Jung afirmava que é controvertida a relação entre psicologia e arte: “apenas aquele aspecto da arte que existe no processo de criação pode ser objeto da psicologia, não aquele que constitui o próprio ser da arte.” (JUNG, 1985) p.54. Afasta-se das posições que associavam as condições da criação da vida e relações pessoais do artista pois isto poderia levar a afirmações como: “todo artista é um narcisista”. Distancia-se do pensamento que torna a arte expressão de dinâmicas individuais (a figura do gênio ou do artista) e propõe não mais sobre falar a identidade do artista ou deste “como pessoa, mas do processo criador” (JUNG, 1985) p.62. A convicção de estar criando com liberdade absoluta seria uma ilusão do consciente. “Ele (artista) acredita estar nadando, mas na realidade está sendo levado por uma corrente invisível.” (JUNG, 1985) p.63. “A maneira de produzir aparentemente consciente e proposital seria apenas uma ilusão subjetiva” (JUNG, 1985) p.65.
O processo criativo como essência viva é denominado por Jung de “complexo autônomo” (JUNG, 1985) p.63; é descrito como supra pessoal, transcende o alcance da consciência e “aparece e desaparece de acordo com suas próprias tendências internas.” (CW15, §122) Apud (BARCELLOS, 2004). Se acontecer uma identificação do Ego com o complexo e a atitude for receptiva produz-se um tipo de efeito; se não isto é vivido como um “imperativo” que se impõe. Pode-se aproximar então arte e pathos.
Jung fala que os complexos podem interferir e realizar processos de invasão na consciência, mas estes não seriam de forma alguma doentes ou “patológicos”, a não ser no sentido do “pathos” (ser conduzido, sofrer, sentir, aguentar, suportar, tolerar, deixar-se levar por, deixar-se convocar por); isto quando patologia significava a ciência das paixões. As invasões seriam momentos em que uma pessoa fica subitamente alterada, tomada por algo; como se perdesse a cabeça. Emoções dominadoras podem ser indesejáveis para o complexo do Ego, mas não seriam em si patológicas. (JUNG, 1983) p.156.
Assim, tanto na arte como na psicopatologia tem-se a invasão de complexos. O processo criativo manifesta um “complexo autônomo” e “entre uma inspiração artística e uma invasão não há absolutamente diferença alguma. São a mesma coisa, (…)” (JUNG, 1983) §72.
Embora não se possa “negar o fato de que a realização de uma obra de arte depende das mesmas condições psicológicas de uma neurose” (JUNG, 1985) p.56 para se chegar a noção de que “a obra de arte não é uma doença.” (JUNG, 1985) p.60 será necessário rever várias noções naturalizadas pelo seu uso cotidiano como a ideia de que o indivíduo é literalmente um. “Gostamos de pensar que somos unificados; mas isso não acontece nem nunca aconteceu.” (JUNG, 1983) p. 67. A unidade da consciência seria uma mera ilusão. “(…) aquele que parece uno não é um senão que muitas personas (diferentes) que aparecem nele. (JUNG, 1978) p.59. “O homem só apareceria como totalidade vivente e como unidade no ato. (…) Ato como o resultado de um evento que abarca a totalidade anímica.” (JUNG, 1978) p.72
Revendo a ideia de doença, a perspectiva Junguiana aproxima-a da dominação unilateral. “A consciência, devido a suas funções dirigidas, exerce uma inibição” (JUNG, 1984)§132 sobre “todos os elementos psíquicos que parecem ser, ou realmente são incompatíveis”(JUNG, 1984)§136. É exatamente por causa dos atos de julgamento que o processo dirigido se torna necessariamente unilateral. Mas, a “aparente unidade da pessoa que declara com firmeza: “eu quero, eu penso etc., se racha e se dissolve como consequência do choque com o inconsciente” (JUNG, 1978) p.60. O choque com o inconsciente seria a reação viva da multiplicidade de sentidos, do mistério, enigma e indeterminação pulsante que, como resistência à função dirigida, regularia ou limitaria a dominação unilateral de qualquer complexo (incluindo o Eu). Isto protegeria resistindo a que as funções parciais fossem postas a serviço do Eu (vontade do homem) pois “isto poderia fazer sucumbir a uma vontade tirânica de um governo interior que apresenta traços de uma supra-humanidade demoníaca” (JUNG, 1978) p. 57.
Jung afasta-se do pensamento unitário dominado pela equivalência e coloca a referência na noção de complexo: “o complexo é uma unidade psíquica” (JUNG, 1999) p.33. Não haveria algo que pudesse ser unitário, equivalente, isolado e fora da psique. Assim as doenças nunca seriam “entia per si”, dotados uma psicologia autônoma.” (JUNG, 1983) p.2 Quando se vive algo como “doente” isto se configura associado a ideias, comportamentos e fantasias que estariam erradas. “Fantasia é a primeira realidade da psicopatologia” (HIILLMAN, 2010) p.172. O natural tende a ser idealizado; utilizam-se padrões ideais sobre aquilo que desvie comparando a leis gerais, padrões morais ou imorais. Mas, “(…) normas são as ilusões que determinadas partes prescrevem a outras.” (HIILLMAN, 2010) p.189. Aproxima-se isto de noções como “o doente é doente por só poder admitir uma norma.” (CANGUILHEM, 2000) p.149 ou “o que caracteriza a saúde é a possibilidade de ultrapassar a norma que define o normal momentâneo, a possibilidade de tolerar infrações à norma habitual e de instituir normas novas em situações novas.” (CANGUILHEM, 2000) p.160.
Doenças apontariam para fixação de um complexo e as cisões como efeito de revolta e combate entre do estilo predominante na consciência (“personalidade consciente”) contra as manifestação de formações diversas ou quando há o domínio permanente de um complexo insuperável.
É interessante que o mesmo processo de invasão de complexos permite a assimilação destes e protege contra o isolamento. Por isso os modos de socialização poderiam ser, ao mesmo tempo, os modos de suporte do sofrimento vivido. Haveria um tipo de sofrimento em todo processo de socialização, de construção de identidades socialmente reconhecida, de constituição do Eu, ao internalizar padrões de conduta que poderiam ser utilizados, normativamente, sobre os sujeitos, a psique e a vida. Como as relações socialmente organizadas e constituídas, ao seguirem valores, expectativas, exigências, seriam investida de várias maneiras, sofrer-se-ia por não poder tomar distância das normas que obrigam a realizar certos valores, certas expectativas, que, para um complexo dominante, pode parecer totalmente ligadas à realização de uma vida bem sucedida.
Se a saúde passou a ser vista como a possibilidade de transgredir a norma ou o padrão arquetípico dominante de forma unilateral fundamentalista, as invasões diversas podem ser protetoras. Arte e psicopatologia como processos criativos, essências vivas, podem então serem aproximadas em especial através na noção de sublime.
Sublime era um termo literário, superlativo do Belo, relacionado ao êxtase que teria a função de comover; seria o lugar onde domina o pathos – o grau mais violento dos afetos ligado ao impulso que conduz a ação. Enquanto o Belo relacionava-se com o decorum, a adequação ligado a simpatia, produzindo prazer simples, correspondente a autopreservação, ao gênero médio, com a intensão de deleitar; o Sublime seria riqueza espiritual que ultrapassa os limites do usual e relaciona-se ao êxtase. Diferente da harmonia do belo, o sublime suscita desprazer ou deleite. A paixão e o entusiasmo são as fontes do Sublime, assim como o grande, o excesso, a vastidão, o ilimitado e o magnifico que produz terror fundamental. Deleite é como se chama o prazer do Sublime; é mais complexo e aproxima-se da sensação que acompanha a remoção da dor e do perigo; implica terror à distância; uma paixão mista de terror e surpresa, forte e de natureza severa. O conceito de Sublime é ligado ao ilimitado, infinito, pensamentos e paixões grandiosas, demasiado grandes para a compreensão, esmagam a mente com seu excesso e lançam uma espécie muito agradável de assombro e admiração. A dor que provoca o deleite está na base individual do Sublime e na base coletiva da catarse; é a excitação relacionada ao descentramento que estará na base das artes. A emoção básica que passa a ser exercitada é o espanto frente a um objeto que possa infligir a morte, uma força superior que o sujeita, algo que ultrapassa os limites do entendimento. Jung, refletindo a partir de texto sobre alquimia, aponta que o artífice é servidor da obra. (JUNG, 1978) p.129; o homem “puramente natural”, em sua ingenuidade espontânea amplia a tal ponto sua personalidade que o eu normal em grande medida desaparece, (JUNG, 1978) p.130.
A atitude do ego que reconhece o processo criativo como um complexo autônomo acolhe e cuida como zelador do mesmo. “O tratamento analítico poderia ser considerado um reajustamento da atitude psicológica” (JUNG, 1984) §142. Trata-se de mudanças de atitude, mas não há uma atitude correta a ser alcançada como uma norma positiva que pudesse orientar a vida – “A vida tem de ser conquistada sempre e de novo” (JUNG, 1984) §142. Pode-se pensar que é necessário sempre ter que produzir novas atitudes, novas posições para novas situações presentes, que como tal são sempre paradoxalmente conhecidas/desconhecidas e misteriosas. As atividades artísticas, os processos de criação podem se configurar como campos de enriquecimento das vidas, de descobertas de recursos, vínculos, relações e de acesso a bens culturais. Um processo que acompanha sujeitos no mundo num território vivo e não apenas orienta-se para a eliminação de sintomas, mas procura promover a vida onde e como ela apareça.
Se o doente “é uma pessoa que sofre dos mesmos problemas humanos que nós (…)” (JUNG, 1999) p.149 e reconhece-se na doença uma reação inusitada a questões que se apresentam em todos nós poderia ser dito o mesmo em relação a processo artístico? E talvez os processos artísticos atuem não apenas em quem foi instrumento de sua realização, mas em todos; como o trabalho com o laço transferencial. E a obra que diz: “estou em condições de dizer mais do que realmente digo.” (JUNG, 1985) p.65 possa pôr um grão no plantio da resistência à dominação do literalismo heroico na vida e no mundo.
Ajax Perez Salvador
Professor do IJEP
Referências
BARCELLOS, Gustavo. Jung, junguianos e arte: uma breve apreciação. Vol. 15. Campinas: UNICAMP, 2004. .
CANGUILHEM, Georges. O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Forense, 2000.
HILLMAN, James. Re-vendo a psicologia. Petropólis: Editora Vozes Ltda, 2010.
JUNG, Carl Gustav. A Natureza da Psique. Vols. VIII-2. Petrópolis: Vozes, 1984.
—. Fundamentos de Psicologia Analítica. Vol. Vol. XVIII/1. Petrópolis: Vozes, 1983.
—. La psicologia de la transferencia. Buenos Aires: Editorial Paidos, 1978.
—. O Espírito na Arte e na Ciência. Vol. XV. Petrópolis: Vozes, 1985.
—. Psicogênese das doenças mentais. Vol. III. Petrópolis: Vozes, 1999.