“A adolescência é um período do desenvolvimento caracterizado pelo luto e pela angústia da perda. Uma sensação iminente de perda faz parte do pano de fundo da luta para deixar para trás a infância e se tornar menos dependente das figuras parentais” (FRANKEL, 2021, p. 165).
De acordo com Jung, a personalidade existe desde o indivíduo criança, porém seu desenvolvimento se dá ao longo da vida e por meio dela. “Atingir a personalidade não é tarefa insignificante” (2021, pg. 182). E de forma alguma podemos dissociá-la da adolescência. Pelo contrário, as experiências vividas dos 14 aos 21 anos são determinantes para o desenvolvimento do complexo do eu, que é mutável e desconhece vários aspectos de si mesmo que nunca tomou conhecimento.
Podemos dizer que, historicamente, a adolescência é uma fase do desenvolvimento humano de muitos desafios e mudanças, física e emocionais. No entanto, atualmente, temos observado dados cada vez mais alarmantes no que se refere à saúde mental dos nossos adolescentes.
De acordo com pesquisa do Datafolha, divulgada no final de 2022, 8 a cada 10 brasileiros, de 15 a 29 anos, apresentaram recentemente algum problema de saúde mental. O uso excessivo de álcool e drogas ilícitas e tantos outros comportamentos autodestrutivos parecem ter se tornado a marca de uma juventude que não só enfrenta graves problemas psíquicos, como parece seguir sem orientação, sem rumo e sem rituais de iniciação.
Nessa perspectiva, podemos nos perguntar: Onde estão os rituais de iniciação da adolescência? Será que devemos considerá-los algo primitivo/arcaico para os dias atuais? Será que a juventude de hoje não necessita mais de ritos de passagem?
Na visão da psicologia analítica, entendemos que o impulso à iniciação é algo arquetípico e compulsório, portanto, inerente à vontade consciente do ego. É coletivo e inconsciente.
“Rimos da superstição primitiva, achando que somos superiores a isso, mas esquecemos que este pano de fundo do qual zombamos como se fosse museu de coisas estúpidas, tem uma influência tão temível sobre nós quanto sobre os primitivos. […] o que acontece é que damos nomes diferentes a tudo isso.”
(JUNG, 2017, pg. 19).
Para Jung, os arquétipos, presentes no inconsciente coletivo, não podem ser explicados a partir de uma concepção individual. São aspectos de toda vida, dos primórdios até os dias atuais. “É o pressuposto e a matriz de todos os fatos psíquicos e por isto exerce também uma influência que compromete altamente a liberdade da consciência […]” (2020, pg.58).
O fato é que, independente de como nomeamos esse “chamado ritualístico”, ele acontece. A adolescência é um novo despertar para a vida que nos convida a uma tentativa de iniciação, a vivências transformadoras e evolutivas. Há uma busca de uma nova visão de mundo.
“[…] os temas de iniciação permanecem vivos sobretudo no inconsciente do homem moderno… em seu ser mais profundo, o homem moderno ainda é capaz de ser afetado por cenários ou mensagens de iniciação.”
(ELIADE apud. FRANKEL, 2021, p. 187).
Os ritos de passagem não deixaram de existir.
A realidade é que os adolescentes estão criando os seus próprios rituais, experienciando de maneira inconsequente e perigosa, processos de transição que de alguma forma tragam sentido para esse novo “eu” que surge nessa fase do desenvolvimento da personalidade. Segundo Frankel, quando a sociedade sublima os rituais de iniciação, tão importantes para psique humana, os adolescentes tentam fazer por conta própria (Cf. FRANKEL, 2021, p.87).
Nessa perspectiva, proponho um novo olhar para esses padrões autodestrutivos do adolescente como uma tentativa, desesperada e solitária – sem um condutor experiente -, na separação do seu lado infantil e identificado com os pais para a nova fase que surge.
Sobre a puberdade, Jung aborda as seguintes dificuldades vividas pelos jovens:
“O começo da puberdade também opera mudanças consideráveis na aparência do corpo e em seu metabolismo […]. Da mesma forma, sua psique é afetada e tirada de seu equilíbrio […]. Por longo tempo, as ilusões impossibilitam uma estabilidade e maturidade do julgamento.”
(2017, p. 217).
Se compreendemos que o ritual de passagem é uma necessidade da psique humana e, talvez, a adolescência seja a fase de maior mudança de corpo, alma e espírito, vivida simultaneamente e abruptamente pelo indivíduo, como permitir que os jovens experienciem essa transição sem a presença, a atenção e a condução de um adulto experiente e com ego estruturante?!
É comum em roda de pais e cuidadores ouvirmos que os jovens estão cada vez mais isolados por conta do mundo digital. Todavia, na outra ponta desse cabo de guerra, encontramos adultos que renunciaram à presença, física e afetiva, negando a escuta e aumentando cada vez mais o abismo entre as gerações. No final, entregamos os adolescentes ao impulso da iniciação numa tentativa visceral de sentir e transformar, levando o que deveria ser simbólico para o literal, ignorando a demanda urgente de se testar o mundo através das suas próprias ações.
De acordo com HILLMAN (apud FRANKEL, 2021, p. 91), o sofrimento vivido nos rituais de iniciação leva o iniciado para outro plano, onde a inocência infantil dá lugar à dor e a necessidade de proteção. Assim, o indivíduo faz a passagem da infância para a vida adulta. Uma evolução compulsória, mas que merece e deve ser conduzida por um adulto experiente capaz de dar contorno e limite.
“A adolescência como a conhecemos é um fenômeno moderno. Em sociedades antigas e culturas tribais, os adultos em geral deixavam rapidamente a infância por meio da participação em ritos de puberdade. […] os adolescentes modernos devem tentar dizer adeus à infância sem o benefício desses ritos de passagem oferecidos pela sociedade. […] Hoje, nossos jovens se empenham em alcançar a vida adulta de formas bastante perigosas, participando de seitas religiosas, abusando de substâncias cada vez mais nocivas, exibindo sintomas de anorexia, automutilação e tentativa de suicídio.”
(GENTRY apud FRANKEL, 2021, p. 88).
A nossa sociedade contemporânea desejou tanto se distanciar daquilo que consideramos arcaico e primitivo que acabamos unilateralizados.
Nesse contexto, estamos à margem da consciência individual, agindo sem consciência crítica sobre os nossos próprios atos. Porém, precisamos compreender que os rituais emergem a partir de uma necessidade coletiva para que a psique seja capaz de assimilar tantas mudanças que ocorrem durante a adolescência. Logo, a falta de espaço para que os jovens vivenciem esses ritos de passagem cria um lugar muito perigoso, solitário e autodestrutivo.
Nessa perspectiva, o analista, dentro do setting terapêutico, pode oferecer um espaço de escuta e reflexão individual, análogo aos rituais, para elaboração desses sentimentos, angústias e emoções que a adolescência provoca. Um local onde o adolescente pode se expressar e experienciar o simbólico dando sentido a essas transformações.
A escuta no processo terapêutico do adolescente
Uma vez que percebemos a solidão dos jovens e que é proporcional a intensidade de suas experiências de vida, o acompanhamento psicológico pode ser o espaço de acolhimento e contenção nessa etapa do desenvolvimento. O setting terapêutico pode e deve se tornar o lugar seguro para o compartilhamento de suas histórias. Nesse processo de escuta ativa do analista, ocorre também a escuta de si mesmo por parte do jovem em processo de análise, ou seja, a escuta da própria voz do adolescente que, muitas vezes, foi silenciada por conta dos valores morais, familiares e culturais. Segundo Frankel, precisamos estar atentos às imagens primordiais que caracterizam a adolescência:
“Choro, solidão, autopiedade, pensamento de morte, isolamento e longos períodos soturnos de tristeza são parte integrante da experiência adolescente, e estarmos atentos à prevalência dessas emoções e encontrar formas de mobilizá-las terapeuticamente diminui nossa tendência em patologizar em excesso esses estados mentais.”
(2021, p.112).
A relação adolescente-terapeuta, se bem estabelecida, pode oferecer ao jovem a possibilidade de conexão direta e sem censura. Revelando e reelaborando sentimentos conflitantes, carências, rejeição, medos e, também, potências que ainda não foram descobertas e, por isso, não foram desenvolvidas. Precisamos limpar nossas mentes de ideias pré-concebidas e rótulos que estigmatizam a adolescência e abrir a nossa alma para os gritos desesperados por socorro.
Clarisse Grand Court – Analista Junguiana em Formação IJEP
Maria Cristina Mariante Guarnieri – Membro Analista Didata IJEP
Referências:
FRANKEL, Richard. A psique adolescente: perspectivas junguianas e winnicottianas. Edição Digital. Petrópolis: Vozes, 2021.
JUNG, Carl Gustav. A natureza da psique. 13.ed. Petrópolis: Vozes, 2020.
_____, Carl Gustav. Civilização em Transição. 5.ed. Petrópolis: Vozes, 2017.
_____, Carl Gustav. O desenvolvimento da personalidade. 13.ed. Petrópolis: Vozes, 2021.
RENNÓ, Joel. Como anda a saúde dos jovens. Estadão. https://www.estadao.com.br/emais/joel-renno/como-anda-a-saude-mental-dos-jovens/ . Acessado em 30 de outubro de 2023
Site Faculdade de Medicina da USP. Pandemia é responsável por cerca de 36% dos casos de depressão em crianças e adolescentes. https://www.fm.usp.br/fmusp/noticias/pandemia-e-responsavel-por-cerca-de-36-dos-casos-de-depressao-em-criancas-e-adolescentes#:~:text=14%2F10%2F2021-,Pandemia%20%C3%A9%20respons%C3%A1vel%20por%20cerca%20de%2036%25%20dos%20casos,depress%C3%A3o%20em%20crian%C3%A7as%20e%20adolescentes&text=Estudo%20realizado%20pela%20Faculdade%20de,e%20ansiedade%20durante%20a%20pandemia. Acessado em 30 de outubro de 2023.
Site UNICEF. Selo UNICEF tem recorde de adesões: 2.023 municípios em 18 estados. https://www.unicef.org/brazil/comunicados-de-imprensa/selo-unicef-tem-recorde-de-adesoes-2023-municipios-em-18-estados. Acesso em: 30 outubro de 2023.
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