Certa vez eu estava no vestiário da academia de ginástica depois da aula. Uma mãe, de cerca de uns 45 anos, compartilhava com as amigas uma grande dor. A filha havia passado no vestibular da maior universidade pública brasileira. Na hora de fazer a matrícula, ela havia dito para a mãe-torista: “Mãe, eu te amo, mas daqui em frente eu vou sozinha”. E saltou do carro. Lá foi a mocinha de 18 anos, lépida e faceira, tomando as rédeas de seu destino.
Lembro de ter tido presença de espírito de congratular a mãe estarrecida. “Parabéns, você fez um grande trabalho como mãe. O contrário – se sua filha estivesse colada em você – é que seria um problema”. Talvez tenha suavizado um pouco a dor, não sei dizer. A gente nunca sabe. Tempos depois, ao pensar no fato, me veio de estalo o mito de Deméter e Perséfone, que simboliza bem a ansiedade da separação de mães e filhas.
A raiz do que sabemos deste mito pode ser encontrada no hino à Demeter, atribuído a Homero, que teria vivido no século VII a.C. (HOMERO, 2009). A narrativa começa no Monte Olimpo. Como sintetiza bem Junito Brandão, Deméter era a “deusa maternal da Terra” (BRANDÃO, 2014, p. 165). A sociedade grega era patriarcal e escravagista. Neste contexto, o regente do Olimpo, Zeus, era casado com a ciumenta Hera, mas teve tantos casos extraconjugais que as diversas genealogias gregas não dão conta de organizar. Um deles foi com sua irmã, Deméter, que teve com ele sua única filha, Core – que quer dizer jovem ou virgem.
Deméter literalmente blindou a filha numa eterna primavera, longe de homens e problemas. Se Hera personifica o arquétipo da esposa, Deméter é o da mãe. Certo dia, a jovem estava colhendo flores quando se aproximou de um abismo para colher um narciso. O que Core não sabia é que sua beleza havia despertado o interesse de um tio, Hades, o senhor do submundo. A jovem foi, por assim dizer, tragada para o seio da terra.
Sua mãe ficou desconsolada. Que mãe não ficaria? Por nove dias e noites, segundo o relato de Homero, vagou em vão ansiando por recuperar a filha. A deusa Hécate se apiedou e foi ter com ela, dizendo que nada havia visto. Já o deus solar Hélio, que tudo vê, relatou quem tinha sido responsável pelo rapto.
As queixas de Deméter não moveram uma pena. Desconsolada, decidiu não voltar ao Olimpo, mas também deixou de cuidar da Terra. Como uma anciã, Doso, foi parar em Elêusis, cidade que fica a uns 20 km de Atenas. Lá foi acolhida por uma poderosa família local. Mas uma deusa não perde a majestade e tempos depois o casal percebeu que não se tratava de uma mortal comum (o fato de a terem pego tentando “imortalizar” o filho caçula no fogo fez com que ficassem com a pulga atrás da orelha). Deméter acaba pedindo que lhe construam um belo templo, no qual os gregos realizavam anualmente um festival que celebrava os mistérios eleusinos – um ritual de iniciação que celebrava o mito da mãe e filha.
Sem sua deusa, a terra fica devastada O clamor dos seres humanos e dos deuses amolece Zeus, que negocia com o irmão e pede a Hermes – o mensageiro dos mundos – que fosse ao submundo resgatar Perséfone. Notem que a jovem esposa do deus Hades agora recebe um novo nome, que personifica sua nova persona ou máscara social.
Hades aceita o trato, mas não é bobo. Dá uma romã para a jovem esposa comer antes de partir. Há a tradição de que aquele que comer algo nos mundos subterrâneos não poderá mais sair dele. Hades não diz isto à esposa, claro, mas gosto de pensar que Perséfone sabia muito bem o que aconteceria se provasse daquela fruta, símbolo da fertilidade.
O resultado é que todos têm de ceder um pouco, isto é, suas personas tem de se ajustar à nova realidade. Deméter fica com a filha por nove meses. Hades fica com a esposa por três meses. Contudo, gosto de pensar que Perséfone fica consigo mesmo por 12 meses do ano. Para mim, foi ela quem mais ganhou com a história, pois que a jornada permitiu à jovem perder a inocência da inconsciência em troca da descoberta sobre si mesma.
Meses depois, estava eu no consultório atendendo uma analisanda grávida. Uma das dores da jovem era como ensinaria a filha a se relacionar com os homens. Internamente, eu sorri. O novo papel social que a gestante estava sendo convidada a assumir estava devidamente ativando arquétipos ligados a maternagem. Salve Deméter! Mas a ansiedade a estava levando longe demais. Naquele dia, eu a conduzi gentilmente de volta ao tempo presente e à consciência do seu corpo que se arredondava com suavidade. Por meio da conversa das tramas de tricôs e da vida.
Monica Martinez, analista em formação do IJEP
Referências
BRANDÃO, J. DE S. Dicionário Mítico-Etimológico. Rio de Janeiro: Vozes, 2014.
HOMERO. Hino homérico II: a Demeter. São Paulo: Odysseus, 2009.