O presente artigo propõe reflexões profundas sobre a dualidade Vida e Morte através dos mitos de Eros e Tânatos, explorando a experiência pessoal e insights da psicologia analítica junguiana.
Resumo: A partir da vivência que tive da morte de minha mãe neste semestre, escrevi este artigo para estudar e conhecer com um pouco mais de profundidade os arquétipos da Vida e da Morte. Partindo do mito de Eros e Tânatos, conhecidos como representações destes arquétipos, busquei na psicologia analítica referências sobre como, a partir da vivência de um processo de morte, buscar simbolicamente na vida o que precisa morrer para o novo possa renascer.
Stop all the clocks, cut off the telephone,
[Parem os relógios, desliguem o telefone,]
Prevente the dog from barking with a juicy bone,
[Evitem o latido do cachorro com um osso suculento,]
Silence the pianos and with muffled drum
[Silenciem os pianos e, com um tambor abafado,]
Bring out the coffin, let the mourners come. (Funeral Blues, W. H. Auden)
[Tragam o caixão, deixem que cortejo venha.] (Tradução nossa)
Eros e Tânatos
A morte de minha mãe, que ocorreu em agosto deste ano, me fez refletir de uma forma muito intensa sobre a vida e a morte. Venho desde então pensando em símbolos míticos que remetem a polaridade Vida-Morte.
Eros e Tânatos são mitos conhecidos como representação desta polaridade, foram até utilizados por Freud em sua obra de 1920, Além do Princípio do Prazer, para representar as pulsões de vida e morte. Freud discute, nesta obra, a dualidade vida e morte para reformular a sua teoria da libido, mas o que me chama atenção é a oposição destes arquétipos – o deus do Amor, aquele que nos impele para a vida e o deus da Morte, que nos conduz ao nosso destino inexorável. Percebi o embate entre estas forças enquanto acompanhava o processo de minha mãe até o seu fim.
Por um lado, a vontade de permanecer viva, de estar presente na vida de seus filhos e netos e por outro o acolhimento da morte, como um objetivo a ser atingido em sua vida e que traria como recompensa o descanso. Eros estava presente no amor da família e dos amigos que se reuniram para a sua despedida, honrando sua vida. Estava presente também no pôr do sol maravilhoso que se seguiu ao enterro. Parecia errado que a vida se manifestasse de forma tão pungente quando a família estava tão triste. Estas polaridades, porém, convivem lado a lado, pois para que a psique evolua algo precisa morrer.
E quem são Eros e Tânatos?
Segundo Brandão (2015, p. 238) Tânatos é, do ponto de vista simbólico, o “aspecto perecível e destruidor da vida”. Ele é filho da Noite e irmão de Hipno, o Sono. Ambos, mãe e filho, tem o poder de regenerar e este poder também está em Tânatos. Brandão diz que
Quando a morte se abate sobre um ser, se este orientou sua vida apenas em um sentido material, animalesco, a Morte o lançará nas trevas; se, pelo contrário, deixou-se guiar pela bussola do espírito, ela mesma lhe abrirá as cortinas que conduzem aos campos da luz. (BRANDÃO, 2015, p. 239)
Tânatos, do ponto de vista etimológico, é do gênero masculino em grego e, segundo Brandão, “tem como raiz o indo-europeu dhwen, dissipar-se, extinguir-se, tornar-se sombra” (2014, p. 576). Para Brandão “o sentido de morrer é uma inovação do grego”, pois significa ocultar-se, ser como sombra, uma vez que na Hélade o “morto” se tornava eidolon, um retrato como que em sombras” (idem, idem).
Já Eros, também segundo Brandão, representa o “desejo incoercível dos sentidos. Personificado, é o deus do amor” (2015, pág. 196). O mito mudou muito ao longo dos séculos, sendo que sua origem tem várias versões. Brandão coloca que, em Hesíodo,
Eros nasceu do Caos, ao mesmo tempo em que Geia e Tártaro. Em uma variante da cosmogonia órfica, o Caos e Nix (a Noite) estão na origem do mundo: Nix põe um ovo, de que nasce Eros, enquanto Urano e Geia se formam das duas metades da casca partida (2015, p.197).
Apesar de suas múltiplas origens, Eros é considerado a força fundamento do mundo.
É responsável pela continuidade das espécies e pela coesão interna do cosmo (idem). Brandão coloca que o Amor é a pulsão fundamental do ser, a libido, que impele toda existência a se realizar na ação.
Eros é a continuidade da existência enquanto Tânatos é a renovação. Algo precisa morrer para dar espaço para o novo nascer. Em nossa vida, diáriamente nossas células morrem e novas células nascem e este processo nos mantem vivos.
Porém, quando quem morre é um ente querido, parece que momentaneamente a exuberância da vida torna-se sem sentido. É como se a vida, em seu explendor, ofendesse aqueles que pranteam seus mortos, continuando seu ciclo como se nada houvesse acontecido. Para quem fica, a dor da perda cria como que um véu, que pode até ofuscar o brilho do sol.
Polaridade Vida – Morte na psicologia analítica
Segundo Byington (2019), Sabina Spilrein abordou a função da polaridade Vida-Morte na transformação psicológica em seu artigo de 1912 “ A Destruição como causa da Transformação”. Este artigo foi publicado no Anuário de Psicanálise e Psicopatologia juntamente com a parte II do livro “Símbolos e Transformações” de Jung (2013b). Nele Sabina reconhece a influência de Jung no seu artigo, principalmente do capítulo 9, intitulado “A Mãe Dual”, no qual Jung relaciona Vida e Morte na transformação, através do símbolo arquetípico da mãe. Ela cita a seguinte passagem de Símbolos e Transformações:
“[…] A libido tem dois lados: ela é a força que tudo embeleza e, em determinadas circunstâncias, tudo destrói”. E a seguir, Sabina acrescenta: “Na fecundação, se dá a união das células do homem e da mulher. Nesse momento, cada célula tem a sua unidade destruída e desta destruição surge a nova vida (BYINGTON, 2019, p. 176).
Byington aborda a polaridade Vida-Morte como” arquétipo e função estruturante na elaboração simbólica”. Coloca ainda que
A diminuição progressiva da vitalidade física exacerba o Arquétipo da Vida e da Morte, propiciando a passagem da dominância do Coniunctio Conjugal para o Coniunctio Cósmico, no qual o Eu se reúne ao Cosmos. A diferenciação criativa da personalidade, durante tudo o que passou, propicia muito o exercício da posição contemplativa e do Coniunctio Cósmico nestes últimos anos. É da maior sabedoria para auxiliarmos psicologicamente pacientes terminais, reconhecermos que a doença mortal, durante qualquer fase da vida e, até mesmo, na infância, pode apresentar a fenomenologia do Coniunctio Cósmico.
A maturidade e a riqueza do Self Cultural são de fundamental importância para auxiliar a elaboração do Arquétipo da Vida e da Morte na eminência da perda do corpo físico e da reunião com o cosmos dentro dos símbolos estruturantes da eternidade e do infinito (BYINGTON, 2019, p. 176).
Para Byington (2019, p.194) é necessário diferenciar três formas de expressão dos Arquétipos da Vida e da Morte:
- Compreendê-los como processos estruturantes no processo existencial: atender ao novo, se desapegando do que já não serve.
- Elaborar o Arquétipo da Vida e da Morte que ocorreu de forma trágica e inesperada, que não respeitaram o amadurecimento gradual do processo existencial.
- Compreensão do Arquétipo da Vida e da Morte durante o enfraquecimento até a desagregação do corpo físico. Esta fase, inerente ao Coniunctio Cósmico, depende muito de quanta sabedoria foi desenvolvida nas elaborações das duas formas de expressão anteriores, posto que ela consumirá tanto menos esforço psíquico, quanto mais alto for o patamar de diferenciação psíquica alcançado pela consciência.
E como Jung entende a morte?
Sobre a morte, Jung coloca que entende ser mais “higiênico” olhar a morte como “uma meta para a qual devemos sempre tender, e que voltar-se contra ela é algo anormal e doentio que priva a segunda metade da vida de seu objetivo e sentido” (2013a, p.792).
Quando moro numa casa que sei que vai desabar sobre minha cabeça nos próximos dez dias, todas as minhas funções vitais são afetadas por estes pensamentos; mas se me sinto seguro, posso viver nela de maneira normal e confortável. Por isso, pode ponto de vista da psiquiatria, seria aconselhável que só pudéssemos pensar na morte como uma transição, como parte do processo vital cuja extensão e duração escapam inteiramente do nosso conhecimento. (JUNG, 2013a, p. 792)
Em outro ponto de sua obra, Jung coloca que:
A morte nos é conhecida simplesmente como um fim e nada mais. E o ponto final que se coloca muitas vezes antes mesmo de encerrar-se o período, e depois dela só existem recordações e efeitos subsequente, nos outros. Mas para o interessado a areia escoou-se na ampulheta; a pedra que rolava chegou ao estado de repouso. Em confronto com a morte, a vida nos parece sempre como um fluir constante, como a marcha de um relógio a que se deu corda e cuja parada afinal é automaticamente esperada.
Nunca estamos tão convencidos desta marcha inexorável do que quando vemos uma vida humana chegar ao fim, e nunca a questão do sentido e do valor da vida se torna mais premente e mais dolorosa do que quando vemos o último alento abandonar um corpo que a pouco vivia (JUNG, 2013, p. 796).
Jung afirma que nossa consciência, por vezes, se recusa a aceitar que a morte é algo inegável.
Isso pode nos levar a ficar apegado ao passado, a nossa juventude, nos levando a sofrer de uma hybris onde o processo de envelhecimento pode ser alterado, onde o tempo é uma mera ilusão. Mas não é, o tempo é implacável, e negar a sua passagem pode impedir a experiência de viver uma vida com vitalidade, onde a alma é nutrida por Eros.
O medo de morrer se intensifica quando presenciamos a morte de outro ser humano, mas esta vivência pode nos fazer refletir sobre o quanto a vida de quem morreu impactou a nossa e o que fica desta vida em nós. Não apenas a saudade, as lembranças e as memórias do que foi vivido, mas também o aprendizado sobre o que não foi bom, o que não se deve repetir, a partir da experiência do outro.
A morte do outro pode ser uma possibilidade de entender o que também deve morrer em nós, para que possamos usar o poder de transcendência de Tânatos em nosso favor, olhando para a nossa própria existência, renascendo para uma vida mais conectada com nossa alma.
A vida é um sopro divino e a morte é o fim a que todos estamos destinados.Este fato conhecido não nos impede de sentirmos todo seu peso quando vivenciamos o fim da vida de um outro ser humano, ainda mais quando trata-se de um familiar amado. O peso da sombra trazida por Tânatos é sentido e transformá-lo em algo novo exige trabalho. Como um rito de passagem, pode ser exigido que, simbolicamente, algo morra em nós, para que uma nova vida possa existir.
Leila Montanha – Membro Analista em formação IJEP
Cristina Guarnieri – Analista Didata IJEP
Bibliografia:
BRANDÃO, Junito de Souza. Dicionário Mítico Etimológico. Petrópolis-RJ: Vozes, 2014.
BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia Grega, vol. I. Petrópolis-RJ: Vozes, 2015.
BYINGTON, Carlos Amadeu B. O arquétipo da vida e da morte: Um estudo da Psicologia Simbólica. Junguiana [online]. 2019, vol.37, n.1 [citado 2023-10-29], pp. 175-200 . Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-08252019000100008&lng=pt&nrm=iso. ISSN 0103-0825.
JUNG, Carl Gustav. A Natureza da Psique. Petrópolis-RJ: Vozes, 2013a
JUNG, Carl Gustav. Símbolos da Transformação. Petrópolis-RJ: Vozes, 2013b
Acesse nosso site: IJEP | Instituto Junguiano de Ensino e Pesquisa
Conheça nossos Congressos Junguianos: Congressos IJEP (pages.net.br)