baptiste no nosso dia a dia tedioso. O quanto atuamos para conseguir atenção do público, seja ele qual for: família, amigos, parentes, colegas de trabalho e acima de tudo, parceiros eróticos. Me parece que vivemos o jogo das personas de uma maneira muito mais intensa do que aceitamos, sequer, pensar. E, nos dias de hoje, com a vida digital, é ainda mais fácil! A vida nas redes sociais é estática – apesar de parecer mudar constantemente com falsas novidades – e não mostra o movimento real do que é o indivíduo em sua realidade e inteireza. O jogo das personas é ainda mais fácil de ser jogado na internet.

Mas que noite foi essa, que Jean Baptiste insiste em citar, mas não descreve com precisão até mais ou menos a metade de seu relato? Antes de falar dessa noite, temos que olhar para a sombra de Jean Baptiste e em como ela se manifestava principalmente nos relacionamentos com as mulheres. Em suas próprias palavras:

“O meu relacionamento com as mulheres era natural, fácil, descontraído, como se diz. Não havia astúcia alguma, ou então, apenas aquela maneira ostensiva, que elas consideram como uma homenagem. Amava-as, segundo a expressão consagrada, que é o mesmo que dizer que nunca amei nenhuma.”

Nosso aventureiro usava as mulheres. Diz claramente que ficava confuso se o que buscava era prazer ou prestígio, mas podemos afirmar com certeza que não era o amor. Era atraído pelo jogo, seduzia utilizando sua vantagem física – da qual se gaba com veemência durante seu relato – e vivia pela sensualidade. Brincava com as mulheres, e, principalmente quando percebia que alguma delas estava apaixonada, a tratava ainda mais como um objeto. A fazia sofrer pelo seu próprio prazer, a controlava com seu poder de sedução. Dava o suficiente para mantê-la sob seu controle, mas nunca mais do que isso. Esse comportamento imediatista e descartável de Jean Baptista parece se consolidar cada vez mais nos dias de hoje. Jovens e velhos se usam por apenas uma noite, por apenas algumas horas, em relações líquidas, como diria o sociólogo Zygmunt Bauman. Vivemos assim a descentralização do capitalismo. Agora cada um acumula, não somente riquezas, mas também números, sem valor, de parceiros, “curtidas” e “visualizações” que não contribuem em absolutamente nada para a expressão da alma. Com relações cada vez mais vazias, vivemos uma crise de identidade generalizada, vivemos a falta de referência e do sentimento de pertencimento. Somos zumbis andando completamente sem rumo e sem propósito.

Mas o universo ainda nos dá chances de mudança, e no caso de Jean Baptiste, essa chance apareceu na tal noite. Esse (quase) encontro, não poderia ocorrer durante o dia, precisava ser na escuridão. A natureza finalmente busca o equilíbrio e cobra a conta de uma vida de superficialidades e desprezo com o outro, com o sagrado e especialmente com o feminino, e essa conta só poderia ser cobrada por sua anima. Após deixar mais uma de suas mulheres descartáveis em casa, Jean Baptiste caminhou só.

“Sentia-me bem com esta caminhada, um pouco entorpecido, o corpo acalmado, irrigado por um sangue suave como a chuva que caía. Na ponte, passei por detrás de uma forma debruçada sobre o parapeito e que parecia olhar o rio. De mais perto, distingui uma mulher nova e esguia, vestida de preto. Entre os cabelos escuros e a gola do casaco, via-se apenas uma nuca, fresca e molhada, que me sensibilizou. Mas segui meu caminho, depois de uma hesitação. No fim da ponte, peguei o cais, em direção a Saint-Michel, onde eu morava. Já havia percorrido uns cinquenta metros, mais ou menos, quando ouvi o barulho de um corpo que cai na água e que, apesar da distância, no silêncio da noite, me pareceu grande. Parei na hora, mas sem me voltar. Quase imediatamente, ouvi um grito várias vezes repetido, que descia também o rio e depois se extinguiu bruscamente. O silêncio que se seguiu na noite paralisada pareceu-me interminável. Quis correr e não me mexi. Acho que tremia de frio e emoção. Dizia a mim mesmo que era preciso agir rapidamente e sentia uma fraqueza irresistível invadir-me o corpo. Esqueci-me do que pensei então. ‘Tarde demais, longe demais…, ou algo do gênero. Escutava ainda, imóvel. Depois, afastei-me sob a chuva, às pressas. Não avisei ninguém.”

O Self deu a Jean Baptiste a chance de se salvar. Enviando sua anima como portadora de uma mensagem simbólica, apresentou-lhe uma escolha crucial. Mas Jean Baptiste não percebeu o chamado. Entorpecido pelos exageros, não enxergou, não ouviu e não pôde sentir o cheiro porque vivia inebriado, absorto e anestesiado.

Naquela noite, sua anima, cansada de tantos maus tratos, de tanto desprezo e descaso, se atira no rio Sena. Jean Baptiste ainda sentiu, por um momento, que havia algo errado, mas, tomado por seu egoísmo e preguiça, não tomou ação. E assim começou a sua própria queda.

A anima é a expressão da alma masculina, e é feminina. Ela deveria ser o contraponto da vida consciente do homem. É a expressão de Eros, da relação, da ligação e da contemplação. Um homem sem anima é um homem desalmado. E não podemos esquecer, também, de seu papel como mensageira, como psicopompo, que faz a ponte entre a consciência e o inconsciente. Nos contos de fadas, a anima pode aparecer como a princesa aprisionada, que precisa ser salva pelo herói para que este salve a si mesmo, e encontre assim a felicidade. É através desse encontro que se faz possível a realização da sizígia, a integração dos opostos. Não foi o caso de Jean Baptiste.

Até então Jean Baptiste se acreditava perfeito. Porém, a partir daquele momento, surgiu em seu ser uma culpa tão grande e pesada que o faria cair em um abismo em si mesmo, simbolicamente e literalmente. Caia em seus pensamentos – como poços sem fundo – e em lugares públicos também, tropeçava como se tivesse tomado uma rasteira. Nunca mais seria o mesmo. Perdeu sua vontade de viver, não conseguia mais sentir prazer nas coisas que fazia, não sentia mais o gosto da vida, enlouqueceu. Vivia entre uma febre e outra, com alguns poucos momentos de lucidez. Se tornou um errante, nem conseguia mais exercer sua profissão. Passou a sobreviver apenas, sua existência sem sentido.

No final do livro, fica claro que Jean Baptiste conversa consigo mesmo o tempo todo na narrativa, nunca houve um outro. Foi sempre um diálogo com alguma personalidade de sua própria psique, para a qual ele tenta confessar sua história e sua culpa. Tenta também, de uma maneira desesperada, reviver de alguma forma o momento que determinou sua queda sem fim.

“Ah, eu já suspeitava, veja bem. Esta estranha afeição que eu sentia pelo senhor fazia sentido, portanto. O senhor exerce em Paris a bela profissão de advogado! Eu bem sabia que éramos da mesma raça. Não somos todos semelhantes, falando sem cessar e para ninguém, sempre confrontados pelas mesmas perguntas, embora conheçamos de antemão as respostas? Conte-me, então, eu lhe peço, o que lhe aconteceu uma noite no cais do Sena e como conseguiu nunca mais arriscar a vida. Pronuncie o senhor mesmo as palavras que, há anos, não param de ressoar nas minhas noites e que eu direi, enfim, pela sua boca: ‘ó jovem, atire-se de novo na água, para que eu tenha, pela segunda vez, a oportunidade de nos salvar a ambos!”

A história não é uma aventura hollywoodiana com final feliz, é, na verdade, uma tragédia. O herói não salva a donzela e não salva a si mesmo. Vive parte morto, louco, cindido e tomado por seus complexos. Sem sua anima não será possível integrar seus conteúdos inconscientes, não será possível realizar a coniunctio. E apesar de pedir para si mesmo uma segunda chance, se a tivesse, não a aproveitaria, como deixa claro nas últimas linhas de seu relato.

“Imagine, caro colega, que nos levem ao pé da letra? (se refere aqui a uma possível segunda chance de salvar aquela mulher) Seria preciso cumprir. Brr…! A água está tão fria! Mas tranquilizemo-nos! É tarde demais, agora, será sempre tarde demais. Felizmente!”

* Janus é uma divindade romana, que tem duas faces, uma voltada para o passado e outra para o futuro.

Jose Luiz Balestrini Junior, ser humano, psicólogo, especialista em psicologia junguiana pelo IJEP, analista junguiano em formação pelo IJEP e Sifu (mestre) de Kung Fu, e-mail: balestrini@lungfu.com.br. Atende e dá aulas na Zona Sul de São Paulo. Av. Ibijau, 236 – Moema – Fone: (11) 98207-7766

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