Ajax Perez Salvador – Membro Analista Didata do IJEP
Este texto procura traçar aproximações entre as ideias que Judith Butler apresenta em seu livro “Desfazendo Gênero” (2022) e elementos da narrativa Junguiana. Embora usando termos e expressões diferentes pode-se reconhecer em ambas a tentativas de trabalhar núcleos temáticos semelhantes como a tensão entre universal e singular e a tensão constitutiva em todo o vivente entre indeterminação (negatividade) e determinação.
Inicialmente o ensaio de Butler foca no que “pode significar desfazer concepções restritivamente normativas da vida sexual e generificada” (BUTLER, 2022, p.11); aponta que os esquemas de reconhecimento disponíveis “desfazem” a pessoa no momento em que este é concedido ou recusado. (cf. BUTLER, 2022, p.13). Também para Jung a “Identificação é um alheamento do sujeito de si mesmo em favor de um objeto que ele, por assim dizer, assume.” (JUNG, OC-6 §825) e as experiências de identidades poderiam levar a uma objetificação de si mesmo.
Gênero seria “uma espécie de fazer, uma atividade incessante que performamos” (BUTLER, 2022, p.11). Performatividade é descrita como uma sequência de atos, mas não é como se houvesse um ator por trás, pois é o fazer que performativamente constituiria a identidade de gênero, numa prática do improviso, parcialmente não-consciente, que se realizaria numa cena de constrangimento com e para alguém fora.
É possível aproximar esta atividade performativa do que aparece em Jung como Persona. O complexo funcional da Persona seria o conjunto associativo que buscaria adaptação a situações ou objetos vividos com caráter de externalidade (Cf. JUNG, OC-6 §755), quer seja literalmente fora da mente ou mesmo na adaptação à padrões tradicionais, expectativas idealizadas do que se deveria ser em qualquer papel (masculino, feminino, homem, mulher, pai, mãe, filho etc.) ou o que os outros deveriam ser, que seriam vividas como externas.
O complexo funcional da Persona é descrito como uma máscara, um papel que é interpretado para adaptação quer seja no contexto externo ou num padrão tradicional idealizado.
Se ver, ou se identificar como sendo uma persona seria perder-se apenas na adaptação externa na narrativa junguiana. Diversas personas seriam necessárias à adaptação, mas quanto mais utilizada de forma bem-sucedida, reconhecida e valorizada maior o risco de identificação. Esta adaptação externa embora possa levar ao risco de perder-se é considerada essencial tanto em Jung como em Butler, pois “corpos humanos não são experimentados sem recorrer a alguma idealidade” (BUTLER, 2022, p.54) tanto para a experiência do próprio corpo como de outros. A corporificação seria impensável sem uma relação com uma norma ou um conjunto de normas. Também, em Jung, a adaptação externa e o reconhecimento de si e dos outros não seria possível sem as personas. Além disto, em Jung, seria a energia psíquica dirigida para a adaptação externa que regularia para que esta não ficasse apenas na adaptação aos objetos internos ou às experiências vividas. Jung descreve seria desfavorável a unilateralidade tanto para um dos lados como para o outro.
Persona com uma máscara de adaptação à contextos e objetos externos, poderia responder a padrões coletivos, mas não teriam um original, ainda que carregasse traços do que historicamente foi vivido como sendo este núcleo temático. O que se apresenta na configuração presente poderia produzir a fantasia de uma origem. Mas, não haveria acesso a nada “naturalmente”, nenhuma origem naturalmente dada, pois tudo o que é vivido passaria por uma interpretação. Haveria sempre algo que se interpões ao imediatamente dado (Cf. JUNG, OC, 8/2, §195) que seriam os complexos; dando ao vivente uma experiência psíquica que é chamado de psiquificação (Cf. JUNG, OC 8/2, §234).
Por isso ter “uma meta além do homem natural seria exigência para uma saúde da alma” (JUNG, OC-17, §159).
Neste sentido as formas gerais como masculino, feminino etc. já poderiam ser compreendidas como performativas. Assim como Butler afirma: “a cópia ostensiva não é explicada por uma referência à origem, mas a origem é compreendida como performativa tal como a cópia.” (BUTLER, 2022, p.352).
Pode-se aproximar o texto de Butler e a narrativa Junguiana quando esta fala da importância dos complexos e das personas que fazem a função de adaptação ao mundo e aos objetos externos, pois quando não sabe quem se é socialmente, sem as personas a sociabilidade constitutiva ficaria exposta. Para Jung “inicialmente o sujeito encontrar-se-ia inteiramente fundido com as condiçõesdo meio ambiente” (JUNG, OC/17, §106); uma indiferenciação com o mundo. Através do que afeta seriam constituídos os complexos que filtram, dão sentido e significado para os eventos, serviriam como defesa em relação a todas as influências, atravessamentos que a criança estaria exposta nos diversos ambientes. Mas isto mesmo que defende ao dar uma interpretação específica também poderia aprisionar a vida em sua multiplicidade e indeterminação. Aproxima-se de Butler quando ela diz que “Somos desfeitos uns pelos outros.” (BUTLER,2020, p.40).
O contraponto da máscara em Jung seria a experiência interna singular que é inominável, não recorrente e nem mesmo passível de ser conhecida. Haveria também para Butler sempre uma dimensão nos viventes e na relação com outras pessoas que não se poderia conhecer, e esse não conhecer persistiria enquanto condição da existência (Cf. BUTLER, 2022, p.34). Esta dimensão do desconhecido, indeterminado seria o que caracterizaria em Butler a sexualidade, pois ela nunca poderia ser capturada em sua totalidade por qualquer regulação (Cf. BUTLER, 2022, p.35). Sexualidade seria o meio pelo qual alguém seria despossuído. O gênero desfaz aquele que supostamente seria ou portaria um gênero. Gênero seria para e de um outro antes de ser meu (Cf. BUTLER, 2022, p.36).
Butler afirma que a sexualidade não é aquilo que se tem como um atributo, uma disposição ou inclinações, mas um modo de se dispor em relação aos outros e que estar fora de nós mesmo existiria como função da própria sexualidade (Cf. BUTLER, 2022, p.61). Em Jung também aparece que sexualidade e espiritualidade não constituem qualidades próprias, não seriam coisas que poderiam ser possuídas ou apreendidas, mas que tratar-se-iam de forças poderosas, manifestações dos deuses, superiores a voz e existentes em si mesmas (Cf. JUNG, 1963, p.339-340). Também há a referência de que: “(Eros) nunca se deixa apreender numa grosseira terminologia sexual” (JUNG, OC-7, §33). Assim como Butler pode-se entender que não haveria, em Jung, sexualidade “minha”, como se fosse uma propriedade particular, mas algo que se manifesta através de mim, embora apenas o vivente possa ter aquela experiência singular esta nunca seria sua propriedade, mas algo que se apresenta através dele e que o constitui em alguma medida. Seria possível tanto viver como se fosse “eu” quem estou fazendo ou sendo isto ou aquilo, mas também viver como se isto é feito através de mim, através do qual o eu seria instrumento.
Além disto, haveria, na narrativa junguiana uma problematização das noções de toda e qualquer propriedade da personalidade vista como atributos privados. A noção de individualidade como sujeito de propriedade é vista criticamente. Afirma-se que: “a camada psíquica mais profunda sobre a qual se firma a consciência individual é de natureza universal (…)” (JUNG, OC-17, §307); “a personalidade e suas propriedades psíquicas peculiares não representam algo de absolutamente único e singular.” (JUNG, OC-17, §307).
Haveria algo de singular na personalidade que é chamado de individualidade.
A realidade universal é condição prévia para todos, entretanto, toda vez que essa realidade for manifestar-se precisaria de expressar-se por meio de um indivíduo singular; precisa individualizar-se – decorre disto o chamado processo de individuação. Não haveria nenhum atributo, qualidade ou propriedade que fosse particular; todas as determinações seriam universais. O que o vivente teria de singular não seria nada de determinado, mas nada aqui não seria pouca coisa pois seria a vida sensível que é afetada e pulsa, reverbera, ecoa, ressoa em cada um fazendo marcas, criando associações, mas também reconfigurando e indeterminando todo determinado. Somente seria possível uma aproximação da integralidade do vivente através de um paradoxo, uma antinomia como uma determinação indeterminada ou uma indeterminada indeterminação. A integralidade que seria consciente mais inconsciente “só pode ser descrito sob a forma de antinomias.” (JUNG, OC 9/2, §115).
Assim como em Butler haveria para Jung no ser algo de indeterminado que só apareceria em tensão resistindo a toda determinação na consciência. Isto coloca-se em consonância com o que é dito em: “sou outra para mim no exato lugar onde espero ser eu mesma,” (BUTLER, 2022, p.34). E em Jung, a experiência singular ressoa em cada um de forma única, inefável, inominável, incomparável, não recorrente e nem mesmo passível de ser conhecida, pois não caberia na consciência em sua unilateralidade (Cf. JUNG, OC X/1, §493).
É apontado, em Butler, a possibilidade de ir além da norma e isto faria parte do trabalho da fantasia (cf. BUTLER, 2022, p.54).
Fantasia aqui tomada como o que a realidade exclui, que desafia os limites contingentes- fantasia “estabelece o possível como excesso do real;” (BUTLER, 2022, p.55). Também em Jung o excedente apareceria como fundamento. Haveria um excedente da energia psíquica que não conseguiria ser organizado pelos padrões arquetípicos” (Cf. JUNG, OC, 8/1, §91). É usada a metáfora do leito seco de um rio como as marcas históricas, transpessoais, universais, arquetípicas que buscariam organizar as experiências empíricas singulares dando a estas sentidos e significados específicos, determinados; elementos que poderiam ser aproximados da noção de normas no texto de Butler – “Uma norma opera dentro das práticas sociais como padrão implícito de normalização” (BUTLER, 2022, p.75). As normas regeriam a inteligibilidade, permitiria que práticas sejam reconhecidas, impondo mesmo uma matriz que definiria os parâmetros do que estaria dentro e fora do domínio social. Normas seriam as matrizes a partir das quais algo é vivido como tendo sentido e significado e pode-se entender que os padrões arquetípicos da narrativa junguiana fariam função semelhante, sendo considerados determinantes da organização psíquica e configurando complexos associativos. Seriam os complexos associativos organizados por padrões arquetípicos que se interporiam ao imediatamente dado dando as condições para a experiência psíquica de sentido e significado do evento. Butler refere que os corpos não são experimentados sem alguma idealidade, algum enquadramento para a própria experiência, estas estruturas seriam socialmente articuladas e por isso a corporificação é impensável sem relação com normas. (Cf. BUTLER, 2022, p.54). Também ela enfatiza a importância da fantasia como na narrativa Junguiana. A possibilidade para além da norma faz parte do trabalho da fantasia, pois articula o possível para além do que seria meramente real, ou não realizado ou não realizável. Fantasia não seria o oposto da realidade, mas o que a realidade excluiria. (Cf. BUTLER, 2022, p.54-55). Fantasia permitiria imaginar a nós mesmos e aos outros de outra forma.
Fantasia “estabelece o possível como excesso do real” (BUTLER, 2022, p.55).
Jung aponta: “Não conheço nada a respeito de uma supra realidade. A realidade contém tudo o que podemos saber, pois aquilo que age, que atua, é real”. (JUNG, OC 8/2, §742). Segue apontando que imaginação, ilusão e pode-se dizer fantasias, podem ser mostrar mais poderosos que a realidade material, concreta que pode ser percebida pelos sentidos. Real não seria apenas o que pode ser percebido, palpado ou mensurado, mas tudo o que produz efeito psíquico. Realidade psíquica seria a única que poderíamos experimentar (JUNG, OC 8/2, §748). Num certo sentido haveria um aprisionamento na realidade psíquica que ao mesmo tempo dá as condições para a existência viva; assim como em Butler “conformar e resistir vem a ser uma relação paradoxal e complexa com a norma, uma forma de sofrimento e um lugar potencial de politização” (BUTLER, 2022, p.364).
Se em Butler as normas funcionariam, ao menos em certa medida, através de princípios de comparação em Jung os complexos organizar-se-iam por semelhanças em analogia e comparação produzindo sequências que incluiriam o que é semelhante e excluiriam o que aparecesse como antinomia. Assim a referência do que tem sentido e significado tem referência a partir de exclusões constitutivas. Por isso o aberrante seria produzido como desvio da norma e seria necessário aos poderes regulatórios (como as leis), mas as normas teriam um domínio mais amplo do que as leis institucionalizadas.
As normas em Butler e os padrões arquetípicos poderiam coibir e produzir ao mesmo tempo. Se o campo social ou o campo psíquico é circunscrito em sua inteligibilidade pelas normas ou pelos padrões arquetípicos. Só se poderia ser reconhecido ou mesmo excluído a partir destes parâmetros. Se em Butler não haveria emancipação das normas; em Jung não haveria possibilidade de experiência psíquica seja individual ou coletiva sem a organização a partir de padrões arquetípicos determinantes. O que seria possível para Butler e Jung talvez fosse ressignificar normas ou produzir reconfigurações de padrões associativos e com isto realizar o poder produtivo de criar novas realidades ou como diz Butler “performando essa função transformadora” (BUTLER, 2022 p.89).
Em Jung a individuação estaria sempre em tensão como a norma coletiva, pois seria um processo de separação e diferenciação do geral no peculiar, singular; entretanto o caminho individual não poderia ser em oposição ou uma norma antagônica (Cf. JUNG, OC/6, §856).
Se “(…) o indivíduo humano, como unidade viva, é composto de fatores puramente universais, é coletivo e de modo algum oposto à coletividade.” (JUNG, OC7/2, §268). Mas o caminho singular jamais poderia ser uma norma, pois a norma surgiria através de um conjunto de caminhos. O caminho individual elevado à norma seria para Jung a intensão última do individualismo extremo.
Para Butler a questão não seria, prescrever novas formas de gênero. Embora fosse necessário para que alguém “seja” a condição de estar engajado em receber e oferecer reconhecimento; as normas de reconhecimento funcionariam para produzir e desproduzir (Cf. BUTLER, 2022, p.59). A capacidade de persistir estaria ligada a poder posicionar-se, extaticamente, fora de si mesmo em um mundo de normas complexas e mutáveis ao longo da história, dependente de tais normas, mas capaz de negociar dentro delas; essa dependência seria a base para resistir e sobreviver (Cf. BUTLER, 2022, p.60). A reflexividade seria socialmente constituída de tal forma que não se poderia ser sem se valer da sociabilidade das normas que me precedem e me excedem; por isso sempre estariam fora de mim desde o início, e deveria estar para sobreviver e entrar no domínio do possível. (Cf. BUTLER, 2022, p. 60-61).
Pode-se depreender que haveria em tensão entre tudo o que foi normatizado e reconhecido e algo de indeterminado que aparece em Butler na forma da sexualidade tomada da psicanálise e que em Jung poderia ser aproximada da experiência do excedente da energia psíquica. A energia psíquica na narrativa junguiana seria a intensidade com que algo é vivido e que poderia aparecer na experiência de qualquer evento, incluindo os eventos ligados à sexualidade, mas não apenas a estes. A atração sexual estaria ligada ao complexo funcional da alma que a consciência teria acesso através da imagem de alma, que personificaria o inconsciente e que, portanto, teria um excedente em relação a tudo que ganhou sentido e significado na consciência através dos complexos organizados por padrões arquetípicos.
Butler leva a entender que seria essencial ter a experiência de estar fora de si mesmo, o caráter ex-tático que na narrativa junguiana poderia ser aproximado do que aparece como experiência de alma.
A imagem de alma projetada em algum objeto faria como que este fosse vivido como objeto de amor, ódio ou medo intenso(Cf. JUNG, OC-6, §842). Pode-se considerar então, que a tensão na fratura entre o que é determinado na consciência (estilos ou padrões dominantes na consciência), os aspectos suprimidos de toda a determinação (aspectos sombrios inconscientes) e a singularidade última, que poderia ser vivida através da imagem da alma, excitaria e apareceria como desejo. Desejo como a descoberta de uma fratura que faz do ser um espaço de questionamento continuo a respeito do que o define, da identidade, do lugar que ocupa etc. Desejo como movimento que pressupõe um campo relacional com mais de um elemento. Esta relação teria, propósito, sentido, finalidade quer se dirija a aproximar-se ou afastar-se de determinados aspectos vividos como “outro”. Na integralidade o vivente não seria apenas a consciência ou apenas o inconsciente, mas uma entidade relacional; uma relação radical e constitutiva com a alteridade.
A imagem da alma (complexo funcional que coloca a consciência em contato com a experiência interna) projetada num objeto faria com que este brilhasse, atraísse, excitasse, fascinasse, misteriosamente; produzisse uma excitação que faria nascer o desejo (Eros) que buscaria unir a consciência a este objeto que é vivido como “outro”, mas onde haveria algo de sua própria essência, algo que lhe é essencial para a integralidade. Mas o desejo que atrai e fascina assustaria a consciência pelo medo de se perder, pois se o que a completa na integralidade é o que foi suprimido de toda determinação, ou seja, a negatividade de todo determinado, integrar estes aspectos seria perder toda determinação. Mas também poderia ser a oportunidade para perder-se num infinito verdadeiro (uma determinação indeterminada ou uma indeterminada determinação – figura da infinitude como uma determinação sem bordas, sem limites). A imagem de alma como psicopompo põe a consciência em contato com o inconsciente, infinito por não ter começo nem fim e não por se repetir infinitamente como “o mesmo”.
A excitação sentida (através da fratura tensa) é que levaria a necessidade do movimento e o sujeito seria levado a suportar a contradição em si mesmo sem perder a determinidade.
Este desejo não buscaria a satisfação ou a consumação do objeto pois isto seria sua aniquilação. Mas tomaria a si mesmo como objeto paradoxal ou como antinomia (indeterminado/ determinado). Seria “(…) impossível uma verdadeira adaptação consciente ao objeto que representa a imagem da alma.” (JUNG, OC-6, §842) uma vez que a alma é personificação do inconsciente do qual a consciência emerge e que dissolve também todas as certezas e determinações na consciência. Mas, seria através do desejo que a consciência procuraria a si mesma, sempre marcada por uma negatividade – resistência – que insiste que toda determinação estaria sempre em continua transformação, num eterno vir a ser e o que falta em relação ao ser é o que excedeu a toda determinação. O que falta é o excesso.
Seria como se, através da experiência da sexualidade (na narrativa junguiana descrita metaforicamente como forças universais arquetípicas personificadas em figuras como Afrodite, Eros etc.) fosse possível reunir dois domínios, duas formas conectadas de estar fora de si mesmo. De um lado na própria experiência psíquica do desejo (Eros na linguagem metafórica mítica) que não obedece ao Ego e de outro na dependência do mundo e de outros, em especial como minorias, dependentes da proteção em espaços públicos e privados; discursos de direitos confirma a dependência, o estar na mão dos outros, “um modo de ser com e para o outros sem os quais não podemos ser.” (BUTLER, 2022, p.63).
Butler levanta a ideia de que um projeto democrático precisaria abdicar da presunção de que, por princípio, poder-se-ia concordar sobre as mesmas coisas. Defende o lugar para o dissenso; não é preciso concordar. (Cf. BUTLER, 2022, p.295). Diferença sexual deveria ser pensada como um enquadramento dado, um fato, um alicerce ou uma questão? (Cf. BUTLER, 2022, p.297-298). A diferença sexual não precisaria ser dada como uma premissa. (Cf. BUTLER, 2022, p.299) Questionar não implicaria em desacreditar poderia significar revitalizar e seria possível continuar ao mesmo tempo interrogando e usando termos universais. (Cf. BUTLER, 2022, p.300).
Em Jung as tendências organizativas inconscientes, o padrão arquetípico anímico não teria conteúdo pré-determinado algum pois, “Se o inconsciente pudesse ser personificado, assumiria os traços de um ser humano coletivo, à margem das características de sexo, à margem da juventude e da velhice, do nascimento e da morte” (JUNG, 8/2, §673). Há diversos exemplos que podem ilustrar que a vida não precisaria da divisão binaria de gêneros e nem mesmo da sexualidade para se reproduzir (fragmentação, divisão múltipla, partenogênese, cissiparidade, esporulação, brotamento etc.). Ao contrário, as características descritas pelos gêneros e as manifestações da sexualidade já seriam apresentações de diferenciação entre infinitas formas de vida possíveis. A “vida” seria abundante, pródiga e esbanjadora, excederia toda e qualquer forma de apresentação determinada. As apresentações dos gêneros masculino e feminino caberiam na vida, mas a vida não caberia na binariedade de gênero. A vida no seu processo de realização poderia produzir através da experiência psíquica diversas formas como: hermafrodita, heterossexual, homossexual, gay, lésbico, transgênero, queer, intersexo, assexuado etc.
A psique (experiência psíquica) é criativa, mas ela criaria não apenas o que está de acordo com a consciência individual ou coletiva, nem apenas gêneros; cria heróis, indivíduos, self-made-man, dragões, bruxas, psicopatologia, divisões sexuais etc. Todas estas manifestações podem ser vistas como complexos associativos que buscam adaptação e reconhecimento a contextos externos, ou seja, Personas – papeis sociais de adaptação. Entretanto estas criações precisam ganhar reconhecimento psíquico, serem realizadas e reconhecidas, além de serem protegidas socialmente pois sem este reconhecimento e zelo a vida pode estar ameaçada ou mesmo ser destruída por ser considerada errada, doente, aberração, desprezível, inumana. Formas de vida sem valor que poderiam ser eliminadas sem deixar marcas como se não fizessem diferença. Formas de vida que podem ser mais do que apenas eliminadas em sua existência, mas em sua memória; apagar todos os traços e marcas produzidas. Não deveriam ter rituais de luto, seriam apagadas das narrativas, da história etc.
Em Butler, o vir a ser diferente, excederia a norma e retrabalharia a norma e aumentaria a possibilidade de gênero, assim como o excedente de energia psíquica e a singularidade vivida como experiência interna ou através do complexo funcional que coloca a consciência em contato com a experiência interna que Jung chamou de imagem da alma, também. O diferente da norma, mesmo quando considerado irreal, inumano, além do humano, menos do que humano, seria o que asseguraria a realidade ostensiva do humano, para Butler. Ser chamado de cópia, irreal seria uma forma de ser oprimido, mas oprimido já existe, pois para ser oprimido deveria primeiro tornar-se inteligível. Ver o gênero como performativo seria alegorizar como a realidade seria produzida e contestada (Cf. BUTLER, 2022, p.57).
Haveria em Butler uma tensão entre norma genérica categorial e a singularidade que pode ser aproximada do que aparece na narrativa junguiana na tensão antinômica entre genérico e particular.
Jung aponta como uma das antinomias fundamentais o genérico e o individual.
O individual não importaria perante o genérico e o genérico, não importaria perante o individual. Ele exemplifica dizendo que “não existe um elefante genérico; apenas elefantes individuais. Mas, se o genérico não existisse, e houvesse uma constante multiplicidade de elefantes, um elefante único e individual seria extremamente inverossímil.” (JUNG, OC 16/1, §1). Em outro momento dirá que “o homem pode e deve inclusive ser descrito enquanto unidade estatística porque, do contrário, nenhuma característica geral lhe poderia ser atribuída. Para esse fim, ele deve ser considerado como uma unidade comparável” (JUNG, OC X/1, §495). Estas caraterísticas genéricas e universais seriam produzidas pela psique através das pesquisas empíricas, estatísticas que trabalham com valores médios e com isto produziriam um quadro abstrato de um homem médio, que para se constituir como tal perderia a singularidade (Cf. JUNG, OC X/1, §495).
Como fundamento que aproxima ambos os autores poder-se-ia tomar o tema da indeterminação constitutiva de todo vivente em tensão com padrões normativos, históricos, transpessoais (arquetípicos). Na narrativa junguiana ponta-se para um excedente de energia psíquica, a vida sempre excederia toda determinação, pois seria a sensibilidade básica a partir da qual tudo o que é vivido ressoaria, ecoaria e produziria sequencias associativas que são chamadas de psiquificações.
A vida não teria como base os aspectos determinados apenas, mas a tensão entre o excedente que apareceria como indeterminado e toda determinação – paradoxo ou antinomia.
A vida não teria seu fundamento na falta, mas no excesso. Ela seria prodiga, abundante, esbanjadora, criaria e destruiria sistematicamente, num eterno devir. Poder-se-ia sofrer não apenas porque algo está faltando, mas porque a vida excede, transborda e a consciência buscaria encaixar, determinar, colocar a vida no trilho, no leito, na norma. A vida poderia sentir-se apertada, pois se ela excede; ela nunca caberia, nunca se encaixaria, embora as caixas possam fazer parte da vida seria preciso lugar para o mistério, o enigma, o paradoxo, a contradição para que o excesso possa te lugar, fluir performando sua função transformadora. Aqui, como fala Butler, seria preciso a fantasia para imaginar-se a si mesmo e aos outros de outra forma. Seria este vir a ser diferente que excederia a norma e ao mesmo tempo retrabalharia a norma (Cf. BUTLER,2022, p.55). Uma maneira pela qual a realidade poderia ser reproduzida e contestada.
Se por um lado seria necessário normas de reconhecimento, também seria fundamental posicionar-se fora deste “eu” determinado num mundo de normas complexas e mutáveis ao longo da história (Cf. BUTLER, 2022, p.60). É proposto por ela negociar dentro das normas para resistir e sobreviver, pois teríamos vindo ao mundo na condição de que o mundo social já estivesse lá, lançando as bases. Também Jung aponta que o estado de “identidade” que precede a consciência do eu na criança, de modo algum se acha vazia; estaria ligado a fatores geradores que iriam além dos pais e da árvore genealógica, mas a humanidade (Cf. JUNG, OC-17, §93). A criança seria uma combinação de fatores coletivos que buscam realizar-se em sua singularidade e neste sentido diferenciar-se.
A realidade universal precisaria de expressar-se por meio de uma individualidade ou singularidade no processo chamado de Individuação.
Por isso a oposição entre individualidade e norma coletiva seria apenas aparente, pois todo universal realizar-se-ia através de um particular e o particular não teria reconhecimento sem o universal.
Haveria necessidade de uma via dupla na política: uma que usa a linguagem para assegurar direitos e condições de vida, mas outra que deveria submeter as próprias categorias ao escrutínio crítico para que as formas possam ser expandidas destruídas e retrabalhadas tanto para abranger como para abrir (Cf. BUTLER, 2022, p.69). Isto exigiria uma abertura, desconhecimento e imprevisibilidade; um agonismo e contestação ao longo do caminho, aberto às tensões que assolam as categorias mais fundamentais. Esta posição crítica que indica a importância da tensão entre norma genérica categorial e singularidade pode ser aproximada do que aparece na narrativa junguiana na tensão antinômica entre genérico e particular. Se o horizonte se coloca além de reconhecer formas de vida normativamente determinadas ou categorizar, mas reconhecer a singularidade viva fica-se exposto a “uma colisão de direitos entre duas partes opostas e excludentes (…) esse conflito não se resolve com uma alternativa exclusiva – “ou ou” – e sim por uma via dupla do pensamento: fazer uma coisa sem perder a outra de vista” (JUNG, OC X/1, §496).
Os limites desta tensão da via dupla seriam encontrados, para Butler, onde a reprodutibilidade não é segura pelas normas; onde houvesse uma fragilidade essencial.
Intervir em nome da transformação seria romper como o que se tornou conhecimento estabelecido, realidade cognoscível e usar a irrealidade para fazer reivindicação. Poderia acontecer algo diferente do que a simples assimilação à normas prevalentes; as normas poderiam ser abaladas, mostrar suas instabilidades e abrir-se a ressignificações (Cf. BUTLER, 2022, p.53).
O fato de ser impossível prever e controlar todas as permutações que podem surgir não significaria valorizar todas as permutações, pois poder-se-ia lutar por certos valores como os democráticos, não violentos, internacionais, antirracistas (Cf. BUTLER, 2022, p.66). Aparece a ideia de uma transformação democrática radical, onde as categorias fundamentais podem e devem ser expandidas para virem a ser mais inclusivas (Cf. BUTLER, 2022, p.375). Abrir a noção de humano a novas articulações por; exemplo os direitos humanos que trabalham a favor das mulheres podem usar a “categoria mulher” de formas diferentes e podem mesmo ter propósitos excludentes em que nem todas as mulheres foram incluídas em seus termos (Cf. BUTLER, 2022, p.375).
Democracia não falaria em uníssono, os tons dissonantes seriam inevitáveis. O risco é que a vida fosse impedida pelo modo correto decidido previamente e imposto como certo para todas as pessoas (Cf. BUTLER, 2022, p.379-380). De forma parecida a narrativa junguiana coloca o grande problema qualquer unilateralidade dominante, qualquer padrão que cresça unilateralmente e se coloque em cisão e embate buscando a eliminação dos aspectos suprimidos faria com que estes crescem na sombra ameaçando, sistematicamente, o padrão dominante tirânico e fundamentalista.
Abre-se a reflexão para uma transformação que deveria ir além do sujeito unitário, como aquele que já conhece previamente o que ele é, pensar a partir de um sujeito múltiplo (Cf. BUTLER, 2022, p.382). Também não aceitar submeter-se a oposição binaria e ter a capacidade de cruzar fronteiras. (Cf. BUTLER, 2022, p.381). Em Jung trabalha-se com a ideia de que a chamada unidade da consciência seria mera ilusão, um sonho de desejo.
O horizonte pode ser entendido como a preservação da vida como manifestação de uma sensibilidade, uma fragilidade a ser preservada buscando os “meios coletivos para proteger a vulnerabilidade corporal, sem erradicá-la” (BUTLER, 2022, p.387). Se o processo de individuação da narrativa junguiana reconhece, valoriza e coloca-se favorável à singularidade, escutando, dando lugar para as manifestações do inconsciente como o que aparece como o estranho, esquisito, incompreensível sintoma e a superação da cisão entre os padrões dominantes na consciência e isto que surge como sintoma pode reorganizar toda composição dada; então seria no momento das crises, onde aparece a fragilidade essencial que a transformação poderia acontecer.
Pode-se entender que a transformação se realizaria em ambas as narrativas por via dupla. De um lado reconhecer as normas ou os padrões arquetípicos como elementos universais e necessários para o reconhecimento e a sobrevivência social em tensão com a singularidade viva indeterminada e que reconfigura de toda determinação. Reconhecer que “os fatores universais sempre se apresentam em forma individual, (…)” (JUNG, OC 7/2, §268). A importância de ser sensível ao mundo e “ser extático significa, de maneira literal, estar fora de si” (BUTLER, 2022, p.41) e falar para aqueles que estão vivendo fora de si mesmo, seja por paixão sexual, sofrimento emocional ou raiva política – uma comunidade composta por aqueles que estão fora de si (Cf. BUTLER, 2022, p. 41).
Se o processo de individuação liberaria a consciência da dominação de uma perspectiva personalista, individualista, egocentrada para uma participação mais ampla e “colocando o indivíduo numa comunhão incondicional, obrigatória e indissolúvel com o mundo” (JUNG, OC 7/2, §275), isto levaria a afirmação de que: “a individuação não exclui o mundo; pelo contrário, o engloba.” (JUNG,1984, OC 8/2, §432). O complexo do ego e o campo reflexivo da consciência poderiam estar a serviço de preservar a vida em sua fragilidade e multiplicidade fundamental aglutinando aqueles que estão fora de si.
Referências:
BUTLER, Judith. Desfazendo Gênero. São Paulo: Unesp, 2022.
JUNG, Carl Gustav. A Natureza da Psique. Edição digital. Vols. OC-8/2. Petrópolis: Vozes, 2014 f.
—. A Prática da Psicoterapia. Vols. OC-16/1. Petrópolis: Vozes, 2018.
—. Aion – Estudo sobre o simbolismo do si-mesmo. Vols. OC-9/2. Petropolis: Vozes, 1982.
—. Memórias, Sonhos e Reflexões. 4ª. Edição: ANIELA JAFFÉ. Rio de Janeiro: EDITORA NOVA FRONTEIRA, 1963.
—. O Desenvolvimento da Personalidade. Vols. OC-17. Petrópolis: Vozes, 2013.
—. O Eu e o Inconsciente. Vols. OC-7/2. Petrópolis: Vozes, 2001.
—. Presente e Futuro. Vols. OC-10/1. Petrópolis: Vozes, 1989.
—. Tipos Psicológicos. Vols. OC-6. Petrópolis: Vozes, 2015.
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