O resgate da autonomia como parte da ampliação da consciência e a busca da realização pessoal.
“Deus, tem tanta coisa acontecendo ao mesmo tempo na minha vida que as vezes parece que estou dentro de um vagão descontrolado, sendo levada a situações que não escolhi, tendo que resolvê-las sem tempo de me preparar para elas, sem entender ao certo para onde elas vão me levar…só espero que você seja o condutor deste trem, Deus, e esteja realmente me levando para o lugar onde eu devo estar…”
Quem nunca se sentiu assim diante da própria vida? Nem sempre as coisas vão seguir o nosso planejamento e a vida vai nos dar tempo de nos prepararmos para encontrar a melhor resposta.
Confesso que quando me dei conta desta minha conversa com Deus antes de dormir eu me assustei. Não por ser algo inédito na minha vida, mas por entender que diante deste momento, eu realmente esperava que Deus estivesse sob o comando, no meu lugar.
Este artigo não tem a finalidade de questionar a ação de Deus em nossas vidas. Isso é muito pessoal e nós devemos respeitar as diferentes visões sobre o tema. Mas quero ampliar aqui uma questão que eu já vinha elaborando diante dos casos que acompanho e de algumas leituras que fiz: haverá sempre um momento em que a vida vai cobrar da gente uma posição e, quando isso acontecer, não restará mais nada a fazer além da gente se tornar protagonista da própria vida.
Como visto, o processo de evolução é um trabalho contínuo. A psique é trabalhada e a consciência é lapidada graças ao enfrentamento das situações. Este processo não se dá exclusivamente na fase do amadurecimento onde vamos nos tornando adultos, mas sim, acontece de forma constante por toda a vida.
Desenvolvimento da personalidade e formação do ego
O desenvolvimento da personalidade e a formação do ego devem ser trabalhados continuamente, independentemente da idade.
Inclusive, este pensamento ilustra bem o caminho da individuação, onde somos convidados a construir, transformar, desconstruir ideias, valores, conceitos, sempre e de novo.
No livro “Ego e Arquétipo”, Edinger (2012) ilustra essa ideia de evolução da consciência com um modelo espiral. Onde cada fase a ser vivida passa necessariamente por papéis, desafios de construção e desconstrução, de modo que seja trabalhado o Ego e conquistado o autoconhecimento.
E fica evidente que esta caminhada é cíclica, ou seja, a cada novo momento ficaremos frente a frente com nossas sombras, nossos potenciais e vamos descobrindo maneiras de responder e amadurecer diante das experiências.
Podemos então pensar que este processo é cíclico, espiral e cônico, pois conforme vamos aprendendo as lições que a vida traz e vamos expandindo a nossa consciência. Encontramos saídas e respostas mais rápidas, ou vamos tendo menos necessidade de ficarmos parados em um ponto, identificados com o momento presente.
A psique passa por esses movimentos constantes mas nunca da mesma forma.
Contudo, quando estamos diante de uma tarefa que nos parece desafiadora demais, que exige uma grande transformação ou mesmo constela nossos complexos, tendemos a estagnar.
Toda vez que resistimos à tomada de consciência ou rejeitamos a tarefa do novo, experimentamos a sensação de perda de controle. Ficamos com o emocional confuso e começamos a produzir sintomas em suas mais diversas formas. Seja diante de pequenas tarefas corriqueiras do dia a dia ou de grandes mudanças impostas pela vida, se não enfrentarmos nossa sombra os sintomas vão nos cobrar uma atitude.
Procrastinação: preguiça ou falta de prontidão?
Quando resistimos ou nos sentimos paralisados diante de coisas que são julgadas como pequenas, costumamos dizer que estamos procrastinando.
Interessante pensar que nesses casos, muitos associam a resistência em fazer algo como preguiça. Mas será que realmente a pessoa que paralisa ou que arrasta uma situação deixa de fazer apenas por preguiça ou irresponsabilidade?
No livro “Pare de procrastinar” de Nils Salzgeber (2021), fica evidente que muitas vezes essa resistência comportamental vem diante de tarefas julgadas como difíceis. Mas é quase sempre uma reação natural à uma emoção negativa ou desconfortável que é acionada, gerando ansiedade, dor, culpa, entre outros sentimentos. Por isso, a pessoa tenta mudar o foco para outra tarefa que desperte emoções mais agradáveis.
Agora, será que nós não podemos pensar que, diante de grandes mudanças de vida ou grandes tarefas, paralisamos por também nos sentirmos desconfortáveis com as nossas emoções?
Não podemos pensar neste conflito interno como uma resistência profunda em olhar para a situação e assumir um papel diferente do que estávamos acostumados até então? A diferença talvez seja que nesses casos não julgamos como procrastinação, mas sim uma falta de prontidão para realizar tais tarefas.
“A procrastinação geralmente decorre de alguma espécie de medo – do fracasso, do sucesso, do desconhecido, de ser julgado, da reprovação. É muito mais fácil procrastinar do que escrever um livro e correr o risco de ninguém gostar dele. É muito mais fácil procrastinar do que começar um negócio e correr o risco de falir.”
Salzgeber, 2021, p. 22
Medo de correr riscos: não seria este o motivo de encontrarmos pessoas em sofrimento diante de desafios que a vida impõe?
Viver é correr riscos: de fracassarmos, mas também de nos surpreendemos com o sucesso. Como saber se estaremos prontos para lidar com o que vier, sendo algo positivo ou negativo? Quais partes minhas eu terei que conhecer para dar conta deste novo? Tantas perguntas para um processo que é inevitável.
Este comportamento até então visto em adolescentes agora virou tema também de muitos adultos.
O medo da vida e do viver, a sensação de despreparo diante das batalhas e responsabilidades, seja ela na vida pessoal ou na coletiva, tem feito com que adultos se sintam impotentes diante da própria vida.
É comum o relato de que grande parte do sofrimento vem pela falta de escolha, mas a verdade é que sempre a fazemos. De forma consciente ou inconsciente, o tempo todo escolhemos: se queremos ou não, se vamos agir ou não, como vamos enfrentar o que nos parece inevitável – e essas decisões cabem somente a cada um.
O grande aprendizado é aprender a lidar com os desafios que vão aparecer pelo caminho, mesmo diante de uma escolha certeira. Independente da escolha (ou da aparente não escolha), inevitavelmente vamos ter que lidar com alguns desafios.
“Enquanto uma pessoa continua a se desenvolver, a paz interior, mesmo para aqueles cuja vida foi enriquecida pelo encontro com o inconsciente, é apenas um breve intervalo entre o conflito resolvido e o conflito que virá, entre respostas e perguntas que nos lançam no tumulto e no sofrimento, até que novos vislumbres ou a própria transformação tragram nova solução, e o interior e o exterior em oposição se reconciliem novamente.
A experiência do significado, que é, finalmente, aquilo com que se ocupa a vida, não é, de nenhum modo, equivalente ao não sofrimento; no entanto, a elasticidade da consciência que se dá conta de si e se transforma a si mesma pode nos fortalecer contra os perigos do irracional e do racional, contra o mundo interior e o exterior.”
Jaffé, 1995, p.59
Crescer dói, não crescer mutila a nossa alma.
Este processo de lapidação egóica, buscando a totalidade individual proposto por Jung é uma tarefa realmente árdua, mas inevitável se quisermos ir em busca de uma realização pessoal. Não importa a idade ou o momento de vida, seremos convocados a algumas batalhas pessoais as quais não poderemos nos ausentar, a não ser que estivermos dispostos a adoecer, física e psiquicamente.
Para algumas pessoas fica mais fácil associar esse chamado com a jornada do herói, e posso até concordar, desde que a jornada do herói seja compreendida de fato na sua essência: uma jornada de autoconhecimento e ampliação da consciência diante do inconsciente e não uma tarefa meramente egóica.
Nesse artigo, quero destacar os momentos em que realmente nos sentimos inundados por tarefas, mudanças e surpresas que anunciam grandes transformações de vida.
Situações em que teremos que rever alguns padrões, crenças, despertar para os aprendizados e realmente partir para o próximo nível da nossa jornada. Quando de fato nos lançamos para o processo, descobrimos que em alguns momentos nós devemos agir junto com os pedidos que a própria vida vai nos fazer. Ou seja, mesmo sem ter a compreensão absoluta do próximo passo, só nos resta fazer um esforço e nos apropriar da situação.
A atitude de ficar escondido, apenas sendo coadjuvante das histórias, em algum momento, não será mais sustentado pela alma.
Por mais que o ego busque alternativas para se proteger da situação, a alma apresentará desconfortos deixando em evidência que é preciso mudar. Mesmo com resistências, nós devemos buscar meios para abandonar os papéis secundários e nos tornarmos protagonistas das histórias ao nosso redor.
Este é um processo realmente difícil, mas necessário. Muitos recursos do processo analítico nos ajudam neste enfrentamento, seja escutando a sombra, olhando para as fantasias, imaginando soluções, ponderando riscos, buscando um diálogo entre os conteúdos conscientes e inconscientes.
Investigando o inconsciente
No livro “O Eu e o Inconsciente” (OC, v.7/2, §369), Jung fala que não podemos usar ferramentas como meio de escapar da vida, mas sim para investigar aquilo que não se consegue ainda ter clareza.
Complementando esta ideia, ele pontua que dar voz as fantasias e ao inconsciente “não são um substituto da vida; são frutos do espírito que cabem àquele que paga o seu tributo à vida. Quem se exime não experimenta nada, salvo o seu próprio medo mórbido, e este não lhe concede nenhum significado”.
Podemos, então, entender que esses momentos de grandes mudanças e tumultos emocionais fazem parte do processo de individuação e que nós não deveríamos resistir ao enfrentamento das mudanças solicitadas.
Mas é preciso deixar claro que há uma diferença entre se sentir receoso diante da mudança imposta pela vida, e de se sentir totalmente descontrolado e desconectado da própria vida e das decisões a serem tomadas.
No primeiro caso, devemos enfrentar essas emoções como um ajuste psíquico necessário para a nossa ampliação da consciência, e esta tarefa pode ser sim enfrentada pela nossa versão protagonista. A nossa versão protagonista entenderá a necessidade de agir apesar do receio e buscará recursos e ajuda necessárias, com a compreensão que desta forma ele poderá atuar a favor da demanda necessária.
Já no segundo caso, onde o sentimento é o descontrole diante dos acontecimentos, surgirá a necessidade maior em buscar uma reconexão com a própria história, emoções e desejos, entendendo que o papel de coadjuvante, na verdade, aprisiona a pessoa em sofrimentos que não a pertence, mas que a mantém refém de complexos e sombras.
Fica claro, então, que fugir de algumas responsabilidades não é uma opção.
No entanto, teremos sempre liberdade no modo de agir diante delas. Aniela Jaffé em “O Mito do Significado” (1995, p.91) fala que “o homem é livre e não é livre”. Ela diz que “não é livre para escolher o seu destino, mas sua consciência lhe dá a liberdade para aceitá-lo como uma tarefa que lhe foi atribuída pela natureza”.
Se estamos dispostos a contribuir com o processo de individuação, nos tornamos responsáveis por este processo e nos submetendo voluntariamente ao Self. O homem é livre para ampliar a sua consciência e, para isso, enfrentar seus medos e todo o desconhecido que habita a sua psique.
“Quando alguém toma a si, voluntariamente, a integridade, não precisa vivenciar que ela lhe ‘acontece’ contra a sua vontade e de modo negativo”
Jung, Aion, v. 9/2, §16
A busca da autonomia e a da realização pessoal
Assumir o protagonismo da situação é uma tarefa a qual não vamos conseguir escapar na busca da autonomia e da realização pessoal. É trabalhoso mudar a postura e assumir novos papéis, principalmente quando estamos acomodados diante dos nossos complexos. Porém, faz parte da vida resgatar a autonomia da nossa história pois, uma hora ou outra, vamos ter que encarar o palco e a platéia e nos expor.
“Tornar-se autônomo é algo que nos é exigido, sem sombra de dúvida, como ideal e como reivindicação de nossa vida. Mas uma vez que a autonomia, em todas as suas formas, vem ligada sempre também com um processo de distinção e separação em relação ao outro, gerando assim perda, sentimentos de culpa de um lado, e de outro, sentimentos de mágoa, com medo e angústia frente à separação, de ambos os lados, via de regra, procuramos evitá-la”.
Kast, 2016, p. 34
A totalidade do ser humano consiste em aprender conscientemente suportar conflitos, desenvolver a capacidade de buscar soluções para eles através de uma decisão ou de uma aceitação.
A vida ensina que devemos tentar maneiras de mudar aquilo que nos incomoda, mas que, algumas vezes, quando sem alternativa, devemos apenas aprender a suportar.
Isso também é amadurecimento psíquico.
“…Só espero que você seja o condutor deste trem, Self, e esteja realmente me levando para o lugar onde eu devo estar…” . Tornar-se protagonista é realmente um grande desafio, mas é o primeiro grande passo na autonomia da nossa história.
E quando entendermos isso, poderemos então pensar “quando é que eu irei conseguir me tornar roteirista da minha própria história?” Talvez a consciência ainda tenha um trabalho a fazer antes de conseguir escutar a resposta do Self e tomar posse desta autonomia. É possível que esta resposta (ou confirmação) seja dada apenas no desembarque do trem. Mas nós chegaremos lá.
Marcella Helena Ferreira – Analista em formação IJEP
Maria Cristina Guarnieri – Analista Didata IJEP
Referências:
EDINGER, Edward F., Ego e Arquétipo. São Paulo – SP: Ed. Cultrix, 2012
JAFFÉ, Aniela. O Mito do Significado. São Paulo – SP: Ed. Cultrix, 1995
JUNG, Carl Gustav. O Eu e o Inconsciente. OC v.7/2. Petrópolis – RJ: Ed. Vozes, 2015
________________ Aion. OC v.9/2. Petrópolis – RJ: Ed. Vozes, 2013
KAST, Verena. O Caminho para si mesmo. Petropolis – RJ: Ed. Vozes, 2016
SALZGEBER, Nils. Pare de Procrastinar. Campinas – SP: Ed. Auster, 2021
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