Este ensaio tem a intenção de ampliar questionamentos sobre o complexo paterno, que sob a luz do dinamismo patriarcal se inicia na relação primal e se prolonga para a vida ulterior do indivíduo. Neste caso, faz-se um recorte dos possíveis impactos decorrentes da fragilidade do exercício da paternidade para a menina, futura mulher.
É universal a simbologia da figura materna, que docemente nos conduz ao reino do aconchego, da doação e do amor. Igualmente relevante, embora com certa impessoalidade na experiência inicial, a dimensão “pai” guarda a promessa de alteridade, que se fortalece na vivência diária da paternidade.
Não faltam trabalhos abordando os efeitos nocivos do complexo paterno negativo, que abrangem desde a ausência real da figura paterna – por morte ou abandono, passando pela ausência emocional e chegando às diversas formas de violência, direta ou indireta, tais como: abuso de álcool e outras substâncias, violência doméstica e transtornos psiquiátricos limitantes.
Meu olhar tenta alcançar linhas sutis que podem se formar, aos poucos, ao longo dos anos, traçando funcionamentos e personalidades que em algum momento precisarão de maior atenção. Refiro-me aqui a questões vivenciadas por mulheres, que na fase adulta se deparam com os mais diversos medos; estes podem ser concretos, direcionados a objetos, pessoas ou situações, ou ainda o medo emocional, subjetivo, substantivo, que aparece nos escritos de Jung como temor perante a vida e até mesmo temor frente ao inconsciente, tornando clara a necessidade de re-significar as representações parentais, principalmente a paterna, no intuito de reduzir danos no enfrentamento da vida.
Quem abre para a criança o universo do pai não é o indivíduo enquanto pessoa, mas sim o dinamismo paterno; diferente da mãe, que ocupa na vida da criança uma função mais pessoal e concreta frente às demandas maternas. As diversas relações do filho, ao longo da vida – consigo mesmo, com o outro e com o mundo serão mediadas pela representação do pai, baseadas nas regras, limites, qualidade, finalidade, regularidade, objetivos e responsabilidades. (Lima Filho 2002)
Lima Filho, ainda ressalta que a ausência de um representante paterno, tal como se vê no caso da mãe, é danosa para a personalidade. No lugar de se relacionar com o mundo, o filho se diluí, podendo invadir ou se deixar invadir quando faltam regras e limites. A partir do representante do pai, a criança torna-se um membro da coletividade humana, pois lhe é ofertado o conceito de “outro” enquanto semelhante.
Essa noção do outro decorre do papel exercido pela figura paterna, atuando na separação dos filhos acerca da simbiótica relação com a mãe. Stevens (1993: p.119) descreve o amor paterno:
“(…) a criança nunca esteve, antes, fisicamente unida ao pai ou dele dependeu, no que se refere ao corpo, para se alimentar: assim, o pai é a primeira pessoa que a criança ama numa base espiritual, oposta a base física. À medida que este relacionamento vai amadurecendo, há também uma consciência cada vez maior da parte do filho, de que o afeto ligado ao pai difere em qualidade do afeto materno: ele é menos envolvente, e não é tão crítico (…)”.
O pai instaura a falta e nomeia a realidade. O que chega da mãe é preenchimento. Do pai, a falta, mas também recursos para tal preenchimento, ou seja, ajuda a criança a vivenciar por conta própria seus recursos, para que seja capaz de lutar e suprir a si mesma. (Lima Filho, 2002)
Para Corneau (1991), citado por Lima Filho (2002) o que estimula as realizações do filho é o amor condicional do pai, revelando-se crucial no desenvolvimento da responsabilidade, superação e respeito à hierarquia.
E como farejar estas questões, quando elas se encontram em um cenário de estrutura familiar aparentemente saudável, beirando tudo que é ditado pela norma? Um lar amoroso trabalho com afinco e responsabilidade a fim de garantir que todas as necessidades sejam supridas na medida do possível: alimento, saúde educação etc. Enfim, a família “quase perfeita”.
Neste contexto, podemos estreitar um pouco mais sobre as contribuições do pai na construção da identidade da mulher e seu desenvolvimento psíquico. Sua atuação na vida poderá caminhar para o lado positivo e saudável, ou negativo e disfuncional, de acordo com os vínculos estabelecidos, bem como o processo de internalização.
Tão importante quanto à interdição da relação simbiótica com a mãe, é a capacidade do pai real, de humanizar os aspectos arquetípicos na filha. Para que isso ocorra, a figura paterna precisa de prontidão para acessar seus aspectos sombrios. Somente desta forma, a filha terá condições de trabalhar seu processo de diferenciação.
As mais diversas atitudes, principalmente as que se referem ao trabalho, influenciarão diretamente nas atitudes da filha. Quando a relação constituída somente aparenta positividade e solidez, provavelmente o vínculo será negativo. Dessa forma a tendência ao perfeccionismo estará sempre presente; já a criatividade, provavelmente estará quase sempre escassa e como resultante disso: possível excesso de trabalho, com sensação de ineficiência constante.
Quando a figura do pai enxerga e admite suas próprias fragilidades e limitações, permite que esta filha consiga lidar com suas faltas instaladas na psique e ao mesmo tempo encoraja, abrindo espaço para o desejo de seguir adiante, independente das dificuldades.
Quem estaria por traz das dificuldades do pai, que carrega as melhores intenções sobre proteger e orientar, mas que ao negar seu lado mais obscuro vai mantendo esta filha aprisionada na superfície?
Só consigo pensar no MEDO. Duas palavras eram usadas na Grécia antiga para diferenciar apreensões: deos, referente a um temor controlado e refletido e phobos, que é um medo intenso e irracional acompanhado de fuga. Sendo um mecanismo de defesa, uma emoção inata, o medo normal aparece como proteção frente a algo que nos coloca em risco e cessa assim que o perigo desaparece.
Para Jung (2002), o medo é uma emoção que nos possuí, mostrando indícios de uma adaptação insuficiente; um sintoma de um conflito entre opostos psíquicos.
Poderíamos assim falar, pensando na figura do pai, no medo que a alteridade, por suas exigências produz, estando esta emoção relacionada às questões prováveis de aprovação social, tais como: reputação, crítica, fracasso e solidão. O não conhecimento dos conteúdos complexos e arquetípicos por parte do pai o deixariam aprisionado e cada vez mais distante do processo de individuação. Dessa forma, sendo o pai o portador do LOGOS, se consumido pelo medo, pode se tornar a figura que abre a porta, em períodos de transição, para o temor maior frente aos fantasmas do inconsciente da filha.
Em símbolos da transformação vol. V, Jung fala sobre o medo do mundo interno, que pode ser mais pavoroso que o medo do mundo externo, principalmente quando negado.
Por fim, estas questões provavelmente poderão ser trabalhadas e re-significadas pela filha que alcançar um nível de desconforto. Caso tenha um ego estruturante, um ego mais fortalecido e flexível será capaz de transitar pelo desconhecido com um pouco mais de autonomia, tendo condições de se preservar de uma possível invasão do inconsciente.
As dificuldades vivenciadas por muitos pais existem de fato; longe de mim qualquer tentativa de não legitimá-las, mas o impacto que de isso ocorre também é legítimo. O medo, que aumenta a distância entre a consciência e o inconsciente, tira a clareza da percepção e como conseqüência inibe comportamentos críticos acerca da vida.
Este pai deixa de vivenciar a satisfação de se perceber como um verdadeiro herói, pelo fato de portar medos e fraquezas. Deixa de se perceber como um grande entusiasta, por conta de emulações e ainda, de usufruir da sensação de grande mestre, orientador, simplesmente por não admitir de forma genuína ter receios e dúvidas.
O pai que não enfrentou com coragem (ação do coração), o medo, provavelmente não assumiu uma posição de autoridade. Disso resultam duas formas de comportamento. A primeira, seria a busca de poder de forma autoritária, arrogante e abusiva. Outra maneira seria um distanciamento de si mesmo, se entregando a uma postura de inferioridade e subserviência. Em ambos os casos, há uma interdição da possibilidade criativa da alteridade
Para a menina, agora mulher, cabe a coragem do confronto, se assim lhe aprouver. Daqui para frente, os aspectos internos se tornarão os olhos que guiam, e o conforto estará intimamente ligado à renúncia de tudo aquilo que pode afetar o destino.
Embrenhar-se na sombra reconstrói o passado e prospecta de forma vivificada para grandes possibilidades. Abre-se espaço para o CRIATIVO, para o AUTÊNTICO, gratificando nossos antepassados, sem abrir da mão do que podemos de fato nos tornar.
Patrícia Moura Vernalha – Membro Analista em formação do IJEP
Analista Didata: Waldemar Magaldi
Patrícia Moura Vernalha – 21/03/2022
Referências
LIMA FILHO, A. O pai e a psique. São Paulo – Paulus, 2002
JUNG, C.G. Símbolos da transformação vol. 5 – Editora Vozes limitada, 2018
STEVENS, A. Vida e pensamento: uma introdução – Editora Vozes, 1993
JUNG, C.G. A natureza da psique vol. 8/2 – Editora Vozes, 2013