O poeta Ferreira Gullar disse que “a arte existe porque a vida não basta”.
O ritmo acelerado do fluxo da vida faz com que sejamos diariamente desafiados a lidar com inúmeras frustrações: boletos para pagar, filhos para educar, trânsito complicado, ônibus lotado. Por isso, não é raro sentimos vontade de pequenos momentos para aliviar a dor. São nestes momentos que comumente recorremos à arte.
Seja na forma da música que nos anima; novelas, filmes e séries que nos retratam (ou não); a literatura que nos leva a lugares e situações inexploradas; museus, teatro ou exposições, a arte se faz presente.
Jung também era amante da arte e fez profunda análise em seu ótimo livro O espírito na arte e na ciência (2013, OC 15).
Porém, a forma que a psicologia analítica lida com a arte pede atenção, pois não devemos nos limitar aos critérios estéticos da obra e sim criar um diálogo com a abrangência psíquica. Jung (OC 15, §99) diz que “seja o que for que a psicologia possa fazer com a arte, terá que se limitar ao processo psíquico da criação artística e nunca atingir a essência profunda da arte em si”.
Isso quer dizer que, para ele, a arte não é apenas expressão da consciência do artista, está muito além. No desenvolvimento de uma obra existe um pano de fundo inconsciente, o qual permanece ativo e se revela pelas influências sobre os conteúdos da consciência. Jung (OC 15, §107) fala que “a verdadeira obra de arte tem inclusive um sentido especial no fato de poder se libertar das estreitezas e dificuldades insuperáveis de tudo o que seja pessoal, elevando-se para além do efêmero do apenas pessoal.”
Jung pondera que embora os artistas façam escolhas em relação aos seus materiais, desenvolvam métodos lógicos de execução e se dediquem a um estilo particular de construção ou desconstrução racional e dialético, ao criar suas obras são influenciados pelo inconsciente.
O artista possui uma intenção consciente e definida, considera cuidadosamente os possíveis efeitos em seu trabalho, observa os resultados aplicados, e mantém criterioso julgamento ao escolher com inteira liberdade o método e a expressão desejada. Para Jung, o artista “é a própria realização criativa e está completamente integrado e identificado com ela com todos os seus propósitos e todo o seu conhecimento (OC 15, §109).
Entretanto, o fluxo do insconsciente do artista também move seu impulso criativo.
É comum alguns artistas relatarem que o processo criativo os toma, que algo apodera de suas almas e nada mais resta a não ser colocarem-se a serviço da obra.
Michelangelo dizia que “apenas tirou da pedra de mármore tudo que não era o Davi!”[1].
Ferreira Gullar dizia que “sobre poesia eu não penso, eu simplesmente faço: a minha poesia nasce do espanto”[2].
Este ímpeto criativo que eclode na alma do artista é chamado de complexo autônomo por Jung.
A obra inédita na alma do artista é uma força da natureza que se impõe, ou com tirânica violência ou com aquela astúcia sutil da finalidade natural, sem se incomodar com o bem-estar pessoal do ser humano que é o veículo da criatividade. O anseio criativo vive e cresce dentro do homem como uma árvore no solo do qual extrai seu alimento. Por conseguinte, faríamos bem em considerar o processo criativo como uma essência viva implantada na alma do homem.
A psicologia analítica denomina isto complexo autônomo. Este, como parte separada da alma e retirada da hierarquia do consciente, leva vida psíquica independente e, de acordo com seu valor energético e sua força, aparece, ou como simples distúrbio de arbitrários processos do consciente, ou como instância superior que pode tomar a seu serviço o próprio Eu. Portanto, o poeta que se identifica com o processo criativo é aquele que diz sim, logo que ameaçado por um “imperativo” inconsciente. (OC 15, §115 – grifos meus)
Sendo assim, se por um lado a execução de obras de arte tem a intencionalidade da consciência, por outro trata-se de acontecimento de natureza inconsciente que se impõe, teimando em impor sua forma e efeito.
O artista é uma pessoa de seu tempo, possui suas vivências e conflitos, está imerso no inconsciente coletivo e envolvido com o Espírito da Época.
Ele participa de uma espécie de participation mystique, ao canalizar sua consciência, inconsciente pessoal, inconsciente coletivo e situações político-sociais-culturais-religiosas de seu tempo.
Ainda que o artista tenha suas particularidades, sua psique criativa também constitui um assunto coletivo e não pessoal. Isto porque a arte é inata como um instinto que dele se apodera, fazendo-o seu instrumento. Enquanto pessoa, tem seus temperamentos, opiniões e objetivos; mas enquanto artista ele é coletivo, portador e plasmador da alma inconsciente e ativa da humanidade.
O segredo da criação artística e de sua atuação consiste nessa possibilidade de reimergir na condição originária da participation mystique, pois nesse plano não é o indivíduo, mas o povo que vibra com as vivências; não se trata mais aí das alegrias e dores do indivíduo, mas da vida de toda a humanidade.
Por isso, a obra-prima é ao mesmo tempo objetiva e impessoal, tocando nosso ser mais profundo. É por esse motivo também que a personalidade do poeta só pode ser considerada como algo de propício ou desfavorável, mas nunca é essencial relativamente à sua arte.
Sua biografia pessoal pode ser a de um filisteu, de um homem bom, de um neurótico, de um louco ou criminoso; interessante ou não, é secundária em relação ao que o poeta representa como ser criador (OC 15, §162).
Conforme Jung, o inconsciente coletivo é constituído pela soma dos instintos e arquétipos (OC 8/2, §281).
Arquétipos são os resíduos psíquicos de inúmeras vivências do mesmo tipo. Elas descrevem a média de milhões de experiências individuais. Apresentando, dessa maneira, uma imagem da vida psíquica dividida e projetada nas diversas formas do pandemônio mitológico (OC 15, §127).
Jamais devemos confundir arquétipos com imagens arquetípicas. A essência do arquétipo não é suscetível de conscientização, já as imagens arquetípicas são identificadas facilmente pela consciência. Por isso, os arquétipos são expressos via imagens simbólicas.
Símbolo e arquétipo
A palavra “símbolo” vem do grego sum + ballo, que significa “colocar junto”, associar uma coisa com a outra, aquilo que une os polos. A ideia primordial de símbolo é algo que tem uma mensagem múltipla com forças contrárias que acabam se unindo e que integram as polaridades.
O símbolo ocorre quando o arquétipo surge no aqui e no agora, podendo de algum modo, ser percebido pela consciência. Para Jung:
“Símbolo não é uma alegoria nem um semeion (sinal), mas a imagem de um conteúdo em sua maior parte transcendental ao consciente.”
JUNG, OC,§114
A psicologia analítica entende o símbolo como a expressão de algo com carga emocional e numinosa, não claramente apreendido pela consciência e prenhe de múltiplos significados, que possibilita estabelecer relações e analogias vindas do inconsciente junto a consciência até então desconhecidos.
Jung (OC 8/1, §88) dizia que “a máquina psicológica, que transforma energia, é o símbolo”.
Portanto, se algo é ou não símbolo, vai depender do ponto de vista e da atitude do indivíduo que o contempla. Para Jung (OC 6, §162), “a essência do símbolo consiste em apresentar uma situação que não é totalmente compreensível em si e só aponta intuitivamente para seu possível significado”. E sua compreensão “exige uma certa intuição que capta, aproximadamente, o sentido desse símbolo criado e o incorpora na consciência.
A linguagem do símbolo é sempre metafórica, poética. Jung acreditava que é preciso poetizar a vida, pois uma vida literal traz rigidez psíquica e empobrecimento de alma. É um movimento antierótico (sem amor, sem Eros).
Desqualificar, literalizar ou apequenar a linguagem simbólica também implica na desvalorização do inconsciente e da subjetividade da psique. O processo simbólico é uma vivência na imagem e da imagem, onde os significados são abundantes e ora pendulares devido a enatiodromia causada pelas polaridades do arquétipo (bom/mal; luz/sombra; feio/bonito, etc).
Jung (1987, p. 262) nos convida a refletir que o inconsciente é capaz de nos comunicar aquilo que, pela lógica, não podemos saber. Ele nos provoca ao dizer que “quanto maior for o predomínio da razão crítica, tanto mais nossa vida se empobrecerá (…)”.
Como o inconsciente é a fonte das forças instintivas da psique, ele encerra as formas ou categorias que as regulam, ou seja, os arquétipos.
Além disso, como o complexo possui um núcleo arquetípico, é preciso abrir um diálogo através de ampliações dos significados simbólicos.
O símbolo pode mediar as diversas contradições e oposições do humano, materializadas em divergências entre o consciente e o inconsciente, atuando como função de compensação. Sendo assim, o símbolo tem uma função de equilíbrio da psique como um todo.
Ao causar esse “diálogo” entre inconsciente e consciência, o símbolo atua como função transcendente, ou seja, nesta “união” algo novo é percebido e/ou criado. Pois o símbolo reúne em sua constituição todas as possibilidades de compreensão e os opostos em uma unidade não fragmentada.
A arte reverbera, amplifica e revela a voz do seu tempo.
Por isso, os temas arquetípicos e por vezes sombrios vem à tona e são descortinados. Temáticas como morte, casamento, depressão, nascimento, guerra, amor, ciúmes, religião, sexualidade, etc ganham profundidade e reflexões nas produções artísticas.
Jung (OC 15, §185) se refere ao “simbólico” como “uma essência poderosa e inconcebível que reside oculta no objeto, seja espírito ou mundo; e que o homem faz desesperados esforços para enquadrar numa expressão o segredo que lhe escapa.”
Por isso deve-se “dirigir ao objeto com todas as suas forças mentais e penetrar todos os véus reluzentes, a fim de trazer à superfície o ouro que jaz oculto nas desconhecidas profundezas”.
Uma das belezas que a Psicologia Analítica nos proporciona é mudança na forma de olhar, sentir e perceber a vida.
Por trás de cada processo, dor e história existe uma infinidade de símbolos que permitem profundos aprendizados e que, quando ampliados, geram saltos de consciência.
A forma que a arte nos invade nem sempre é consciente e temos uma sensação de que ela nos ajuda a minimizar as complexidades da vida. Por outro lado, a arte também pode nos causar incômodos, evidenciar desconfortos, provocar furor. De certa forma, buscamos obras que compensem nossas fragilidades internas e nos ajudem a suprir ou traduzir nossos aspectos conscientes ou inconscientes.
Quando somos impactados por alguma manifestação artística, experimentamos emoções intensas, pois a arte pode despertar algo que já sentíamos, mas não tínhamos percebido claramente. De certa forma, algumas obras de arte ativam nossos complexos e, ao sermos “tomados” por elas, podemos projetar no objeto aquilo que estava constelado em nosso inconsciente.
Devemos fazer uma investigação e nos questionar sem medo das respostas: O que sinto ao olhar este quadro? Por que odeio este personagem?
A imagem arquetípica representada na obra pode expor aspectos positivos e salutares da consciência, evidenciar elementos inconscientes, ampliar a visão periférica do nosso olhar ou podem servir como projeções, revelando nosso material perverso inconsciente, trazendo à tona aquilo que está na sombra e que foi oculto pelo ego.
Jung (OC 15, §184) acreditava que “o artista é sem querer o porta-voz dos segredos espirituais de sua época”. Acrescentando que o significado social da obra de Arte é que: “ela trabalha continuamente na educação do espírito da época, pois traz à tona aquelas formas das quais a época mais necessita.” (OC 15, §130)
Por isso, ao ser tocado por uma obra, também seria importante observarmos o espírito da época de que ela foi feita e dialogarmos com as situações arquetípicas que nos movem. A angústia retratada no quadro O grito de Edward Munch (1893) pode representar a projeção da angústia do artista, do espectador, da sociedade, de uma época:
Edvard Munch, O grito (1893):
Estabelecer o diálogo artístico e as projeções do inconsciente pode nos ajudar a entender melhor a nós mesmos e aos outros, explorando as emoções e os pensamentos que estão presentes. Além disso, podem ampliar nossa compreensão sobre a cultura e a sociedade em que vivemos, uma vez que a arte muitas vezes reflete os valores, as crenças e as tensões em um determinado contexto histórico e cultural.
Por exemplo, em Henry Ford Hospital de Frida Kahlo (1932) talvez retrate muito mais do que o aborto da artista. Numa ampliação simbólica, essa obra poderá dialogar com as dores do feminino, numa potente ampliação e reverberação do desejo não concretizado de ser mãe e as consequências no inconsciente. Também poderá dialogar com a energia arquetípica do feminino que não se realiza e que sangra, jazendo em sofrimento em busca de cura.
Henry Ford Hospital de Frida Kahlo (1932)
Edward Hopper é conhecido por retratar a solidão e o isolamento em suas pinturas. Suas obras muitas vezes apresentam pessoas solitárias em espaços urbanos vazios e silenciosos, o que cria uma sensação de desconexão e alienação.
Por isso, a talvez a solidão representada por Hopper dialogue com a tristeza que cai suave e sem barulho ao chover sob nossos cabelos, esmorecendo os sentidos e apartando a alma.
Morning Sun – Edward Hopper (1952)
Referências:
JUNG, Carl G. A energia psíquica. Petrópolis: Vozes, 2013 – (OC 8/1)
JUNG, Carl G. A natureza da psique. Petrópolis: Vozes, 1986 – (OC 8/2)
JUNG, Carl G. Estudos alquímicos. Petrópolis: Vozes, 2013 – (OC 13)
JUNG, Carl G. Freud e a psicanálise. Petrópolis: Vozes, 2013 – (OC 4)
JUNG, Carl G. O espírito na arte e na ciência. Petrópolis: Vozes, 2013 – (OC 15)
JUNG, Carl G. Símbolos da transformação. Petrópolis: Vozes, 2013 – (OC 5)
JUNG, Carl G. Tipos psicológicos. Petrópolis: Vozes, 2013 – (OC 6)
[1] Disponível em: https://www.istoedinheiro.com.br/esculpindo-talentos-o-que-aprendemos-com-michelangelo-sobre-lideranca/. Acesso em 23 jan. 2023
[2] Disponível em: https://g1.globo.com/pop-arte/flip/noticia/2010/08/arte-existe-porque-vida-nao-basta-diz-ferreira-gullar.html. Acesso em 23 jan. 2023