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“Aquarela” nos tempos de pandemia: uma reflexão sobre o improviso no atendimento online

Numa folha qualquer eu desenho um sol amarelo

E com cinco ou seis retas é fácil desenhar um castelo

Corro o lápis em torno da minha mão e me dou uma luva

E se faço chover, com dois riscos tenho um guarda- chuva …

Esses versos, escritos por Toquinho (compositor brasileiro), nos afetam e faz com que retomemos nossos primeiros anos de vida. Podemos fechar os olhos e imaginar que estamos dentro desse cenário e viajar pelo tempo, fantasiar esse castelo, e sonhar…

Somos encaminhados pelas imagens descritas pelo compositor à nossa infância, onde tínhamos a capacidade de desenhar e criar imagens, rabiscos, figuras humanas, sol, montanhas etc. Tudo isso sem censura ou autocritica; fazíamos muitos desenhos coloridos que eram expressão de nosso cotidiano.

As crianças ainda têm essa capacidade. Capacidade essa que vai se perdendo conforme vamos crescendo e socializando. Os valores morais, as restrições do dia a dia, faz com que, aos poucos, deixemos nosso processo criativo de lado. Confundimos o simples ato de desenhar com o ato de fazer arte. Pensamos e comparamos automaticamente com uma obra de arte, com quem desenha melhor, e acabamos acreditando que precisamos de técnica, buscamos o desenho perfeito, ou mesmo desistimos de desenhar, pois entendemos que não temos habilidade, entre outros julgamentos.

Já na infância comparamos nossos desenhos com o de nossos coleguinhas de escola e vamos adquirindo uma insegurança na prática desse simples meio de expressão, porque há desenhos dos mais diversos e diferentes, o que faz nossas inseguranças aumentarem e começamos a perder nossa capacidade criativa. O que antes era uma simples brincadeira – desenhar – agora já começa a se transformar numa atividade não espontânea, mais racional, onde temos medo das comparações.

Enfim nos tornamos adultos com muitas dificuldades de expressão!

Segundo Jung (2013 p. 63) o ato de desenhar, não quer dizer que se está fazendo arte, mas exercitando a criatividade para que haja possibilidade de uma conversa entre o consciente e o inconsciente, e que esse produto possa ser um instrumento da expressão e da reflexão dos sujeito sobre si mesmo.

Em arteterapia aprendemos que há diferentes recursos para possibilitar expressão do inconsciente (desenhos, pinturas, colagem, música, expressões teatrais etc.) e, através desse trabalho, temos a possibilidade de materialização das imagens do inconsciente, o que funciona como um gatilho para liberação de emoções bloqueadas. (DUCHASTEL, 2010, p. 32).

Muitos arteterapeutas se utilizam de diferentes técnicas expressivas nos ateliês presencias, mas diante de circunstâncias onde não há possibilidade do atendimento presencial devido à doenças, mudança de endereço, as vezes até de país, surge como opção o atendimento virtual. E, neste novo cenário, como trabalhar com arteterapia??

Sábias palavras de Jung (2013, p. 17) que diz: a vida tem que ser conquistada sempre e de novo.

Diante dessa realidade, porque não utilizar as técnicas expressivas nos atendimentos virtuais? Claro que não poderemos utilizar qualquer técnica, porque nossos pacientes podem não ter os recursos necessários exigidos para as atividades propostas. É necessário  também observar o andamento do processo, pois sabemos que nem todos terão à disposição para trabalhar com técnicas expressivas nos atendimentos presenciais, muito menos nos virtuais.

Nos atendimentos virtuais, os cuidados quanto a confidencialidade, confiança, acolhimento, juízo, crítica, segurança, devem ser respeitados. E, nesse ambiente, os desenhos de improviso seriam um recurso interessante para esse trabalho: uma simples folha de papel e um lápis, ou alguns lápis de cor ou giz de cera poderiam ser utilizados e, desta forma, teríamos um resgate da espontaneidade na expressão do paciente.

O material a ser utilizado poderia ser acordado com o paciente. A própria escolha desse material já faz parte do trabalho. O contrato estabelecido entre ambos seria um fator importante para essa nova modalidade. Alguns pacientes sentem-se seguros nesse ambiente, de certa forma existe um anonimato para aqueles mais introspectivos. Seria importante o terapeuta observar o local onde o paciente fará suas sessões, pois quando atendemos online notamos que os lugares escolhidos são os mais diversos: escritório, quarto, cozinha, banheiro, enfim, qualquer lugar, e isso já faz parte da análise.  Outra questão é que inesperadamente podem aparecer terceiros, como filhos, animais, empregados, uma infinidade de situações que nos apresentam alguns dos aspectos da dinâmica daquela pessoa em seu ambiente pessoal. Existe aparentemente uma facilidade na comunicação nesse ambiente; mas algumas vezes pode ocorrer as perdas de sinais, parada da fala, interferências na comunicação que podem, por exemplo, nos apresentar dados para nos atermos e verificar as possíveis resistências aparecendo. Como abordaremos essas questões, será na hora ou após? Não tenho uma reposta para isso, mas mas precisamos estar atentos para observar e ampliarmos a nossa escuta. E sabemos que, mesmo quando inesperado, tudo que ocorre no horário de atendimento tem algum significado.

O vínculo terapêutico precisa ser trabalhado, nossa postura de acolhimento, sem juízo de valor, com respeito, são necessários. E quanto maior for essa atenção, maior será o cuidado, e maior será a possibilidade de fortalecer esse vínculo.

Estaremos no face a face, cada um em seu lugar e frente à uma tela, onde poderemos conhecer o ambiente daquele com quem estamos trabalhando. Sua postura diante da câmera, sua fala diante da execução dos desenhos, como coloca o desenho na folha, quanto utiliza desse espaço, se coloca cor, quais as cores que coloca, qual a atitude durante a execução, enfim todos os detalhes serão observados e discutidos após a apresentação do trabalho. As perguntas feitas pelo terapeuta serão com a intenção de levar o paciente à refletir sobre sua criação, como foi realizar o trabalho, observar as imagens que se apresentam, o porquê dessas figuras, de um personagem estar de frente para o outro, entre tantos outras  detalhes. Enfim, olhar o todo para facilitar o diálogo do paciente com sua arte. Podemos pedir que ele entre na imagem, mergulhe em alguma cor, amplie simbolicamente, tudo isso com a intenção que possa ocorrer uma conexão entre o seu mundo externo e o interno.

E como diz Jung (2013, p. 18) a questão fundamental do terapeuta é não somente como eliminar a dificuldade momentânea, mas como enfrentar com sucesso as dificuldades futuras, ou melhor: que espécie de atitude espiritual e moral é necessária adotar frente às influências perturbadoras e, como se pode comunicá-la ao paciente. As vezes percebemos que no processo terapêutico estamos estanques, nada acontece nos encontros, há uma dificuldade do paciente em fazer algumas reflexões. Nesses momentos, a utilização da arteterapia é um recurso, porque através das técnicas expressivas, o que não se consegue expressar pelo diálogo pode aparecer nos desenhos, em um trabalho com argila, uma pintura etc. O improviso se une a espontaneidade e resgatam os recursos utilizados nos atendimentos presenciais. E como estamos observando, eles também podem ser utilizados nos virtuais. Claro que não teremos o mesmo resultado que nos atendimentos presencias, mas nós arteterapeutas devemos nos desafiar diante dessa nova possibilidade de atendimento. Até porque, diante desse desafio, novas descobertas estão sendo feitas.

Ivone Ferreira, Analista Junguiana em Foramação pelo IJEP

   Didata Responsável: Maria Cristina Mariante Guarnieri

Referências:

– DUCHASTEL, A. O caminho do imaginário: o processo de arte-terapia; [tradução Christian Marcel de Amorin Perret Gentil Dit Maillard]. – São Paulo: Paulus, 2010. – (Coleção Psicologia e educação).

– JUNG, C.G. A natureza da psique; [Tradução de Mateus Ramalho Rocha]. – 10. ed. – Petrópolis: Vozes, 2013.

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