Trinta e cinco anos separam 2049, de 2017, do clássico Blade Runner, de 1982. Muita coisa mudou nessas quase quatro décadas. Naquela época, por exemplo, quando se conseguia comprar uma linha de telefone, tinha-se direito a ações. Havia televisão pública no Brasil de qualidade e a Internet ainda era restrita às ficções científicas.
Para refrescar a memória, voltemos à 1982. Ao ser lançado, Blade Runner, dirigido por Ridley Scott, foi um fracasso nas bilheterias dos Estados Unidos provavelmente devido à sua estética futurista noir e temática complexa.
Com o tempo o filme passou a ser considerado um dos melhores filmes já feitos – a ponto de seu diretor dizer que talvez tenha sido sua melhor obra. O que fez com que as sete versões que o clássico teve desde então causassem ondas de amor e ódio entre críticos e público.
A trama do filme de 1982: no início do século 21, em Los Angeles, a corporação Tyrell desenvolve replicantes que, por serem tão (ou mais) inteligentes e fortes que os seres humanos, são enviados para a colonização de outros planetas. Um motim leva-os a serem caçados na Terra por um esquadrão de elite, os Blade Runner que dão nome à película. Em 2019, restam cinco deles, que serão caçados pelo policial Deckard (Harrison Ford). O eixo amoroso aqui é conduzido pelo policial com a última replicante de sua lista, Rachael (Sean Young).
Corte para 2017, na mesma Los Angeles do filme 2049. Uma nova espécie de replicantes é desenvolvida, aparentemente mais obediente. O Blade Runner agora a caçar os que saem da linha é K (Ryan Gosling), que se depara com um segredo: Rachael, apesar de ser uma replicante, teve um filho – ideia mítica da criança divina que na trama leva a uma possibilidade de revolução na linha do “vamos conquistar o mundo dos humanos”. Que a julgar pelo cenário dark do filme não estão lá fazendo muita coisa de bom com o planeta mesmo.
Em comum, ambos os filmes abordam questões fundamentais que norteiam o ser humano, com destaque para ética e a busca do sentido para a vida.
Há coisas, no entanto, que não mudaram nestas quase quatro décadas. Uma delas é a importância da anima na vida masculina e, por extensão, nos relacionamentos amorosos.
E o que é anima em análise junguiana? Na verdade, a dupla anima e animus como arquétipos do inconsciente coletivo são uma das principais contribuições do psiquiatra suíço Carl Gustav Jung (1865-1961).
O psicoterapeuta junguiano estadunisende Robert Hopcke explica que “… Jung observou que, por trás da personalidade consciente masculina, parecia haver um lado feminino inconsciente com seu próprio caráter particular e seus próprios modos de agir” (HOPCKE, 2012, p. 104).
Para Jung, este lado mais caloroso, emotivo e espiritual de um homem podia ser percebido em seus sonhos, fantasias e projeções, onde assumia a forma simbólica de uma mulher.
Logo, a anima seria a ponte entre o homem e sua criatividade, sua amorosidade, seu prazer pela vida, enfim, sua alma.
No filme Blade Runner, de 1982, Deckard se rende à fantasia e foge com Rachael. Como se o príncipe tivesse se casado com a sereia transformada em ser humano do conto A Pequena Sereia, do escritor dinamarquês Hans Christian Andersen (1805-1875).
Segundo a psicoterapeuta analítica alemã Marie Louise von Franz (1915-1998), Andersen tinha lá suas neuroses relativas a relacionamentos amorosos, tanto que nunca se casou.
2049, no entanto, parece ser bem mais complexo nesta questão. A tenente Joshi (interpretada pela sempre ótima Robin Wright), chefe de K, o envia para encontrar e eliminar a criança. Em dado momento, diz que ele é um homem sem alma.
Ela tem razão. Mas até certo ponto. K. tem a seu lado Joi (interpretada pela modelo cubana Ana de Armas). Trata-se de uma acompanhante virtual, uma Siri que interage em tempo real e se transforma rapidamente para atender às vontades de seu homem.
Em um piscar de olhos, Joi transita pela persona da dona-de-casa perfeita dos anos 1950, ancorada num mundo pré-feminista, a preparar diligentemente o jantar de ambos. Para logo se tornar a companheira contemporânea, pós-moderna, com ouvido pronto para escutar a resposta à pergunta “what a day” – que dia difícil o seu, né?.
O psicoterapeuta Waldemar Magaldi sempre lembra que, ao ser questionado sobre como escolher o parceiro ideal, Jung respondeu: “Escolha alguém com quem você terá o que conversar daqui a 30 anos”.
Apesar de serem um replicante e uma mulher virtual, eles interagem lindamente na arte da conversação. Joi lembra que K precisa de um nome, isto é, de ser tirado do plano do oceano indistinto do inconsciente e individualizado, batizando-o de Joe. K, simbolicamente renascido como Joe, reconhece as qualidades de Joi, e sua luta pela relação o faz ser mais ele mesmo.
Todavia, como sabemos, Joi é uma projeção. Tanto que um dos pontos altos do filme é a cena de amor entre os dois, da qual não falaremos mais aqui para não dar spoiler. Ajustar a imagem da anima à da mulher real é um dos maiores, senão o maior, desafio masculino.
Em O Gato: conto da redenção feminina (FRANZ, 2011), Von Franz lembra que muitas mulheres ficam presas nessa rede da projeção que os homens podem lançar sobre elas.
Em 2049, a questão é resolvida com a morte simbólica de Joi. Mas atenção! No maior clima de alteridade, onde o feminino virtual se sacrifica (no sentido de tornar sagrado) para que o masculino possa se tornar ele mesmo a partir de uma relação real.
Na que talvez seja a pior cena do filme, contudo, K., agora Joe, tem uma morte triste ao som da mesma música que no primeiro filme, embalava a triunfal morte do replicante Roy (interpretado pelo ótimo Hutger Hauer).
Em 1982, a morte do replicante simbolizava a efemeridade da vida de replicantes, mas também, e porque não, dos humanos que não tinham consciência de estar em processo de individuação (https://www.youtube.com/watch?v=chIP3AvqLDo). Em português: “Eu vi coisas que vocês humanos nunca acreditariam. Ataquei naves em chamas nas bordas de Orion. Observei Raios-C brilharem na escuridão dos ares dos Portões de Tannhauser. Todos estes momentos se perderão no tempo, como lágrimas na chuva: hora de morrer.
Em 2017, no entanto, a morte de Joe – que o impede, portanto, de viver um amor real – parece simbolizar somente a falta de interesse dos produtores de fazer uma trilogia. Talvez uma simbologia per se de que a grande questão atual segue sendo, para todos, a das relações amorosas no contexto da alteridade.
Referências
FRANZ, M.-L. VONZ. O gato: um conto da redenção feminina. 3. ed. São Paulo: Paulus, 2011.
HOPCKE, R. H. Guia para a obra completa de C. G. Jung. 3. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.
* Dra. Monica Martinez, analista em formação do IJEP – Instituto Junguiano de Ensino e Pesquisa, especialista em Psicologia Junguiana, jornalista, Atende na Vila Madalena, zona Oeste de São Paulo. E-mail: analisejunguianasp@gmail.com.